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Capitulo I – A Questão Deuteronomista

1. O Desenvolvimento da Hipótese Documental Clássica

1.5 A Hipótese em Matéria de Fato e os estudos de Wellhausen

Relata Jean Louis Ska46 que, em 1833, Edouard Reuss, professor em Estrasburgo, nota que os profetas pré-exílicos desconhecem as prescrições da lei mosaica, particularmente as rituais, por sua vez muito próximas dos textos pós-exílicos, como os de Ezequiel. Devem ser, portanto, segundo o autor, leis pós-exílicas. Conforme Jean Louis Ska, Reuss, porém, não publicou a sua descoberta47, e coube a seu discípulo Karl Heinrich Graf demonstrar, em 1866, o acerto daquela intuição.

Atenta-se que Edouard Reuss de alguma forma estava imbuído das descobertas e observações de De Wette na questão dos profetas pré-exílicos desconhecerem as prescrições da lei mosaica, particularmente as rituais, e por tais leis serem pós-exílicas, e de Moisés na verdade se tratar de uma figura epônima criada no pós-exílio. Nesse instante, Reus e seu pupilo Graf

46 Ibidem, p. 123. 47

Ibidem, p. 123. Ska recomenda ver o último livro dele: REUSS, E. Die Geschichte der Heiligen Schrift des Alten

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apontam de certa forma a consolidação da figura de Moisés como criação pós-exílica, e não como o autor de todo o Pentateuco.

Aponta Ska que, apoiado nas conclusões de Reuss e Hupfeld, Graf afirma que o eloísta deve ser não a primeira, mas a última fonte do Pentateuco, e que não pode ter sido escrita antes do exílio. De forma independente, afirma Ska, o notável exegeta holandês Abraham Kuenen chega às mesmas conclusões em 1869. Relata Ska que, pela primeira vez, Kuenen chamará esse eloísta de Priestercodex (código sacerdotal), ao dar-lhe como sigla a letra P.

Acima, foi relatado como a fonte eloísta tardia ou recente foi denominada de fonte Sacerdotal ou Priestercodex (código sacerdotal). A partir da denominação de Kuenen, Julius Wellhausen iniciará a Teoria das Fontes como a conhecemos hoje, juntamente com a do procedimento apresentado no item anterior.

No raciocínio de Jean Louis Ska, Julius Wellhausen vai conferir a esses estudos uma forma clássica e definitiva, graças à clareza de suas exposições e limpidez de seu estilo48. Conforme as pesquisas de Ska, a obra mais importante de Wellhausen não é, como se pensa muitas vezes, sua

Die Composition des Hexateuch und der historischen Bücher des Alten Testaments (Berlin, 1866, 1868, 1899). Na visão de Ska, para melhor apreciar o talento de Wellhausen, e captar melhor as suas intenções, é preciso ler Prolegomena zur Geschichte Israels (Berlin, 1883)49.

Conforme as análises de Ska, antes de tudo, Wellhausen é um historiador que deseja reconstruir uma “história de Israel”, mais concretamente uma “história da religião de Israel”. Hoje, afirma Ska, sabe-se que os exegetas da primeira metade do século XIX tinham pouco interesse pelos textos em si mesmos, suas qualidades literárias, seu conteúdo intrínseco. De acordo com Ska, raros, nessa época, eram os comentários. Afirma o autor Ska que, por causa da filosofia hegeliana e dos românticos como Herder, os exegetas queriam estudar, principalmente a história e, por isso, empenhavam-se na datação das fontes, ponto de partida indispensável neste

48 Ibidem, p. 123. Sobre este autor, Ska sugere conferir SMEND, R. Deutsche Alttestamentler in drei Jahrhunderten.

Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1989, p. 99-113. Segundo Ska, Julius Wellhausen foi professor em Greifswald, Halle, Marburg e Gottingen.

49 Ibidem, p. 123. Ska recomenda a leitura da tradução inglesa da obra: WELLHAUSEN, J. Prolegomena to the

History of Israel: With a Reprint of the Article ‘Israel’ from the Encyclopaedia Britannica, Cambridge Library Collection – Biblical Studies, 1885.Scholars Press Reprints and Translations Series; Atlanta: Scholars, 1994, com o prefácio de W. Robestson Smith, autor da primeira tradução da referida obra de Wellhausen, que perdeu a sua cátedra em Aberdeen no ano de 1881 por causa de sua simpatia pelas ideias de Wellhausen. Conforme Ska, o mesmo ocorreu com o bispo anglicano de Natal, África do Sul, John William Colenso, que defendia em seus livros teorias sobre o Pentateuco provenientes da Alemanha. Ska sugere conferir também BLENKINSOPP, J. The Pentateuch: An

Introduction to the First Five Books of the Bible. The Anchor Bible Reference Library. New York/London: Doubleday, 1992, p. 12.

