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Capitulo I – A Questão Deuteronomista

2. Origens da Teoria Deuteronomista

2.2 A Questão da Coerência da Redação dos Livros de Deuteronômio a Reis

Claus Westermann é referido por Römer ao retomar determinadas críticas lançadas contra Martin Noth, ao argumentar que os diferentes livros que constituem a assim chamada História Deuteronomista não trazem as marcas do mesmo estilo deuteronomista ou ideologia deuteronomista. Para Westerman, o livro de Juízes, ao contrário dos livros Reis, apresenta uma visão cíclica da história, enquanto os livros de Samuel mostram muito poucas características claras de linguagem deuteronomista. Por isso, relata o autor, Wasterman afirma: cada livro dos Profetas Anteriores provém de um contexto social e histórico diferente, pois mesmo se houve alguns redatores, eles transmitiram fielmente as antigas tradições orais; por isso, enfatiza Römer, os textos contidos nos livros históricos deveriam ser considerados provenientes de testemunhas oculares dos acontecimentos narrados.

A crítica que é feita a Wasterman oriunda de Römer é, porém, que a sua ideia de “tradição oral” não está de acordo com os resultados das pesquisas antropológicas e sociológicas, que demonstraram claramente que pôr por escrito aquilo que se pode chamar de “tradição oral” significa transformação na forma e no conteúdo do material selecionado74, ou seja, ao colocar por escrito, a narrativa de origem oral não é fiel à original, pois está impregnada de alterações, e perdeu muito da sua essência.

74 Ibidem, p. 45. O autor sugere conferir obras como: KIRKPATRICK, P.G. The Old Testament and Folklore Study.

Journal for the Study of the Old Testament Supplement 62. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1998; e WAHL, H.M. Die Jakobserzählungen: Studien zur ihrer mündlichen Überlieferung, Verschrif- tung und Historizität. Beihefte

Zur Zeitschrift für die Alttestamentliche Wissenschaft 258. Berlin, 1997. Uma obra que Thomas Römer também recomenda, e acha muito interessante e importante é a de NIDITCH, S. Oral World and Written Word – Ancient

Israelite Literature. Louisville: Westminster John Knox, 1996, que apresenta a sua rejeição da “noção romântica de um período oral na história de Israel” (RÖMER, T. op. cit., p. 134).

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A tentativa de Claus Westeman é razoável por questionar a plena deuteronomicidade dos livros da História Deuteronomista, mas ele falha ao afirmar que os textos contidos nos livros históricos deveriam ser considerados provenientes de testemunhas oculares dos acontecimentos narrados. Até onde se conhece, nenhum dos relatos bíblicos possuiu alguma testemunha ocular, pois não passam de histórias contadas para legitimar algo ou alguma coisa. Não se questiona a existência de determinados personagens bíblicos, mas sim as histórias fabulosas (no sentido de fábula) e fantásticas (no sentido de fantasia) que circundam por tais personagens. Hoje em dia já se nega a existência material de Moisés, porém com relação às dos reis Saul, Davi e Salomão, questiona-se mais os mitos que foram construídos e tecidos sobre eles do que as suas respectivas existências. Portanto, a questão das testemunhas oculares não está em pauta nos estudos bíblicos, mas sim o propósito do relato bíblico.

Há outros autores estudiosos do deuteronômio que são Ernst Wurthwein e Alan Graeme Auld, os quais, de acordo com Römer, afirmam que o núcleo mais antigo da editoração deuteronomista deve encontrar-se no livro de Reis. Mais tarde, segundo o autor, ao desdobrar o raciocínio dos referidos estudiosos, em um processo que inclui diversas etapas, foram acrescentados progressivamente os livros de Samuel, Juízes e, finalmente, Josué; e o Deuteronômio e o Tetrateuco vieram mais tarde ainda e tiveram contato com autores que trabalharam os textos e os personagens dos Profetas Anteriores. Aponta Römer que Ernst Axel Knauf aproxima-se desta posição, já que também ele acredita que apenas os livros de (Samuel e) Reis poderiam ser rotulados como “História Deuteronomista”, pois Knauf não considera o Deuteronômio uma introdução apropriada para o livro histórico seguinte, já que, segundo a ideologia deuteronomista, a história de Israel começa com o êxodo, pareceria muito mais lógico iniciar com essa história.

