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Capítulo III – Teorias sobre o Primeiro Templo

2. Teoria de Mario Liverani

2.2 O Mito do “Primeiro Templo”

Nas palavras de Liverani230, conforme acontece muitas vezes em casos semelhantes, um projeto fortemente inovador é formulado e apresentado como um retorno às origens, a assumir como modelo o templo salomônico e a dirigir também o esforço historiográfico à demonstração da centralidade – ideológica e histórica – daquele templo através de toda a história de Israel. De acordo com o autor, ao fazer isso, a historiografia deuteronomista havia já traçado as linhas mestras desde seus inícios no tempo de Josias e sua reforma de centralização do culto de Yahweh no templo de Jerusalém, e desde então se formara a tradição histórica relativa.

Segundo o autor, Josias, porém, rei verdadeiro e ambicioso, não podia senão raciocinar conforme os modelos locais de subordinação do templo ao rei, e, consequentemente, concebia o templo como um anexo do palácio e a centralização como modo de eliminar templos potencialmente rivais, mais fáceis de escapar ao controle régio. Conforme o pesquisador, o sumo sacerdote Josué, que retornou a Jerusalém com Zerubabel para reconstruir o templo e refundar a comunidade, já devia ter claro na mente o novo modelo e pelo menos algumas de suas implicações de incremento econômico e hegemonia política em função antimonárquica. No fim da trajetória, atenta o autor, basta confrontar a história de Judá como narrada pelo Deuteronomista e pelo Cronista para perceber a passagem da ênfase da história de uma dinastia régia para a história de um templo.

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No raciocínio do estudioso231, o projeto dos sobreviventes, em seu aspecto de construção, encontra sua mais vistosa concretização na descrição do templo e do palácio salomônico (1 Reis 6-7). Acredita o autor que a própria dimensão do complexo é tal que resulta dificilmente situável na Jerusalém do século X a.C.; ressalta o pesquisador que, segundo as dimensões fornecidas pelo livro dos Reis, a construção palatina cobre 1.000 metros quadrados, mas com os espaços de circulação e reservados, e com um fechamento fortificado, acabaria a ocupar uma boa metade da “cidade de Davi”. Nota o autor que a construção do templo é de dimensões análogas à palatina, mas com o “pátio interno” se chega a um hectare, e se havia também um pátio externo, chegava- se a cobrir por inteiro a área que depois seria a do segundo templo.

Afirma o autor232 que não é somente a dimensão do palácio que é pouco confiável para o período salomônico, pois um palácio real na Jerusalém do século X a.C. devia ser estruturado com base no modelo dos últimos palácios do Bronze recente (conforme o de Megiddo) ou talvez no modelo dos bit hilani sírios (como os de Zincirli). O estudioso atenta que se descreve, porém (1 Reis 7,1-8), uma estrutura totalmente diferente, pois há uma vasta sala sustentada por quatro filas de colunas (a chamada “Floresta do Líbano”, devido às colunas de cedro) e dois corpos menores nos lados curtos, em que de um lado tem-se o vestíbulo para as atividades cerimoniais (judiciárias e de recepção) e de outro a habitação privada do rei, a ter em frente a da rainha.

Segundo o autor, basta fazer a planta deste esquema para constatar que temos a descrição de um palácio real aquemênida, centrado na grande sala de colunas, chamada apad na. O palácio real que se atribui a Salomão, afirma o pesquisador, é na realidade o projeto de um palácio em estilo persa, com data entre os séculos VI e V a.C., semelhante na estrutura aos de Susa e Persépolis.

Para o estudioso233, o templo (1 Reis 6,2-22), de forma alongada, a ter em continuidade um vestíbulo (2

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, de 20 côvados234 por 10), um ambiente principal ( ),

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, de 20

231

Ibidem, p. 396.