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estudo, e entendiam a história como evolução ou desenvolvimento dialético, segundo o novo esquema hegeliano: tese-antítese-síntese.

No entanto, enfatiza Ska, como os românticos, o período ideal não era o último, mas o primeiro, pois Wellhausen, como De Wette e muitos outros autores do período e seus seguidores até hoje, apreciam sobremaneira os tempos antigos, com bem menor estima pelos períodos recentes, e a evolução era vista como processo decadente, de degeneração progressiva.

Por último, considera Ska, a oposição luterana entre Lei e Evangelho (Gesetz und

Evangelium) marcará sensivelmente as reconstruções da “escola de Wellhausen”, pois como discípulo do protestantismo liberal, Wellhausen, no raciocínio de Ska, tenderá a identificar o Evangelho como uma religião natural, racional e humanista.

Segundo o pensamento de Ska, deve-se acrescentar a essas razões intelectuais a enorme admiração de Wellhausen pela monarquia prussiana, sob a qual se concretizava a unificação da Alemanha. Analogicamente, afirma Ska, Wellhausen nutria imensa estima por Davi e o início da monarquia unificada, porque via muitas semelhanças entre essa época e a história contemporânea de seu país, pois, para ele, o início da monarquia israelita representava a idade de ouro da religião de Israel50.

Relata Ska que, no prefácio do Prolegomena, Wellhausen, com tocante sinceridade, expõe seus sentimentos em relação ao Antigo Testamento. Segundo Ska, Wellhausen começou a estudar o Antigo Testamento pelos livros de Samuel, a história de Elias e os primeiros profetas, Amós e Isaías, que leu com grande prazer. Em seguida, conforme as pesquisas de Ska, propôs-se a ler também a “Lei”, que precede os profetas. Logo, porém, de acordo com Ska, desgostou-se dessa leitura, especialmente no momento em que chegou aos textos legislativos de Êxodo, Levítico e Números.

Ska afirma que Wellhausen não conseguia aceitar que, inicialmente, a religião de Israel tivesse sido legalista e ritualista, e, ao conhecer os livros de Graf, entusiasmou-se, aliviado, porque os referidos livros demonstravam o caráter dessas partes do Pentateuco.

Nos conhecimentos de Ska, Wellhausen, ao ter estudado acuradamente as leis e as narrações, distingue três períodos marcantes na religião de Israel: o início da monarquia, a

50 Aqui, deve-se explicar o contexto de época em que os estudiosos utilizaram os recursos de que dispunham à altura.

Percebe-se que nesse contexto não há o questionamento sobre a veracidade dos fatos sobre a monarquia unificada de Israel e Judá e da construção do Templo de Salomão, pois para Wellhausen a narrativa bíblica sobre a monarquia unificada é realmente fato histórico; ele não cogita a hipótese de uma invenção literária.

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reforma deuteronomista51 e o período pós-exílio (o segundo templo). Pois, para Ska, a essas três etapas correspondem três momentos de atividade literária. De acordo com o autor Jean Louis Ska, no começo da monarquia, foram escritos o javista e depois, o eloísta, porém, Wellhausen não os distingue, pois para ele (Wellhausen) ambos são denominados como jeovista. O Deuteronômio, como se sabe, na visão de Ska, apareceu com a reforma deuteronomista que ocorreu por volta de 622 a.C.

Até o momento, Jean Louis Ska apontou Julius Wellhausen como um homem de sua época, que apesar de estar no caminho de negar a existência factual de Moisés, devido ao momento histórico que ele vivia no contexto da Unificação da Alemanha por Otto Von Bismarck, ele acreditava no Reino Unido de Israel de Judá como fato histórico. Compreende-se pelo motivo da arqueologia bíblica ser praticamente inexistente nesta época; o melhor que os autores como Wellhausen poderiam fazer era depender das narrativas bíblicas conforme o limite dos seus respectivos conhecimentos.

Para haver um questionamento sobre a existência de Moisés, De Wette teve que fazer um estudo comparativo entre os livros de Crônicas e os livros de Samuel e Reis. Porém, neste contexto, desconhece-se a análise literária de personagens e das narrativas bíblicas como literatura. Compreende-se agora que provavelmente tais autores não negariam a existência de Moisés, mas tirariam, por motivos óbvios, a sua autoria de todo o Pentateuco conforme a tradição religiosa judaico-cristã.