Porém, de acordo com Thomas Römer, se alguém faz uso da ideia de que esta “História Deuteronomista mais ampla” teria sempre incluído os livros de Êxodo e Números, surgem outros problemas. Nesse sentido, há a necessidade de explicar a presença dos textos como Deuteronômio 1-3, que recapitulam os acontecimentos narrados em Êxodo e Números, pois se o Deuteronômio tivesse sempre seguido Êxodo e Números, simplesmente não haveria motivo para iniciar com um sumário dos eventos relatados nos livros anteriores. Finalmente, observa Römer que Knauf argumenta que a assim chamada História Deuteronomista (Deuteronômio – Reis) nunca é atestada nos sumários históricos, ou nos salmos “históricos”, ao contrário do Pentateuco

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(por exemplo Salmos 74;95), do Hexateuco (Salmos 105;114), ou da “História Primária” que cobre os livros de Genesis a Reis (exemplos: Salmos 78;106).

Todavia, de acordo com Thomas Römer, caso todas essas coleções estão documentadas nos Salmos, nenhum deles menciona todas as tradições narrativas que elas contêm, exceto o tardio Salmo 105. Por isso, explicita Römer, parece um tanto duvidoso afirmar que essas coleções estão firmemente atestadas nos Salmos, pois, evidentemente, existem alguns textos tardios que procuram recapitular ou até criar um Hexateuco (Josué 24) ou uma “História Primária” (Neemias 9).

Da mesma forma, porém, conforme o autor Römer, há no Salmo 136 um sumário do Tetrateuco (que termina com a conquista da Transjordânia, como faz o livro de Números); este salmo, de acordo com Römer, parece considerar que o Deuteronômio pertence aos livros seguintes. Finalmente, percebe o autor Römer, 2 Reis 17,7-23 poderia muito bem ser entendido como um sumário da História Deuteronomista, pois é verdade que o texto começa com a tradição do êxodo, mas como não se alude a nenhum outro tema do Tetrateuco, o versículo inicial pode perfeitamente ser considerado um sumário do livro do Deuteronômio: “O povo de Israel pecou contra Yahweh seu Deus, que os havia tirado da terra do Egito [...] e prestaram culto a outros deuses” (versículo 7).

Observa Römer que a identificação de Yahweh como o Deus que tirou Israel do Egito e a advertência contra outros deuses são dois temas primordiais do Deuteronômio, como também Deuteronômio 5,6-7;6,12-14;29,14-15. A continuar o raciocínio de Römer em 2 Reis 17,7-23, o versículo 8 alude à conquista; nos versículos seguintes há alusões ao tempo dos juízes e de Samuel; os versículos 16-17 referem-se a acontecimentos relatados no livro dos Reis. Para o autor Thomas Römer, pode-se concluir, portanto, que 2 Reis 17,7-23 pressupõe ou resume todo o âmbito da História Deuteronomista75.

Ainda é percebida a questão de tirar o povo de Israel do Egito como tema sacerdotal, não deuteronomista, como Römer afirma, pois se trata de mais uma inserção sacerdotal no Deuteronômio do que um texto deuteronomista de fato, visto que, por inúmeras vezes, o Egito pôde ser considerado como pseudônimo de Babilônia, pois, historicamente, nunca os cananeus (israelitas) viveram na terra do Egito. Apenas cederam a sua força como pagamento aos egípcios

75 Ibidem, p. 47. O autor recomenda, para maiores detalhes sobre 2 Reis 17, conferir um artigo de sua própria autoria,

apesar de muitos considerarem isso pedantismo, que é RÖMER, T. The Form-Critical Problem of the So-Called Deuteronomistic History. In: SWEENEY, M.A.; BEN ZVI, E. (orgs.). The Changing Face of Form Criticism for the

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mediante ao regime de corveia. O povo de Judá foi sim considerado estrangeiro na Babilônia, mas isso jamais foi fato no Egito da Idade do Bronze.