232 Ibidem, p. 396-397. 233 Ibidem, pp. 397-398.

234 “Côvado” deriva do latim, cúbitus=cúbito, que por sua vez foi a denominação antiga do maior osso do antebraço,

a ulna, que, na posição anatômica (membros superiores estendidos para baixo e palmas das mãos voltadas para frente), se localiza no lado do antebraço mais próximo ao corpo (denominado lado medial), no lado do dedo mínimo. O côvado foi uma medida de comprimento utilizada por diversas civilizações antigas, baseado no comprimento do antebraço, da ponta do dedo médio (dactíleo) até o cotovelo (olécrano), estando este (o antebraço) em ângulo reto, com as articulações do punho e do cotovelo estendidas e a mão aberta. No contexto da Antiguidade, um côvado equivalia a um pé e meio, por volta de 45,72 centímetros.

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côvados por 40) e um sacelo interno ( –

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, de 20 côvados por 20, a se supor ter dentro a fabulosa e mítica arca de Yahweh com as não menos fabulosas e míticas tábuas da lei), respeita os cânones da arquitetura do templo siro-israelita-judaíta, como seria de se esperar, dado o conservadorismo dos edifícios de culto; mas, para o autor, o conjunto está incluído em um pátio interno e presumivelmente em um pátio externo, que claramente, na visão do pesquisador, reproduzem os grandes espaços murados dos santuários neobabilônios.

Relata o autor que a decoração arquitetônica – em particular os enormes capitéis e a mobília interna, e as grandes alfaias cultuais em bronze, como sumariamente descritas no texto – tem paralelos mais ou menos pertinentes em todo o período do Ferro, mas as dimensões parecem suspeitas na perspectiva do autor, pois as enormes colunas e capitéis lembram modelos da arquitetura do período persa mais que os do primeiro período do Ferro.

Atenta o autor235 que, certamente, os sobreviventes tinham vívida memória (e certamente, enfatiza o estudioso, papéis de arquivo) do templo considerado original e procuraram reproduzi- lo em seu projeto, anda que em dimensões aumentadas e com material de qualidade (todo de pedra e de madeira, sem os tijolos crus que eram habituais nas fachadas do período salomônico). Mas o “primeiro” templo que, segundo o pesquisador, eles tinham presente não era o de Salomão; conforme o autor, era, sim, o que fora de novo fundado provavelmente por Josias e destruído por Nebuzardan e pelas tropas neobabilônicas. Relata o autor que eles puderam (ou quiseram) apenas imaginar que o templo tivesse ficado imutável por quatro séculos, da primeira edificação até a destruição. Conforme o estudioso, basta lembrar que toda a vez que o historiógrafo deuteronomista cita alfaias do templo cedidas como tributo ou por espólio define-as sempre como “de Salomão”, como se fossem dotadas de sete vidas.

Observa o pesquisador236 que a descrição do livro dos Reis com sua mistura de memórias e de projetos, de dados autênticos e anacrônicos, deve ser sempre avaliada como muito realista, se somente confrontada com o projeto visionário e arquitetonicamente impossível enunciado por Ezequiel (Ezequiel 40-44), esse sim, segundo o autor, todo projetado para o futuro, mas baseado numa pluralidade e numa vastidão de pátios externos e de anexos funcionais para atividades colaterais que o profeta só pode ter conhecido na Babilônia, mas que a imutabilidade sagrada do

235

Ibidem, pp. 398-399.

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templo projeta tanto sobre o protótipo salomônico como sobre o templo novo ainda a ser edificado.

O autor237 afirma que não há razão para duvidar que Salomão tivesse construído em Jerusalém um templo de Yahweh, e tal empreendimento de construção deve ter constituído a base mesma, originária e autêntica, de sua fama de rei-modelo, depois ornada de várias anedotas. Segundo o estudioso, podiam existir uma ou mais inscrições do rei justo e sábio para celebrar a memoranda construção, inscrições que ficaram à vista por séculos.

Conforme a narrativa do pesquisador, o templo, devidamente ornamentado, conheceu depois todas as travessias que normalmente marcam a vida de um santuário, como o tesouro e as alfaias depredados ou utilizados na necessidade, mas que depois foram reconstruídos com as ofertas do rei e da população, e também estruturas de construção restauradas em função da normal degradação ou depois de destruições ocasionais, mas também modificadas em conexão com as mutáveis orientações do culto, como as capelas e os altares acrescentados ou tirados, acesso dos fiéis regulado ou totalmente excluído. Considera o autor que, basta pensar nas referências feitas pelos reis reformadores Ezequias e Josias, para entender que a arquitetura e a funcionalidade do templo pré-exílico não eram nada imutáveis.

