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Capítulo II – O Senso Crítico sobre o Primeiro Templo

3. Perspectiva Literária de Mario Liverani

3.4 Do Messianismo Régio ao Messianismo Escatológico

Nas pesquisas do referido autor146, em todas as civilizações do antigo Oriente, a função basilar do rei é assegurar uma correta relação entre o mundo divino e o mundo humano; é, portanto, assegurar a seu reino justiça e prosperidade. Para o estudioso, a entronização de um novo rei é festejada como o início de uma nova era de paz e de felicidade. O pesquisador dá um exemplo com um hino para a introdução de Ramsés IV (por volta de 1150 a.C.):

Dia Feliz! Estão alegres céu e terra porque tu és grande senhor do Egito! Os fugitivos retornaram às suas cidades, quem se escondia aparece,

quem tinha fome sacia-se com alegria, quem tinha sede se inebria,

quem estava nu é revestido de linho fino, quem era esfarrapado veste brancas vestes, quem estava detido é libertado,

quem estava triste se alegra,

quem perturbava esta terra tornou-se pacífico.

E o referido autor147 apresenta a escrita de um funcionário assírio para a entronização do rei Assurbanípal (por volta de 670 a.C.):

Dias de justiça, anos de equidade, chuvas abundantes, cursos de água transbordante, comércio vivo... Os velhos dançam, os jovens cantam,

mulheres e raparigas felizes fazem festa.

Casa-se, geram-se filhos e filhas, os nascimentos crescem. Quem por seu delito fora condenado à morte,

o rei meu senhor faz viver.

Quem há anos estava na prisão é libertado. Quem há dias estava doente é curado.

O faminto é saciado, o exausto é ungido, o nu é vestido.

146

Ibidem, pp. 388-392.

147

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No pensamento do citado pesquisador148, é óbvio que elementos ocasionais e de propaganda, próprios do dia da coroação (anistia, distribuição de alimentos, festejos), sejam utilizados para compor um quadro dos valores e ambições mais gerais. Segundo o autor, no poema ugarítico de Keret (por volta de 1350 a.C.) dá-se um quadro às avessas, mas que utiliza os mesmos ingredientes para descrever um rei não mais capaz de desenvolver corretamente o seu ofício:

Não sentencies mais o caso da viúva, não julgueis mais o juízo do oprimido, não expulses mais quem rouba o pobre, não alimentes o órfão diante de ti nem a viúva às tuas costas.

Como companheira de leito tens a doença, como concubina tens a fraqueza.

Afasta-te da realeza e reinarei eu; do governo, e me estabelecerei eu!

Conclui o estudioso149 que, portanto, também na terra de Canaã, antes da existência de

Israel (pois o reino de Ugarit é datado de por volta de 6000 a 1190 a.C.), as concepções orientais antigas sobre a realeza eram correntes. Para o autor, é perfeitamente plausível que o ritual da coroação nos reinos de Israel e de Judá comportasse enunciações de glorificação do novo rei e de confiança em uma prosperidade e em uma justiça renovadas, enunciações de forte sabor popular e, portanto, capazes de tornar o novo rei simpático aos olhos do povo. Com efeito, para o pesquisador, há muito tempo foram indicados alguns Salmos (em particular os salmos 2,18,45,72,110 e outros) que parecem ser bem adequados à cerimônia de entronização e que, portanto, devem remontar ao período monárquico. O estudioso destaca um exemplo considerado suficiente:

Ó Deus, confia os teus julgamentos ao rei, a tua justiça a este filho do rei.

148 Ibidem, p. 389. 149

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Que ele governe o teu povo com justiça, e os teus humildes segundo o direito... Que ele faça justiça aos humildes do povo, seja a salvação dos pobres...

Os reis de Tarshish e das ilhas mandarão presentes; os reis de Shebá e de Sabá pagarão o tributo. Todos os reis se prosternarão diante dele, todas as nações o servirão.

Sim, ele livrará o pobre que clama, e os humildes privados de apoio. Ele tomará cuidado do pobre e do fraco: Aos pobres salvará a vida.

Ele os defenderá contra a brutalidade e a violência, dará muito pela vida deles...

Que haja na terra,

e até o topo das montanhas, uma vasta superfície de campos, cujas espigas ondulem como o Líbano,

e da cidade, só se verá uma terra verdejante! (Salmo 72)

De acordo com o referido pesquisador150, continua, pois, objeto de discussão se tais composições eram recitadas em ocasiões únicas – a cerimônia de coroação, em alguns casos o nascimento do herdeiro – ou anualmente repetidas na festa do Novo Ano. Nos estudos do autor, os salmos em questão são denominados “messiânicos”, porque estão particularmente ligados ao epíteto do rei como “ungido” ( .

! ,

) por Yahweh.

Considera o estudioso151 que, com este desastre no Reino de Judá, com o fim da monarquia e do exílio, a ritual exaltação normalmente expressa ao novo rei se transformou em expectativa de reconquista (sempre nos termos de justiça, prosperidade, paz) que devia recair sobre um rei potencial, candidato a desempenhar o papel de salvador e vingador do renascimento do Reino de Judá. Na perspectiva do referido pesquisador, essa evolução pode em parte ser seguida por meio das profecias “messiânicas” da época da crise política, depois do exílio e, enfim, na fase pós- exílica. Segundo o autor, já no tempo do desastre do reino setentrional, as profecias de Miqueias

150

Ibidem, p. 390.

151

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(5,2-7) e, sobretudo, do Proto-Isaías estabelecem um papel de rei-messias a um rebento da casa de Davi, no âmbito da confluência salvífica dos sobreviventes israelitas em Judá. Um exemplo disso, para o estudioso, é a passagem famosa sobre o rebento de Jessé (1 (Proto)Isaías 11,1-4).

