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Capítulo V – Relevância da Memória do Primeiro Templo

1. O Programa Ideológico do Hexateuco

De acordo com Eckart Otto256, depois da vitória de Ciro II sobre os babilônios, em 539 a.C., que trouxe o fim da dominação babilônica tardia, Judá passou para a supremacia persa. Conforme o autor, assim começou uma nova era que a Bíblia associou com o fim do tempo do exílio (Esdras 1-2). Segundo o raciocínio do estudioso, no período exílico tinham surgido, com o escrito Sacerdotal e o Deuteronômio Exílico, duas grandes narrativas dos aarônidas e dos sadoquitas, que narram a história de Yahweh e de seu povo de formas diferentes. Nas ênfases de Otto, como no período do exílio prevaleceu o monoteísmo, já não podia haver depois do exílio outras narrativas concorrentes sobre as origens de Israel.

Antes, Yahweh, a única divindade masculina de Israel tinha de ter uma única história com seu povo. Portanto, considera o pesquisador, a reunião literária das duas narrativas exílicas das origens no tempo pós-exílico foi uma necessidade ideológica, e a formação histórico-literária do Pentateuco uma função do primeiro mandamento do Decálogo. No entanto, adverte Otto, não é só a consequência das ideias que compõem a ideologia, que escreve a história cultural, mas as ideias precisam de uma fundamentação pelos interesses de grupos portadores de tais ideias, e dessa forma acontece também com a história literária dos livros do Pentateuco.

Segundo as pesquisas de Eckart Otto257, no pós-exílio, o sacerdócio sadoquita em Jerusalém reintegrou os aarônidas e autodesignou-se como aarônida, com o recurso à tese da descendência levítica comum, que seria aarônida, enquanto se salientava a procedência sadoquita do sumo sacerdote como alguém que se destacava dentro do sacerdócio aarônida. Relata o autor que a integração dos aarônidas no sacerdócio sadoquita requeria também a vinculação literária do escrito Sacerdotal e do Deuteronômio. Conforme Eckart Otto, já a releitura do Código da Aliança no Deuteronômio, nas releituras exílicas do Deuteronômio e no escrito Sacerdotal, os sacerdócios mostraram sua erudição escriturística, a qual favorece agora o trabalho dos autores sacerdotais dos livros do Pentateuco no período pós-exílico. Na visão do autor, a mediação literária entre o Deuteronômio e o escrito Sacerdotal é facilitada pelo fato de que a narração do escrito Sacerdotal vai desde a criação até a Montanha de Yahweh, portanto, conclui o autor, ela termina ali onde começa o Deuteronômio exílico, que foi vinculado pela redação de Moabe com o livro de Josué.

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OTTO, E. op. cit., pp. 199-206.

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Desse modo, continua Eckart Otto, forma-se naquele instante, na conexão, um arco narrativo desde a criação até a tomada da terra. No entanto, percebe Otto, os autores do Hexateuco, que se formou dessa maneira, não conectam o escrito Sacerdotal e o Deuteronômio de modo meramente mecânico-aditivo; nos livros de Gênesis e do Êxodo, eles usam também as fontes do Deuteronômio e do escrito Sacerdotal, isto é, as fontes de suas fontes. Dessa maneira, conclui Eckart Otto, eles inserem na perícope do Sinai o Código da Aliança e o Decálogo como fonte do Deuteronômio, no Gênesis as fontes das narrativas dos patriarcas e matriarcas provenientes do escrito Sacerdotal, e procedem do mesmo modo com a inserção da narrativa de Moisés-Êxodo pré-sacerdotal. Assim, atenta o pesquisador, eles constroem um arco narrativo que tem dois pilares principais, redigidos pelos autores pós-exílicos:

1º) A narrativa com Abraão em Gênesis 15, que é anteposta à narrativa sacerdotal da aliança em Gênesis 17.

2º) A narrativa da Aliança do livro de Josué, em Josué 24, que segue depois do discurso deuteronomista de encerramento proferido por Josué em Moabe (Josué 23).

Esses dois pilares principais, de acordo com Eckart Otto, colocam o tema da posse da terra como o centro do Hexateuco:

Naquele dia, Yahweh estabeleceu com Abrão esta aliança: “A teus descendentes darei esta terra, do rio do Egito até o grande rio, o Eufrates”. (Gênesis 15,18)

Dei-vos uma terra que não exigiu de vós trabalho algum, e cidades que não construístes, e vos assentastes nelas e comestes de vinhas e olivais que não plantastes. (Josué 24,13)

Conforme os estudos de Otto258, o grande projeto da distribuição da terra (Josué 13-21) é colocado na frente da conclusão da aliança em Josué 21: “Assim, Yahweh deu a Israel toda a terra que havia prometido a seus pais sob juramento. Eles tomaram posse dela e nela habitavam” (Josué 21,43).

