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Capítulo II – O Senso Crítico sobre o Primeiro Templo

3. Perspectiva Literária de Mario Liverani

3.2 A Continuidade Dinástica e a História da Sucessão

Segundo o autor135, se o “pacto” entre Yahweh e o povo de Israel é o que foi estipulado com Davi, então a continuidade dinástica dele é um fator essencial, pois, para o estudioso, somente os herdeiros legítimos e diretos de Davi são depositários daquele pacto. Relata o pesquisador que, caso a “linhagem de Davi” tivesse sido interrompida, o antigo pacto não seria mais válido.

Relata o autor que a “carta de fundação” da promessa feita por Yahweh a Davi encontra-se na “profecia de Natã” e na resposta de Davi (2 Samuel 7). Para o estudioso, de uma parte, Davi

134 Ibidem, p. 384. 135

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pretende construir o templo como digna “Casa de Yahweh” (2 Samuel 7,2); de outra, simetricamente, afirma o autor, Yahweh quer construir a “Casa de Davi” não em sentido físico (Davi, segundo Liverani, mal acabou de construir um palácio real), mas uma dinastia que durará para sempre: “Tua casa e tua realeza serão para sempre estáveis diante de ti, e teu trono, confirmado para sempre” (2 Samuel 7,16). Ressalta o pesquisador que, naturalmente, “para sempre” está implicitamente condicionado pela promessa da contraparte, na qual enquanto houver a “Casa de Yahweh”, haverá a “Casa de Davi”.

Para o estudioso, esta problemática não pode pertencer ao tempo de Davi, quando o templo não estava construído (e nem o será conforme o autor, pois nunca existiu tal templo nessas dimensões) e a dinastia era ainda uma simples hipótese. Conclui o autor que tal passagem pertence ao período do exílio, no qual a destruição do templo coincidiu com a deportação da casa real, e para reconstruir a casa real, enfatiza o pesquisador, é preciso reconstruir o templo. De acordo com Liverani, há também a promessa: “Determinarei um lugar para Israel, meu povo; eu o implantarei e ele morará em seu lugar. Não mais tremerá, e criminosos não voltarão a oprimi-lo como outrora” (2 Samuel 7,10) que, por sua vez, seria anacrônica no tempo de Davi, quando o primeiro “assentamento” havia acontecido a três séculos (e sem necessidade de uma casa real), ao passo que alude claramente ao “segundo” assentamento (ou a seu projeto). Percebe o autor que a conexão entre linhagem real, templo, povo e terra é a subsistência do projeto de renascimento.

Ao se referir ao contexto, há a discordância da posição do estudioso sobre a legitimação da Casa de Davi ser considerada composição exílica, pois nesse período de reflexão, há uma crítica imensa sobre os reis de Judá por serem responsáveis pelo desterro dos seus súditos para a Babilônia. Ainda é muito mais viável aceitar as passagens legitimadoras da sucessão de Davi como frutos da Reforma Deuteronomista do que do exílio, pois, no contexto do exílio, se um rei os levou para o cativeiro, como é que eles desejarão outro rei para prejudicá-los novamente?

Percebe o autor136 que, por ter estabelecido essa segura e necessária conexão, o

historiógrafo deuteronomista presta depois a máxima atenção em percorrer a história do reino de Judá como uma sucessão ininterrupta dentro da linhagem de Davi – ao passo que, paralelamente, afirma o estudioso, ressalta sem dificuldade a fragmentação dinástica do reino do norte. Enfatiza o autor que os materiais historiográficos não faziam falta porque a preocupação a posteriori do

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historiógrafo coincidia com a preocupação do novo rei, ou seja, demonstrar (a Yahweh e ao povo) que a sua entronização era legítima e que a continuidade dinástica estava assegurada.

Continua o seu raciocínio o estudioso ao afirmar que o substituto, segundo as normas comumente aceitas (o herdeiro do trono era o filho designado) não tinha com que se preocupar, pois a aceitação popular era automática. Porém, continua o autor, no caso de sucessão irregular, ou apenas controversa, o novo rei devia expor suas razoes, normalmente a confiá-las a uma inscrição celebrativa (que não é outra coisa senão a materialização escrita do que o rei difundia também oralmente). Relata o pesquisador que o antigo oriente está cheio de “apologias” de usurpadores que declaram ser os legítimos herdeiros, ou de vencedores em lutas de sucessão que explicam que Deus está com eles. Conclui o autor que, para Judá, essas inscrições se perderam, mas restam vestígios nos textos narrativos que nelas se inspiraram.

No relato bíblico, atenta o referido pesquisador137, houve um caso evidente de descontinuidade dinástica (a entronização de Joás, pela mão do sacerdote Joiada, e com o consentimento do “povo da terra”) e de evidente retomada das argumentações do usurpador por parte do historiógrafo. Lembra o autor que outros casos são mais de sucessão ilegítima dentro da linhagem, pois nas introduções de Uzias, de Josias e de Joacaz, depois da morte violenta dos respectivos predecessores, é o “povo da terra” que desempenha um papel essencial na escolha do novo rei. Na perspectiva do estudioso citado, verdadeiras “histórias de sucessão”, que evidenciam a luta interna e as opostas posições dos contendores, dizem respeito à passagem de Davi para Salomão (1 Reis 1,1 – 2,11), mas com longas premissas nos eventos de 2 Samuel 13-20, e a passagem de Salomão para Roboão (1 Reis 11-13).

Conforme o pensamento do autor138, as histórias são um tanto detalhadas, mas isso torna ainda mais suspeita e menos confiável a hipótese de o historiógrafo dispor de fontes a respeito, que, aliás, se podia supor, certamente não as originárias “apologias” dos vencedores, que, todavia, podem ter ficado à vista até por volta de 587 a.C., mas pelo menos as narrações orais, a divisão popular daquelas “apologias” podia ter derivado. Para o referido pesquisador, várias conjecturas históricas estabelecidas entre os acontecimentos do século X a.C. e a redação pós- exílica contribuíram para plasmar as tradições; por exemplo, relata o autor, no caso da unificação davídica de Judá-Israel houve intervenção de polêmicas anti-Saul e anti-Benjamim coetâneas,

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Ibidem, p. 385.

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porém os debates se dão no fim do reino de Salomão (em fase de “divisão”) e no tempo de Josias (em fase de “unificação”). Considera o estudioso que se pode identificar alguns elementos, mas a estratificação e o entrelaçamento das tradições são tais que tornam a operação muito difícil.

Nas conclusões do pesquisador139, nessas possíveis fontes “autênticas” e nas tradições estratificadas o historiógrafo pós-exílico inseriu abundante material novelístico (do tipo “intrigas da corte do rei”), histórias de harém e de rivalidade entre mulheres velhas e jovens, de lutas de grupos e vinganças transversais, de prepotências e arrependimentos, de generosidades e de crueldades que fazem das histórias das sucessões a Davi e a Salomão, como as conhecemos, verdadeiros romances históricos que, obviamente, escolheram como protagonistas os personagens mais célebres de toda a dinastia e que se enquadram bem melhor no clima literário dos séculos VI e V a.C. do que no clima (no máximo “epigráfico”, segundo o autor) do século X a.C.

Portanto, para o estudioso que nos chama a lógica, qualquer novelismo atribuído aos reis Davi e Salomão fazem parte do clima literário dos séculos VI e V a.C., pois não se pode imaginar muita coisa que se ocorria no século X a.C. Apenas se percebe um erro no pesquisador em querer afirmar as legitimações da descendência de Davi no período exílico, pois nesse período de reflexão o que eles menos queriam era um rei para aborrecê-los e prejudicá-los.