• Nenhum resultado encontrado

Capitulo I – A Questão Deuteronomista

2. Origens da Teoria Deuteronomista

2.4 Definição dos Autores “Deuteronomistas”

À definição dos autores Deuteronomistas, Thomas Römer81 faz referência a Martin Noth, que, por sua vez, afirma que o Deuteronomista (abreviação Dtr) foi um indivíduo que, sem nenhum vínculo institucional, a princípio, escreveu sua história, aparentemente para o seu próprio interesse, a fim de explicar a ruína de Judá e Jerusalém em aproximadamente 587 a.C.; pois para Noth, a história Deuteronomista foi “provavelmente o projeto independente de um homem em quem as catástrofes históricas por ele presenciadas insuflaram a curiosidade acerca do sentido daquilo que acontecera, e que procurou responder esta questão num relato histórico abrangente e completo”. O referido autor recapitula que, à antiga sociedade israelita ou judaíta, trata-se de uma posição anacrônica, pois como demonstra a pesquisa socioarqueológica e histórica, a instrução nas sociedades agrárias, como eram Judá e Israel, estava restrita a uma porcentagem muito pequena da população, que, de acordo com alguns estudiosos, não excedia nem um por cento no Egito ou na Mesopotâmia.

Segundo o estudioso citado, evidentemente um número maior de pessoas era capaz de escrever o seu nome e talvez algumas palavras, ou até cartas básicas; mas a capacidade de escrever rolos ainda se limitava a um pequeno grupo de funcionários e escribas82. Continua

81 Ibidem, p. 50.

82 Ibidem, p. 52. O autor recomenda conferir especialmente a importante obra de JAMIESON-DRAKE, D.W. Scribes

and School in Monarchic Judah. Journal for the Study of the Old Testament Supplement Series 66. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1991, que mostra que se pode pressupor para Judá, desde o século VII a.C., capacidades rudimentares de escrita para a população.

64

Thomas Römer que, no Judá monárquico, esses “intelectuais” apenas podem estar situados no palácio e no santuário real, o Templo de Jerusalém, pois não há indícios de um sistema educacional difundido no Judá monárquico, nem de uma atividade literária como “atividade de lazer” ou como ocupação não institucional. De acordo com o citado autor, no território de Israel e Judá, esse fenômeno não ocorre antes do período helenístico; por exemplo o livro de !

'+ +, -

, ou o Eclesiastes, pode, na verdade, segundo o referido pesquisador, refletir a individualização da atividade literária.

Conforme o afirmado anteriormente pelo estudioso citado, havia o poder dos escribas por meio da escrita neste contexto da reforma josiânica, e, de fato, tal reforma foi obra de diversos escribas apoiados e que apoiavam a coroa de Judá, e é completamente rechaçada a hipótese de Martin Noth uma individualização da atividade literária neste contexto da reforma josiânica, que ocorre por volta do ano de 622 a.C., e apenas vem a ocorrer no período helenístico (323-146 a.C.). Ou seja, qualquer tentativa de colocar a individualização da atividade literária antes do período helenístico é discrepante com a realidade.

De acordo com o raciocínio de Thomas Römer, existe quase um consenso sobre o fato de que Judá não se tornou um estado monárquico desenvolvido antes do século VIII a.C., pois existem indícios arqueológicos do crescimento de Jerusalém nesta época83; aponta o referido estudioso que estas mudanças implicam em uma administração real mais desenvolvida com registros, arquivos etc. Conforme o raciocínio do pesquisador citado, de certa forma, o progresso de Judá e de Jerusalém é também consequência da destruição da capital de Israel, a cidade de Samaria, pelos assírios e sua transformação em província assíria, e, consequentemente, o autor percebe que lê-se muitas vezes sobre refugiados do Norte que chegavam a Jerusalém, e mesmo assim o referido autor observa que deve-se ter cuidado com concepções demasiadamente anacrônicas de refugiados, pois eles podem ser oriundos desde a data da destruição do reino de Israel, até mesmo anteriores ou posteriores à referida data, porém, tais dados são impossíveis de serem confirmados hoje.

Ressalta o estudioso que alguns habitantes de Israel podem ter chegado a Judá após o ano da destruição do seu Reino do Norte, por volta de 722 a.C., pois o crescimento de Jerusalém

83 Ibidem, p. 52. O autor sugere conferir AULD, A.G.; STEINER, M.L. Jerusalem I: From the Bronze Age to the

65

resulta primariamente do vácuo criado pela incorporação de Israel e dos Estados arameus ao império assírio, e certamente implicou um número sempre maior de funcionários poderosos.

Deve-se, porém, re-enfatizar que a melhor fase administrativa do reino de Judá ocorreu nas gestões dos reis Acaz (c. 743-727 a.C. – antes da queda do Reino do Norte) e Manassés (c. 687- 643 a.C.), que teve o apoio da Assíria, e ao mesmo tempo é muito mal falada pelo deuteronomista por representar uma perda total da identidade do povo de Judá. Mas, mesmo assim, percebe-se que os reis Acaz e Manassés de alguma forma, podem ter preparado o terreno para receber os habitantes do Reino de Israel remanescentes da destruição. Contudo, houve o oportunismo de Josias, que esperou a morte do rei assírio Assurbanípal (que reinou por volta de 668 a 627 a.C.) para iniciar o projeto da Reforma Deuteronomista por volta de 622 a.C.