Enfatiza o autor259 que, de acordo com essa visão, o objetivo da criação da história universal (Genesis 1-11) seria que Israel se tornasse sedentário na terra prometida de Yahweh e

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Ibidem, p. 201.

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encontrasse seu “repouso”. Afirma Otto que, por volta de meados do século V a.C., o Hexateuco interfere por meio do enraizamento da distribuição da terra na história primitiva de Israel numa discussão intrajudaica entre a diáspora e os habitantes do território de Israel e Judá, travada também no livro de Ezequiel (Ezequiel 40-48). Nos estudos do pesquisador, representantes do judaísmo da diáspora na Mesopotâmia exigem que, no caso do seu retorno, a posse da terra de Judá seja redistribuída. Enfatiza Otto que os autores do Hexateuco afirmam objetivamente que, já na história das origens de Israel, a terra teria sido distribuída às tribos por Josué de uma forma válida para todos os tempos.

Atenta o autor que, já na conceituação deuteronomista da redação de Moabe, que conectou o Deuteronômio com o livro de Josué, apresentou-se uma distribuição de tarefas entre Moisés e Josué, de tal forma que Moisés seria responsável pela mediação da lei e da conclusão da Aliança no Horeb e em Moabe, e Josué, pela condução de Israel na caminhada para a Terra Prometida. O Hexateuco, nas conclusões de Otto, retorna a isso e atribui a Josué também a função da distribuição da terra (Josué 13-21). Conforme o autor, a posse da terra e, com isso, a figura de Josué passam no Hexateuco com tanta insistência ao primeiro plano que Josué pode assumir, com a conclusão da aliança, em Siquém (Josué 24,26). Otto ressalta que o escrito Sacerdotal esboçou Moisés no papel de um interlocutor exclusivo de Yahweh e conferiu um selo de honra aos sacerdotes aarônidas que atribuíram sua descendência a Aarão, o irmão de Moisés.

Na visão do autor, a localização da habitação de Yahweh no meio de seu povo no deserto longe da Terra Prometida mostra que isso expressou a perspectiva da diáspora defendida pelo escrito Sacerdotal, e o Deuteronômio exílico reagiu a essa perspectiva e vinculou igualmente Moisés com o Horeb no deserto, mas já o aproximou, mediante o motivo da aliança de Moabe (Deuteronômio 29-30), da terra cultivável e atribuiu a Josué a realização da tomada da terra. Conforme Otto, os autores exílicos da redação de Moabe utilizaram em relação à função de Josué na tomada da terra noções já estabelecidas nas tradições pré-exílicas da tomada da terra (Josué 2- 9). Percebe o autor que o Hexateuco seguiu tal tradição ao integrar o Deuteronômio e o livro de Josué na redação de Moabe, a relacionar o tema da posse da terra a oeste do Jordão e não com Moisés, mas com Josué, que se tornou o patriarca da reivindicação da terra por Israel.

Na visão de Otto, o Hexateuco defendia a tese de um “Grande Israel” com a inclusão das tribos setentrionais de Israel, isto é, da Samaria, que pereceram na conquista assíria de 722 a 720 a.C., e fez com que a conclusão da aliança (Josué 24) não ocorresse em Jerusalém, mas na cidade

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de Siquém, desde os tempos mais antigos relacionada ao patriarca Jacó (Gênesis 33,18-20). Afirma Otto que o ideal do Grande Israel, composto de Judá e Israel, que está na base desta construção, tem uma história prévia que remonta ao século VII a.C. Salienta o autor que, já na obra historiográfica deuteronomista da época de Josias (1 Samuel 1 – 2 Reis 23), projetava-se na apresentação da monarquia primitiva nos tempos mitológicos dravídico, e especialmente salomônico, uma perspectiva pan-israelita da união de Judá e Israel, perspectiva que, por sua vez, surgiu no tempo de Josias, da esperança de que, após a retirada da ocupação assíria, seria possível unir o território do Reino do Norte de Israel com o Sul e Jerusalém como centro (Josué 8,23b- 9,6).