Conforme as observações de Ska sobre as pesquisas de Wellhausen, os escritos sacerdotais pertencem ao período pós-exílico52 e, por consequência, a lei não está na origem de Israel, mas na origem do judaísmo53. Para Ska, no que respeita à hipótese documental, Wellhausen estabelece a

51 Nesta nota, há a necessidade de se diferenciar o Deuteronomista do Deuteronômico. De acordo com LOHFINK,

Norbert. Las tradiciones Del Pentateuco en la época del exílio, Cuadernos Bíblicos 97, Navarra: Verbo Divino, 1999, p. 42, “Deuteronômico” é relativo ao livro do Deuteronômio; e “Deuteronomista” é relativo à história deuteronomista e à escola responsável pelos livros desde Josué até 2 Reis. Aqui opta-se pelo termo “Deuteronomista”.

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Ibidem, p. 125. Conforme os estudos de Ska, na primeira parte do Prolegomena, Wellhausen estuda os centros cultuais, os sacrifícios, as festas, os sacerdotes e levitas, e a organização do sacerdócio (taxas, dízimos e outros tributos). Ska sugere ver um resumo em CAZELLES, H. La Torah ou Pentateuque. In: CAZELLES, H. (ed.).

Introduction critique à l’Ancien Testament. Introduction à la Bible, Édition nouvelle, t. II. Paris: Desclée, 1973, pp. 122-124; além do artigo PURY, A. de; ROMER, T. Le Pentateuque en question: Position du probleme et breve histoire de la recherché. In: PURY, A. de; ROMER, T. (eds.). Le Pentateuque en Question: Les origines et la

composition des cinq premiers livres de la Bible à la lumière des recherches recentes. Genève, 1992, pp. 26-27.

53 Ibidem, p. 125. Ska recomenda ver PERLITT, L. Hebraismus – Deuteronomismus – Judaismus. In: BRAULIK,

G.; GROSS, W.; McEVENUE, S. (eds.). Biblische Theologie und gesellschaftlicher. Wandel: FS Norbert Lohfink SJ; Freiburg: Herder, 1993.

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ordem clássica das fontes: J (javista); E (eloísta); D (Deuteronômio) e P (Priestercodex ou código sacerdotal, que Wellhausen chama de Q, da palavra latina quattuor, porque esse relato contaria quatro alianças de Yahweh com a humanidade: com Adão, com Noé, com Abraão e com Israel, no Sinai)54.

Para as percepções de Ska, a religião do javista é natural, espontânea, livre e genuína. No Deuteronômio, afirma o autor Ska, principia um processo de Denaturierung, de degeneração, acompanhado por progressiva centralização e ritualização da religião. Conforme Ska, as regras aleijam a espontaneidade, e esse processo chega ao auge da religião instaurada pelo sacerdócio, após o exílio: legalismo e ritualismo sufocam a liberdade. Nos estudos de Ska, a religião segundo Wellhausen não cresce mais no chão concreto da vida, porque se encontra enraizada nas abstrações sacerdotais.

Ska aponta para um exemplo característico do pensamento de Wellhausen, no qual é como ele (Wellhausen) apresenta a evolução dos sacrifícios e das festas em Israel, em que no início da monarquia, o ritmo da liturgia e dos sacrifícios seguia as estações do ano, sem datas prefixadas no calendário, e os sacrifícios eram oferecidos pelas famílias, em santuários locais.

Observa Jean Louis Ska que, com a reforma deuteronomista, o calendário litúrgico afasta- se do natural da vida, e as festas passam a evocar acontecimentos da história de Israel e o cálculo matemático prevalece sobre as estações. No estágio final, ressalta Ska, a liturgia desliga-se totalmente da vida e da natureza, e os sacerdotes introduzem um calendário preciso para cada festa (Levítico 23) ao criarem uma nova comemoração, “o dia do Grande Perdão” (Levítico 16,23,26-32). Enfatiza Ska que as preocupações do dia a dia cedem lugar ao sentimento de culpa, o culto se concentra no “pecado” e a liturgia visa, sobretudo, à expiação.

Conforme as anotações de Ska, essa visão negativa do período pós-exílico e a incapacidade de lhe perceber o sentido em seu contexto histórico reduzem a autoridade do sistema de Wellhausen e de seus discípulos55. Adverte Ska que historiadores e exegetas precisam de bastante

cuidado, ao se valerem do esquema evolucionista, de formato hegeliano, e da visão romântica sobre a religião primitiva, espontânea e livre.

54 Ibidem, p. 125. De acordo com Ska, neste momento Wellhausen se engana, pois na fonte P só há alianças com Noé

(Gênesis 9) e Abraão (Gênesis 17).