Conclui o pesquisador que os “deuteronomistas” deveriam, portanto, ser situados entre os altos funcionários de Jerusalém, provavelmente entre os escribas, mesmo que não se deva excluir que os funcionários de outros grupos (sacerdotes, “ministros”) tenham apoiado suas ideias políticas e religiosas.

Desta forma, o estudioso questiona se por acaso deve-se falar de um “movimento” deuteronomista, de um “partido” deuteronomista, ou de uma “escola” deuteronomista, pois Römer afirma que, de acordo com Lohfink, “movimento” implica uma grande parte da população a tomar parte84 nele e isso dificilmente se ajusta aos deuteronomistas. Para o autor, caso a ideia de um “partido” for tomada no sentido estrito de partido político com um número grande de membros, deve ser evitada; e se “partido” for tomado em um sentido mais vago de grupo de indivíduos que pensam da mesma maneira, o termo poderia ser apropriado para os deuteronomistas.

E, conforme o pensamento de Thomas Römer, caso a expressão “escola deuteronomista” for tomada primariamente como a referir-se a uma instituição educativa, ela seria enganosa, mas caso denote um (pequeno) grupo de autores, redatores ou compiladores que compartilham a mesma ideologia e as mesmas técnicas retóricas e estilísticas, poder-se-ia falar de uma “escola deuteronomista” (assim como se fala também de uma escola de artistas ou filósofos). No

84 Ibidem, p. 53. LOHFINK, N. Was There a Deuteronomistic Movement? In: SCHEARING, L.S; McKENZIE, S.L.

(eds.). Those elusive Deuteronomists: the phenomenon of pan-deuteronomism. Journal for the Study of the Old

Testament Supplement Series 268; Sheffield: Sheffield Academic Press, 1999, pp. 36-66, conforme Römer, está inclinado a admitir a ideia de um movimento deuteronomista para o tempo de Josias; mas esta é uma ideia bastante romântica, conforme o autor Römer, baseada em determinada leitura de 2 Reis 22-23.

66

raciocínio do referido autor, outros podem preferir termos mais neutros como “grupo” ou “círculo”; no entanto, a expressão “escola” lembra mais claramente o ambiente de escribas e intelectuais; conclui o estudioso citado que, por esse motivo, este termo será preferido, mas não será utilizado com exclusividade.

A perspectiva do citado pesquisador está correta, pois não se pode tomar os Deuteronomistas como uma escola independente, mas sim como um grupo de escribas que objetivou propagar intensamente o rei Josias como o monarca central, descendente de Davi, rei de Judá e dos remanescentes de Israel, cujo centro de devoção a Yahweh seria única e exclusivamente a cidade de Jerusalém. Caso os deuteronomistas não tivessem nenhuma relação com a coroa de Judá, não haveria sentido escrever tanta literatura que desse tanta ênfase nos pontos deuteronomistas ao ponto de buscar convencer a todos que Josias de fato era o rei legitimado para governar Judá e Israel e a sua cidade, de Jerusalém, seria a principal da devoção do culto a Yahweh.

O referido autor nos dá uma sugestão para imaginar as atividades literárias desses escribas (deuteronomistas), ao expressar que a tarefa dos escribas é manter os arquivos e registros dos impostos para as necessidades da corte e da elite urbana; pois na Antiguidade os santuários e os palácios eram também receptores de impostos, e os escribas tinham a função de manter os anais, e estavam envolvidos na correspondência diplomática e compilavam as leis. O pesquisador citado ressalta que se conhece que os escribas também mantinham os registros de acontecimentos memoráveis, por exemplo, das atividades proféticas em palácios e templos, e os escribas também estavam incumbidos de compor propaganda, inscrições ou textos, porém a sua capacidade de escrever conferia-lhes também certa independência do rei, que nem sempre sabia escrever, e, como se pode deduzir dos textos egípcios, podem até mesmo ter-se considerado a si mesmos intelectualmente superiores. Na perspectiva do estudioso, é claro que os escribas também podiam escrever por própria iniciativa e tentar, através de seus escritos, trazer novas ideias para a política da corte.