Mas Thomas Römer nos chama a atenção para um aspecto referente ao autor Rosel, pois contrariamente a este autor Rosel76 e a outros que declaram pela não existência de temas deuteronomistas a ligar os livros de Deuteronômio até Reis, não se pode, em hipótese alguma, negar a existência de tais e referidos temas. Enfatiza Römer que há alguns desses traços que faltam quase totalmente no Tetrateuco, como no caso dos –

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, os “outros deuses”, que é uma expressão considerada um emblema Deuteronomista; e no Tetrateuco só é atestado duas ou três vezes no livro do Êxodo77. O tema do culto a outros deuses e da rejeição de Yahweh percorre todos os livros do Deuteronômio até Reis, e apresenta uma importante explicação para a catástrofe do exílio e a destruição tanto de Israel como de Judá.

Como os livros do Tetrateuco são considerados posteriores aos escritos deuteronomistas, as pouquíssimas citações do termo –

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, os “outros deuses”, que é uma expressão considerada um emblema Deuteronomista, podem ser consideradas uma tentativa de vincular o livro do Êxodo aos propósitos deuteronomistas que muitas vezes coincidem com os propósitos sacerdotais na questão da unificação e centralização. Deve-se compreender que há a apropriação de termos para se reforçar a ideologia da centralização, mesmo ela sendo oriunda da fonte Deuteronomista.

A voltar ao tema do Templo, que é o tema central da tese, este é um aspecto importante vinculado à centralização do culto e ao “Primeiro Templo”, principalmente na Reforma Deuteronomista ou Josiânica, cujo objetivo foi, a princípio, tornar o culto em Jerusalém central.

Afirma Römer que o próprio exílio, a deportação para longe da terra dada a Israel, é outro “leitimotiv abrangente” na História Deuteronomista, pois, excetuado Levítico 26,27-33, que é um texto muito tardio, não existe no Tetrateuco nenhuma alusão direta ao exílio. Conforme o entendimento do autor Römer, evidentemente, um bom número dos textos contidos neste corpus

76 Ibidem, p. 47. Sobre Rosel, o autor recomenda conferir ROSEL, H.N. Does a Comprehensive ‘Leitmotiv’ exist in

the Deuteronomistic History? In: RÖMER, T. (org.). The Future of Deuteronomistic History. Bibliotheca

Ephemeridum Theologicarum Lovaniensium 147, Leuven, 2000, pp. 195-211. É curioso o fato de ser um artigo de discordância das opiniões de Thomas Römer estar dentro de uma coletânea organizada pelo próprio Römer. Desconhece-se notícias de Rosel ter mudado de ideia sobre a não existência de temas deuteronomistas relacionados aos livros de Deuteronômio até Reis.

77 Ibidem, p. 47. Segundo o autor, as passagens ocorrem em Êxodo 20,3 (= Deuteronômio 5,7); 22,13; Êxodo 34,14

(em sua forma singular). Fora da História Deuteronomista, a expressão ocorre 18 vezes nas partes deuteronomistas de Jeremias, uma vez em Oséias (3,1) e depois nas Crônicas.

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pode ser entendido a luz dos acontecimentos de 597/587 a.C., como por exemplo Êxodo 32, Números 13-14 e muitos outros, mas esses textos nunca mencionaram o exílio explicitamente, segundo o autor. Conclui Römer que só no livro de Deuteronômio aborda-se claramente o desaparecimento de Israel da terra (conferir, por exemplo, Deuteronômio 28, 63-64). E a partir daí o anúncio da deportação, segundo o autor, ocorre repetidas vezes, especialmente nos discursos e comentários deuteronomistas. Römer observa que, relacionado com isso, está o uso da raiz – (“ser exterminado”), que é atestada frequentemente no Deuteronômio e nos

– , mas não no Tetrateuco78.

Porém, sobre a questão de determinados textos do Tetrateuco nunca mencionarem o exílio explicitamente, é óbvio que eles não o fariam, pois o propósito era dar a tais textos um tom de antiguidade, em uma época na qual não existiria a Babilônia como reino poderoso, e como o Egito era o Reino poderoso da época, foi criada a escravidão e o Êxodo do Egito em comparação ao exílio na Babilônia. Historicamente, houve uma opressão egípcia sobre os cananeus, mas jamais de acordo com os relatos do Êxodo. Porém, para haver maior legitimação, o escriba sacerdotal criou tal história para reforçar o povo de Israel como povo sempre oprimido e cativo perante as grandes nações. Agora a questão do extermínio do povo de Judá e de Israel, por ser encontrado no Deuteronômio e nos profetas, abrange um contexto no qual os reis não mais obedeciam à vontade de Yahweh, provavelmente produzido durante o exílio no qual há a reflexão da culpa e da responsabilidade dos monarcas sobre o exílio do seu povo.

