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Capítulo II – O Senso Crítico sobre o Primeiro Templo

4. Perspectiva Arqueológica de Finkelstein e Silberman

4.5 O “Legado de Davi”

Conforme Finkelstein e Silberman180, definitivamente não há razão para duvidar da historicidade de Davi e de Salomão, porém, subsistem razões de sobra para questionar a extensão e o esplendor do reinado de ambos. Para os autores, caso não tenha existido um grande império, nem grandes monumentos, nem uma capital magnífica, questiona-se a natureza do reinado de Davi. 179 Ibidem, p. 190. 180 Ibidem, pp. 199-200.

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Relatam os estudiosos181 que a cultura material das regiões montanhosas do tempo de Davi permaneceu simples, pois a terra era esmagadoramente rural, sem nenhum traço de documentos escritos, de inscrições ou mesmo de sinais do tipo alfabetização generalizada, que seriam necessários para o funcionamento de uma monarquia característica. Para os pesquisadores, do ponto de vista demográfico, é improvável que as áreas de assentamentos israelitas tenham sido homogêneas, pois é difícil constatar qualquer indício de cultura unificada ou de um Estado administrado de um centro. Conforme as pesquisas dos autores, a área ao norte de Jerusalém era povoada de forma densa, enquanto a área ao sul de Jerusalém – o eixo do futuro reino de Judá – ainda era de povoamento esparso, pois a própria Jerusalém era, quando muito, pouco mais que uma aldeia típica de regiões montanhosas e, conforme o parecer dos estudiosos, não se pode afirmar mais nada além disso.

Segundo as pesquisas de Finkelstein e Silberman182, as estimativas de população para as fases posteriores ao período dos assentamentos israelitas se aplicam, também, ao século X a.C., pois tais estimativas dão ideia da escala de possibilidades históricas. Conforme os pesquisadores, de um total de aproximadamente 45 mil pessoas morando nas regiões montanhosas, 90% deve ter habitado as vilas do norte. Percebem os estudiosos que tal porcentagem teria deixado cerca de 5 mil pessoas espalhadas entre Jerusalém e Hebron, e cerca de 20 pequenas aldeias em Judá, com grupos adicionais a permanecer, talvez, como pastores nômades.

No raciocínio dos estudiosos, uma sociedade pequena e isolada como essa, por certo, teria alimentado, com carinho, a memória de um líder extraordinário como Davi, enquanto seus descendentes continuavam a governar em Jerusalém, durante os quatro séculos seguintes. De acordo com os autores, no século X a.C., o domínio de Davi não se estendia sobre nenhum império, nem sobre cidades palacianas, ou sobre nenhuma capital espetacular. Concluem os pesquisadores que, sob o aspecto arqueológico, não é possível dizer nada sobre Davi e Salomão, exceto que existiram, e que sua lenda e as suas histórias fabulosas permaneceram e resistiram aos tempos.

Mediante o pensamento dos pesquisadores183, ainda assim, a fascinação da história deuteronomista do século VII a.C. pelas memórias de Davi e Salomão – e, de fato, a aparente e constante veneração dessas personagens pelos judaicos – pode ser a melhor, se não a única

181 Ibidem, pp. 199-200. 182 Ibidem, p. 200. 183 Ibidem, pp. 200-201.

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evidência para a existência de algum tipo de Estado unificado israelita. Consideram os autores que o fato de os deuteronomistas usarem a monarquia unificada como ferramenta muito poderosa de propaganda política sugere que, no seu tempo, o episódio de Davi e Salomão, como governantes de um território relativamente maior nas regiões centrais, permanecia vivo e amplamente verossímil.

Mesmo assim, Finkelstein e Silberman confiam nos dados arqueológicos, e, com razão, não ousam misturar os relatos bíblicos com as descobertas arqueológicas, obviamente extrabíblicas. Os autores também defendem a origem das histórias de Davi e de Salomão durante a reforma josiânica do século VII a.C.

Relatam os autores184 que é possível que, por volta do século VII a.C., as condições em Judá tenham mudado um pouco além de uma avaliação, pois Jerusalém era, então, uma cidade relativamente grande, dominada por um templo ao Deus de Israel, que servia como único santuário nacional. Conforme os estudiosos, as instituições da monarquia, um exército profissional e a administração tinham atingido o nível de sofisticação que se comparava à complexidade das instituições das realezas dos Reinos vizinhos, a chegar mesmo a excedê-las. E, novamente, ressaltam os pesquisadores, pode-se ver as paisagens e os costumes de Judá, no século VII a.C., como cenário para um conto bíblico inesquecível, dessa vez uma mitológica era de ouro. Segundo os autores, a deslumbrante e luxuosa visita da rainha de Sabá a Jerusalém (1 Reis 10,1-10) e o comércio de mercadorias raras com mercados distantes como a terra de Ofir, ao sul (1 Reis 9,28), sem dúvida refletem a participação de Judá no lucrativo comércio do século VII a.C.

Conforme os pesquisadores, o mesmo é verdadeiro para a descrição da construção de Tamar no deserto (1 Reis 9,18), e para as expedições comerciais a terras distantes, a partir de Ezion-geber, no golfo de Aqaba (1 Reis 9,26), dois sítios que foram analisados e identificados com segurança e que não eram habitados antes do final dos tempos monárquicos. E a guarda real, nos relatos dos estudiosos, formada por cereteus e feleteus (2 Samuel 8,18), anteriormente assumida pelos conhecedores do assunto como de origem egeia, poderia ser compreendida no cenário do serviço de gregos mercenários como a mais adiantada força combatente do seu tempo, no exército do Egito e, talvez, no exército judaico, no século VII a.C.