Outro exemplo que o autor152 traz se encontra em Jeremias, na Jerusalém sob ameaça babilônia (entre o primeiro e o segundo assédio); a esperança está sempre posta na dinastia davídica, embora projetada para um futuro talvez próximo, mas não em referência ao rei atual: “Dias virão – oráculo de Yahweh – em que eu suscitarei a Davi um rebento legítimo: Um rei reina com competência, defende o direito e a justiça na terra. No tempo dele, Judá é salvo, Israel habita em segurança” (Jeremias 23,5-6).

Percebe o citado pesquisador153 que o nome atribuído ao rei-messias, “Yahweh é nossa justiça”, não pode deixar de ser polêmico em relação ao rei então no trono, Sedecias (cujo nome significa “Yahweh é minha justiça”). Afirma o autor154 que, durante o exílio babilônio, o messianismo assume formas e orientações diferentes e, certamente, a tradicional ligação entre linhagem davídica e esperança de resgate permanece e encontrará sua expressão politicamente mais funcional no apoio que Zerubabel receberá das profecias messiânicas de Zacarias (8-9). O estudioso lembra, porém, que há também quem, como o Deutero-Isaías, pense que a casa de Davi tenha acumulado muitas culpas, esteja fora do jogo e que o papel do messias se adapte melhor ao imperador persa. Para o pesquisador, obviamente a ideia (já em Antiguidades Judaicas XI 5-6) de que Ciro tenha sido inspirado pelas profecias de Isaías é, no mínimo, inverossímil, pois há, enfim, quem, como Ezequiel, raramente inclua referências de messianismo régio em suas perspectivas de retomada, todas do templo, e sacerdotais – e quando o faz parece querer evitar a palavra “rei” e, ao contrário, evidenciar a subordinação do “pastor” e “príncipe” a Yahweh: “Suscitarei à frente de meu rebanho um pastor único ( +/–

5+: -

); ele o apascentará, será seu pastor. Eu, Yahweh, serei seu Senhor e meu servo Davi será príncipe ( 0

;,

)no meio deles” (Ezequiel 34,23- 24).

No raciocínio do estudioso155, à medida que a ligação entre a liderança régia e perspectivas de retomada se distancia, a própria natureza do messianismo muda.

152 Ibidem, p. 390-391. 153 Ibidem, p. 391. 154 Ibidem, p. 391. 155 Ibidem, p. 391.

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Em primeiro lugar, para o autor, como consequência da crise profunda, há uma tendência a ressaltar não mais os aspectos triunfalistas da nova entronização, mas antes os da negatividade atual. Em segundo lugar, o citado pesquisador afirma que há uma tendência a dimensionar as expectativas mais no plano pessoal-existencial do que no político-nacional. Para ambas as tendências, segundo o autor, são particularmente indicativas as expressões do chamado “Servo de Yahweh” no Deutero-Isaías (2 (Deutero)Isaías 42,1-7; 49,1-9; 50,4-9), que acaba por se configurar na imagem do “justo sofredor” (52,13 – 53,12) mais do que na do messias. Observa o referido estudioso que, porém, a previsão da reconquista tem acentos propriamente messiânicos:

O Redentor (1 –

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) e o Santo de Israel, àquele cuja pessoa é desprezada e que o mundo abomina, ao escravo dos déspotas; reis virão e se levantarão, príncipes também... No tempo do favor, eu te respondi, no dia da salvação, vim em teu auxílio... reerguendo a terra, devolvendo em herança os patrimônios desolados, dizendo aos prisioneiros: ‘Sai!’ e aos que estão em trevas: ‘Mostrai-vos!’. Ao longo dos caminhos eles terão seus pastos, em todas as encostas escalvadas, suas pastagens. Não passarão nem fome nem sede... (Isaías 49,7-10)

Em terceiro lugar, aponta o autor156, faz-se passar a função messiânica da pessoa do rei ao povo todo de Israel, ou a Jerusalém, polo de atração para o mundo inteiro. Nesse contexto, conforme o pesquisador, a mensagem é a de certas passagens do Trito-Isaías:

As nações vão caminhar para a tua luz e os reis, para a claridade da tua aurora. Dirige os teus olhares em redor e vê: Eles se congregam todos e vêm a ti, teus filhos vão chegar de longe

e tuas filhas são seguradas firmemente no regaço.

Então verás, estarás radiante, teu coração estremecerá e se dilatará, pois para ti será desviada a opulência dos mares,

a fortuna das nações virá a ti. (3 (Trito)Isaías 60,3-5)

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Ressalta o estudioso que se sente o efeito de uma diáspora agora difundida até terras longínquas, de sonhos de riqueza e poder que não podem mais ser postos em um messias de tipo régio. Nas reflexões do autor, a tradição messiânica que partiu da celebração imediata do rei existente, que passou pela expectativa iminente, pôs agora bases para passar uma expectativa de longo prazo, propriamente escatológica, seja no nível pessoal, seja no nível de coletividade nacional e humana em geral.

Em suma, este item que o referido pesquisador expõe trata-se do desenvolvimento do messianismo régio para o messianismo escatológico, e este último é totalmente diferente do primeiro por não implicar necessariamente a figura do rei da dinastia davídica, mas a de outro rei qualquer, ou até mesmo outra pessoa que possa salvar o povo de Judá e trazer-lhes mais alívio de toda a opressão que eles passaram. No caso do exílio, é muito difícil que eles quisessem um rei para governá-los, e tal messias escatológico apareceria muito mais para livrá-los de seus apuros do que reiná-los e trazer-lhes mais prejuízos, como foi o caso do rei Ciro da Pérsia.