Römer traz os seguintes modelos: Deuteronômio 28,63 e 68 fazem os seguintes anúncios: “[...] serás arrancado da terra de que vais tomar posse. [...] Yahweh te fará voltar em navios para o Egito79, por um caminho que eu te prometi nunca mais verias novamente [...]”. O autor Römer confirma que estas ameaças são cumpridas no final do livro dos Reis: “Assim Judá foi exilado para longe de sua terra [...]. Então todo o povo [que não foi deportado para a Babilônia [...] partiu e foi para o Egito [...]” (2 Reis 25,21/26). Os livros do Deuteronômio até Reis, conforme as

78 Ibidem, p. 47. De acordo com o autor, no tetrateuco só em Gênesis 34,30; Levítico 16,33; Números 33,52.

79 Sobre o mito da escravidão do Egito, as provas materiais apontam que a referida escravidão está vinculada ao

regime de corveia aplicado aos povos habitantes de Canaã no período da dominação egípcia da décima oitava à vigésima dinastias (aproximadamente de 1500 a 1100 a.C.), o qual não implicava na moradia dos povos cananeus no Egito, mas sim no pagamento de impostos através de mão de obra subalterna de tais povos. O que aconteceu foi que o faraó Ramsés III nas Batalhas de Djahy e do Delta (1178-1175 a.C.) lutou contra os povos do mar, e as venceu, porém, não teve condições de administrar a região de Canaã devido aos investimentos bélicos, o que consequentemente trouxe a liberdade do regime de corveia aos cananeus, e não porque a personagem epônima Moisés tirou os hebreus do Egito.

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pesquisas de Römer, estão, dessa forma, estreitamente ligados, a tal ponto que juntos explicam por que Israel e Judá não puderam escapar ao destino que fora anunciado pela personagem epônima fundante Moisés desde o começo.

Tudo isso se justifica como reflexão do período exílico, pois todos os profetas anunciaram o fim do Reino de Judá, e haveria uma ancestralidade epônima no anúncio oriundo da personagem epônima fundante Moisés. São literaturas elaboradas em um mesmo contexto de época por apresentarem os mesmos temas, e não escritas em épocas extremamente distintas como os escribas desejaram que todos acreditassem.

Relata o autor Thomas Römer que há também um argumento da crítica das formas para a unidade de Deuteronômio – Reis, pois na medida em que é deliberadamente composto como um único e grande discurso da personagem epônima fundante Moisés pronunciado no final de sua vida, o Deuteronômio, na perspectiva de Römer, proporciona o verdadeiro modelo para os discursos e testamentos no restante dos livros históricos (especialmente Josué 23, 1 Samuel 12, 1 Reis 8).

Neste tema, conclui Römer que tais observações referidas permitem ainda pensar que os livros do Deuteronômio até Reis formam uma “História Deuteronomista”, porém, em um sentido muito distinto daquele dado por Martin Noth.

Para Römer, não importa as discussões relacionadas à negação dos livros de Deuteronômio até Reis como não detentoras do discurso deuteronomista, pois, para o autor, é muito claro e é muito difícil contestar a sua posição, principalmente na questão dos “outros deuses” e no exílio, que são marcas contundentes do deuteronomista.

Mas sobre o apresentado, deve-se compreender que realmente o Deuteronômio e a História Deuteronomista correspondem a outro agrupamento separado do Pentateuco. Diversos temas, porém, foram inseridos não apenas no Tetrateuco como nos livros deuteronomistas na intenção de dar-lhes sequência histórica e legitimidade, como tentativa de vincular uns nos outros. Contudo, em uma análise mais apurada e detalhada, percebe-se que o Tetrateuco e os escritos deuteronomistas centralizam-se em temas completamente distintos.

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