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Tais ilustrações de corte, por exemplo, podem ser encontradas em diversos momentos dos livros de Reis, mesmo nas narrativas do rei Acabe e do profeta Elias, e consideradas como contemporâneas da reforma josiânica datada do século VII a.C.

Para os autores185, no final dos tempos monárquicos, elaborada ideologia tinha sido desenvolvida em Judá e em Jerusalém, para validar a conexão entre o herdeiro de Davi e o destino do povo de Israel. Relatam os estudiosos que, de acordo com a história deuteronomista, o piedoso Davi foi o primeiro a parar o ciclo de idolatria (pelo povo de Israel) e da retribuição divina (por Yahweh), e graças a sua devoção, fidelidade e integridade, Yahweh o ajudou a completar o trabalho inacabado de Josué, ou seja, conquistar o resto da Terra Prometida e estabelecer um império glorioso sobre todos os vastos territórios prometidos a Abraão.

Na visão dos autores, essas eram as esperanças fundamentadas na ideologia da crença em Yahweh, não retratos históricos acurados, pois constituíram elemento central da visão contagiante do renascimento nacional no século VII a.C., que buscava reunir o povo espalhado, disperso e desconfiado, para provar-lhe que havia vivenciado uma história emocionante e arrebatadora sob a intervenção direta de Yahweh. Atentam os pesquisadores que o épico glorioso da monarquia unificada era – como as narrativas dos patriarcas e as sagas do Êxodo e da conquista de Canaã – uma brilhante composição que entrelaçou antigos contos heroicos e lendas, numa profecia coerente e persuasiva para o povo de Israel, no século VII a.C. Entretanto, as narrativas dos patriarcas e as sagas do Êxodo podem ser consideradas produções pós-exílicas, e a conquista de Canaã pré-exílica.

Conforme a pesquisa dos estudiosos186, para o povo de Judá do tempo em que o épico bíblico foi elaborado pela primeira vez, um novo Davi tinha assumido o trono, com a intenção de restaurar a glória de seus distantes antepassados; a partir disso Josias foi descrito como o mais dedicado de todos os reis de Judá; conforme o pensamento dos autores, Josias foi capaz de retornar ao tempo da monarquia unificada no seu próprio tempo. Para os pesquisadores, ao purificar Judá da abominação da idolatria – introduzida em Jerusalém por Salomão, com seu harém de mulheres estrangeiras (1 Reis 11,1-8) –, Josias pôde anular as transgressões que tinham provocado a destruição do ‘império’ de Davi. Consideram os estudiosos que aquilo que os

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Ibidem, p. 202.

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historiadores do Deuteronômio queriam dizer é simples e convincente: ainda há uma maneira ou forma de recuperar a glória do passado.

Assim, atentam os autores187, Josias iniciou a instituição de uma monarquia unificada que relacionaria Judá aos territórios do antigo reino do norte, por meio das instituições da realeza, das forças militares e de uma sincera devoção a Jerusalém, que é tão fundamental à narrativa bíblica de Davi. Conforme os pesquisadores, como monarca sentado no trono de Davi, em Jerusalém, Josias era o único herdeiro legítimo do império davídico, ou seja, de seus territórios, e iria ‘recuperar’ os territórios do reino do norte, então destruído, o reino que tinha nascido dos pecados de Salomão, e as palavras do livro de 1 Reis 4,25, que “Judá e Israel habitaram em segurança, de Dan e até mesmo Berseba”, resumem para os autores aquelas esperanças de expansão territorial e a busca por tempos prósperos e pacíficos, semelhantes aos do passado mítico, quando um rei governou de Jerusalém sobre todos os territórios reunidos de Judá e de Israel.

Em suma, conforme o deuteronomista, Josias virou o salvador de Judá de acordo com a literatura deuteronomista, que além de legitimar Josias como representante da casa de Davi, o incumbiu de exterminar as falhas de seus ancestrais através da sua iconoclastia, um detalhe é que a inserção da cobra Neustã como objeto destruído por Josias trata-se de uma inserção sacerdotal, pois corresponde a Moisés, e não à reforma josiânica.

Sumarizam Finkelstein e Silberman188 que, conforme foi observado, a realidade histórica do reino de Davi e de Salomão era bem diferente do relato, pois era parte da grande transformação demográfica que culminaria na emergência dos reinos de Judá e de Israel, em uma sequência muito diversa daquela narrada na Bíblia.

Os respectivos reinos de Israel e Judá tiveram uma origem autóctone, e não como uma cisão, conforme o relato bíblico após a morte do rei Salomão.

Foi analisado neste capítulo que se findam as formas de hermenêutica do senso comum bíblico, que são três: fundamentalista, conservadora e devocional, que não objetivam negar os mitos e fábulas da Bíblia. Em seguida, apresentou-se duas formas de análise que fundamentam o senso crítico sobre a existência dos eventos apresentados na narrativa bíblica, que são a crítica literária de Mario Liverani e a arqueologia apresentada por Finkelstein e Silberman. Esses

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Ibidem, p. 203.

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estudos (de Mario Liverani e de Finkelstein e Silberman) estão mais voltados ao contexto de Davi e Salomão. Em seguida, os mesmos instrumentos estarão direcionados para o objeto do presente estudo, que é o Templo pré-exílico, como será visto no próximo capítulo.

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