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Ibidem, p. 126. Ska recomenda ver BLENKINSOPP, J. The Pentateuch: An Introduction to the First Five Books of

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Nas observações de Ska, a história não obedece à filosofia e as culturas antigas padecem de mais restrições e pressões do que imaginavam Herder e Rousseau, pois Wellhausen, enfim, traduzia em categorias históricas o credo luterano referente à lei e ao Evangelho. De início, enfatiza Ska, na religião de Israel reinava um Evangelho genuíno, a religião primitiva da monarquia davídica. Depois, aponta Ska, a lei entra em cena com a reforma deuteronomista.

Raciocina o autor Jean Louis Ska que, com a religião dos sacerdotes, após o exílio, instaurada a teocracia ou hierocracia do segundo templo, a religião natural morre e o legalismo pontifica. Relata o estudioso Ska que será necessário esperar o Novo Testamento para debelar a escravidão da lei e substituí-la pelo Evangelho da liberdade. Para Ska, a esta visão pode-se, facilmente, objetar que a história de Israel é muito mais complexa e pode ser arriscado pretender captar um grande movimento de ideias ao lançar mão apenas de duas categorias fundamentais.

Tal desenvolvimento já foi abordado aqui anteriormente. Conforme Ska, não com as palavras que serão expostas, havia uma espécie de modismo antropológico evolucionista que era tendência de toda e qualquer literatura nesta época na Europa de produção intelectual (França, Inglaterra e Alemanha). Na questão religiosa, Wellhausen não compreende que o pensamento dele é fruto de uma institucionalização do Cristianismo ao defender que o Evangelho de Jesus de Nazaré e o Novo Testamento representam a libertação do legalismo, a ser que o próprio Cristianismo transfere tais palavras por meio de estruturas legalistas, sejam elas literárias ou hierárquicas.

Portanto, apesar da crença de Wellhausen, nos dias atuais, conforme o afirmado anteriormente, deve-se ter ciência de que toda e qualquer religião, para firmar a sua existência e identidade, precisa se institucionalizar, e como a institucionalização é feita por homens, homens erram, e todas as religiões, quando institucionalizadas, possuem os seus problemas e defeitos; não existe religião perfeita.

Conforme Ska, vale reconhecer, contudo, que, apesar dessas claras limitações, as pesquisas de Wellhausen permanecem extremamente úteis nos estudos atuais (conforme a data do livro de Ska, que é o ano de 2003) do Pentateuco. Para o autor, a comparação entre os diversos códigos de leis e seus critérios para a distinção de fontes representam instrumentos ainda válidos para a exegese moderna, sem se esquecer da sensibilidade, do bom senso e da prudência que Wellhausen sempre demonstrou, exemplarmente, na visão de Ska.

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Quanto à utilidade da teoria das fontes, conforme o afirmado anteriormente, é de ressaltar que ela ainda é ensinada nos seminários de teologia devido ao choque que a referida causa ao teologando, que acredita na transcendência da Bíblia; mas, mesmo assim, tal teoria possui os seus questionamentos em alguns aspectos, como por exemplo, Wellhausen acreditou que houve produção literária na época da monarquia unida, principalmente a partir do reinado de Davi, mas hoje em dia, de acordo com as descobertas arqueológicas, percebe-se que o reino de Judá não teria condições de desenvolver grandes produções intelectuais naquela época.

Em suas conclusões, Ska aponta que a partir daí a hipótese documental assumirá sua forma clássica, familiar a todos os estudiosos do Pentateuco, na qual há quatro fontes: a javista (J), escrita no Sul, no século IX; a eloísta (E), escrita, mais ou menos, um século depois, no reino do Norte e baseada nos primeiros profetas (século VIII); o Deuteronômio (D), que, no seu núcleo mais antigo, remonta à reforma de Josias, em aproximadamente 622 a.C.; e a sacerdotal (P), obra exílica ou pós-exílica.

Para Ska, com toda a probabilidade, o Pentateuco atual foi compilado na época do “segundo templo”, e muitos ligam esta redação à reforma de Esdras (cf. Neemias 8).

Conforme tal percepção, o Pentateuco como se conhece atualmente foi compilado na época do “segundo templo”. Entretanto, os livros como conhecemos foram confeccionados em rolos, que por sua vez eram guardados em grupos de rolos da Lei, rolos dos Profetas e rolos dos Escritos, e naquele contexto não poderiam ser todos reunidos em um só rolo devido ao desconforto para carregá-lo. Algo que contribuiu para o desenvolvimento da teoria das fontes foi a codificação de todos em um só volume ou livro, e no contexto do pós-exílio não haveria qualquer questionamento sobre as origens dos manuscritos, pois os escribas eram os que liam em público, escreviam e organizavam os livros da Bíblia Hebraica como a conhecemos, assim como eram detentores do conhecimento que seria transmitido para o povo.

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