Afirma Thomas Römer85 que os rolos (de papiro ou às vezes de couro) em que eles escreviam eram guardados em arquivos ou “bibliotecas” situados no palácio ou no templo, e de acordo com o referido autor, não existem provas, para os tempos da monarquia, de rolos guardados por indivíduos privadamente, e é impossível imaginar centenas de rolos a circular por

85

67

todo o Reino do Sul. Para o pesquisador citado, a primeira localização dos livros é no palácio e no santuário e esses rolos existiam provavelmente em um único exemplar. Relata o estudioso que esses rolos ou partes deles talvez tenham sido lidos em ocasiões especiais para o rei ou para o povo reunido no santuário86. O autor observa que provavelmente os rolos eram também usados para ensinar aos escribas a “história” e a escrita. O pesquisador percebe que, de tempos em tempos, faziam-se novas cópias desses rolos, seja porque o papiro estava muito danificado, ou por causa da necessidade de atualizar ou corrigir o rolo anterior. Seja como for, conclui o autor, não se deve imaginar a ação de copiar rolos nos moldes do trabalho dos monges nos mosteiros medievais, pois copiar um rolo significava sempre transformação.

De acordo com Thomas Römer, pode-se imaginar a seguir o raciocínio de Person, uma organização hierárquica da corporação deuteronomista na qual os escribas inferiores punham por escrito aquilo que poucos escribas do escalão superior lhes ditavam. O autor comenta que a ideia muito comum de que copiar incluía preservar servilmente os textos mais antigos não se aplica às práticas escriturais na Antiguidade. Conforme o pesquisador, os exemplos da recópia da epopeia de Gilgamesh (na qual há alguns documentos mais antigos conservados) ou de inscrições assírias demonstraram claramente uma atitude muito livre em relação aos textos mais antigos. Conclui o estudioso que isso significa que não podemos reconstruir exatamente os textos mais antigos que foram reeditados em tempos posteriores, mesmo que alguns biblistas ainda pensem poder fazê-lo. Para o pesquisador, deve-se contentar com as linhas gerais dos documentos mais antigos hipoteticamente reconstruídos.

Thomas Römer, ao citar Martin Noth, afirma que este último, acertadamente, afirma que a corporação de escribas deuteronomistas eram autores e redatores, pois em alguns casos usavam realmente outros documentos, seja para reunir informações (cf. as frequentes referências aos anais reais dos livros dos Reis) ou para integrá-los em sua obra (para o autor, este pode ser o caso do “livro dos salvadores” ou “livro dos justos”, que foi usado para criar o período dos juízes); conclui o autor que podem da mesma forma ter posto por escrito as assim chamadas “tradições orais”. Provavelmente, conforme o autor, combinavam também rolos independentes menores em um único rolo (afirma o pesquisador que isso aconteceu de certa forma também com a epopeia de

86

Ibidem, p. 54. Conferir, por exemplo, Jeremias 36. Segundo Römer, mesmo que este texto tenha sido escrito no período persa, pode refletir práticas do tempo da monarquia.

68

Gilgamesh: histórias heroicas independentes mais antigas foram arranjadas cronologicamente e editadas em uma única série de tabuinhas87).

Conforme o pensamento do estudioso, já que a Bíblia Hebraica contém textos e literatura anônimos (o autor aponta “com a exceção de !

'+ +,

?”, com o ponto de interrogação, pois a história deste livro é conhecida, pois atribui-se a obra a “Salomão”, mas não foi de fato o “filho de Davi” quem escreveu a obra), deve-se ter cuidado de não introduzir um conceito moderno anacrônico e individualista de autoria. Conclui o referido autor que, para os escribas israelitas, judaítas e judeus do século VIII ao século IV a.C. não se pode fazer nenhuma distinção nítida entre autor e redator88.

Em suma, conforme os apontamentos anteriores do estudioso, os escribas tinham muitas responsabilidades e eram os mais próximos da coroa, cujos escritos poderiam ser encontrados ou nos templos ou no próprio palácio, e devido à inúmeras cópias do mesmo texto, e à hierarquia dos escribas, muitas vezes, o texto que era transmitido não era o texto original e poderiam ser acrescentados conteúdos de acordo com o contexto de época, ao invés dos conteúdos originais dos textos.

Ao senso comum das ulteriores indicações acerca das origens e da composição da escola deuteronomista, há um texto na Bíblia Hebraica que muitas vezes é usado para reconstruir a assim chamada reforma de Josias: 2 Reis 22-23.

87

Ibidem, p. 55. O autor sugere conferir TIGAY, J.H. The Evolution of the Gilgamesh Epic. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1982.

88 Ibidem, p. 55. Römer afirmou na época em que escreveu o livro (no ano de 2005) que J. van Seters fustigou a

frequente referência a redatores na ciência bíblica. Relata o autor que, de acordo com van Seters, a ideia de redatores é um grande defeito na atual crítica da Bíblia Hebraica (o autor sugere conferir SETERS, J. van. The Redactor in Biblical Studies: A Nineteenth Century Anachronism. Journal of Northwest Semitic Languages 29, 2003, pp. 1-19). Römer afirma que concorda com van Seters que não se deveria usar o termo redator para os editores da “forma final” de um texto, já que nunca existiu uma tal forma final. Mas pode-se, e até dever-se-ia, usar um termo no sentido mais amplo para designar a reelaboração criativa e a editoração de documentos mais antigos (Romer sugere conferir, por exemplo, The Chambers Dictionary. Edinburgh: Chambers Harrap Publishers, 2003).

69