Segundo o estudioso238, a destruição de 587 a.C. foi descrita como radical e tal deve ter sido nos limites das tecnologias destrutivas do tempo, pois o templo foi saqueado e queimado, e o seu edifício ficou descoberto e com as paredes parcialmente destruídas. De acordo com o autor, permaneceu, contudo, como lugar sagrado para os sobreviventes; e também, nos estudos do pesquisador, a cidade tinha sido destruída por inteiro (muros, palácios, e até casas particulares), mas continuaria habitada por squatters, que procuravam remediar do melhor modo possível as ruínas. Nas observações do autor, uma referência de Jeremias (41,5) mostra que ali se desenvolviam atividades cultuais também no período neobabilônico tão notórias que atraiam um afluxo de fiéis das zonas circunstantes; e, para o estudioso, há quem imagine que o livro das Lamentações fosse lido anualmente no lugar, para comemorar a destruição.

À pluralidade de cultos e de lugares de culto dominante na terra de Israel e de Judá até por volta do fim do século VII a.C., nos estudos do pesquisador239, esta estivera restrita antes pelas reformas de Josias, depois pelos acontecimentos do exílio e do retorno. Afirma o estudioso que,

237 Ibidem, p. 399. 238 Ibidem, p. 400. 239 Ibidem, pp. 403-404.

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com base nos textos bíblicos, no período persa podia existir agora em todo interior da Judeia somente o culto a Yahweh e somente na região, o templo de Jerusalém. Segundo o estudioso, santuários de antiga respeitabilidade, como o de Betel, eram naquele momento memória passada, pois tais santuários esparsos no território eram somente tolerados pela religião dominante como lugares de memória sagrada, de ambientação rural, ligados a túmulos de patriarcas, a árvores seculares, a estelas comemorativas – todos relidos em função da história pré-davídica do povo eleito.

Conforme os conhecimentos do pesquisador240, para além das rígidas afirmações dos textos bíblicos, todos escritos ou reescritos na óptica monoteísta de um só templo, os dados fornecidos pela arqueologia mostram um quadro mais atenuado, mas de significativa confirmação. De acordo com o autor, um mapa de distribuição dos templos do território de Judá no período persa mostra uma difusão deles ao longo da costa (Makmish e Tel Mikhal) habitada pelos descendentes dos filisteus e dos fenícios e administrativamente dependente das províncias de Tiro, de Dor, de Ashdod e de Gaza. Ressalta o autor que, no interior, são conhecidos apenas dois dos templos na Galileia (Mispe Iammim), fora do raio de contato com Jerusalém e de Samaria, mais próximo ao interior de Tiro.

Considera o autor241 que as óbvias conexões que sempre existiram entre relação de adoração às divindades, práticas cultuais (afluxo de fiéis ao santuário central) e controle político foram ulteriormente enfatizadas pela configuração da nova cidade-estado que essa conexão institucionalizava em formas e com uma força sem precedentes. Desse modo, conclui o estudioso que era normal, por isso, que a província da Judeia, interior da cidade-estado de Jerusalém no período persa, estivesse maciçamente orientada para o novo templo de Yahweh, que a literatura denomina de “segundo templo”.

Nesta parte, o pesquisador explanou como houve o desdobramento das visões do escritor Sacerdotal para o primeiro templo de Salomão. Algo que ainda é questionável é o fato de o estudioso abrigar a literatura de composição exílica como Deuteronomista, pois no exílio, não há o desejo de um rei que domine o seu povo. Entretanto, a questão de se criar um Templo grandioso e atribuí-lo a Salomão, pode ser inserida nas obras Deuteronomistas sem pudor nenhum, pois a construção de um Templo grandioso faz parte da exaltação do rei conforme o

240

Ibidem, pp. 403-404.

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contexto deuteronomista. Assim, há um propósito em colocar o Templo grandioso em contexto pós-exílico, que é o de buscar centralizar o poder dos sacerdotes sobre o Templo, o que será desdobrado posteriormente.