O Deuteronômio pré-exílico tardio fornece a justificativa para a exigência da centralização de culto em Jerusalém. Conta Otto que, na obra historiográfica deuteronomista do reinado de Josias, criticavam-se os reis do Reino do Norte, que tinham instalado os santuários nacionais em Betel e em Dã. Relata o autor que tal “pecado de Jeroboão” (1 Reis 12) seria uma violação do mandamento da centralização, e seria por causa dele que o Reino do Norte teria perecido na conquista dos assírios (2 Reis 17). No entanto, lembra Otto, depois do colapso do Império Assírio e da retirada dos assírios da Samaria, a expectativa do período josiânico era poder anexar o Norte ao Sul. Porém, afirma o autor que, com a morte de Josias, tal expectativa fracassou, e o livro de Josué, redigido no século VII, compartilhava a perspectiva pan-israelita do reinado de Josias, utilizada pela redação exílica de Moabe ao conectar o Deuteronômio com o livro de Josué (Deuteronômio 1 – Josué 23).

Na sequência do raciocínio de Otto, o Hexateuco pós-exílico retoma isso na recepção da perspectiva pan-israelita, ao concluir o livro de Josué em Siquém (Josué 24). Dessa maneira, considera o estudioso, o Hexateuco contradisse a definição de “Israel” por meio de um “Pequeno Israel” restrito a Judá. Continua o estudioso a raciocinar que, com a separação da Samaria (Neemias 4-7), tal definição recebeu seu programa nas narrativas contemporâneas de Neemias, contidas no livro homônimo. De acordo com Otto, assim como o seu protagonista Neemias, que tinha que vir da diáspora a Jerusalém (445-433 a.C.), as narrativas de Neemias fizeram prevalecer uma perspectiva da diáspora que favorecia uma separação dos “samaritanos” do Norte. Segundo o pesquisador, ao contrário disso, o Hexateuco defendia a visão de escribas do território de Judá, que consideravam o Norte do antigo Reino da Samaria uma parte de “Israel”.

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No entanto, atenta Otto260, os autores escribas do Hexateuco tomaram partido não apenas em discursos intrajudaico; para o estudioso, eles se confrontaram também com a ideologia imperial do poder hegemônico persa, que, com o ocaso do Império Babilônico, tinha assumido em 539 a.C. a função imperial da província de Yehud. Relata o pesquisador que, ao colocar no centro do interesse o tema da terra dada por Yahweh ao povo de Israel, os autores do Hexateuco tematizaram simultaneamente um aspecto importante da ideologia imperial persa-aquemênida. Para Otto, segundo essa ideologia, faz parte da ordem de mundo criada pela divindade imperial persa Ahuramazda que ele, como divindade criadora, atribuiu a cada povo seu lugar neste mundo, cujo centro é Persépolis.

Declara o estudioso que o Hexateuco contradisse isso já com a criação do mundo em Gênesis 1, proveniente do escrito Sacerdotal: não Ahuramazda, mas Yahweh, a divindade dos judeus, seria o criador do mundo, e os judeus teriam recebido sua terra dele, não da divindade imperial persa – assim alega o fim do Hexateuco, ressalta Otto. O pesquisador enfatiza que, na ideologia imperial persa, vinculava-se à ideia de que a posse da terra fora conferida aos povos por Ahuramazda o pensamento de que os povos deviam estar submetidos à lei do rei aquemênida. Um exemplo referido por Otto se encontra na inscrição de Behistun, na qual o rei aquemênida Dario I (522-486 a.C.) comemorava sua vitória sobre seus inimigos internos como uma expressão da legitimação de seu poder pelo rei imperial persa, por isso ele ordenou anunciar o seguinte:

Anúncio de Dario, o rei: “Naqueles países (isto é, nos países subjugados) recompensei ricamente um homem que era leal, mas puni severamente a quem era desleal. Conforme a vontade de Ahuramazda, esses países obedeceram à minha lei (em persa: data-). Assim como lhes foi dito por mim, assim fizeram”.

Percebe Otto261 que, conforme tal visão, é por meio da lei do rei aquemênida que a ordem universal dos povos é mantida. Contudo, afirma o pesquisador, os autores escribas do Hexateuco contradizem-na, pois os judeus seguem a lei dada pelo seu adorado e cultuado Yahweh no Sinai e intermediada pela figura epônima de Moisés, e nenhuma autoridade se contrapõe à Torah deste referido legislador, pois o criador deste mundo seria Yahweh e não Ahuramazda, a quem recorrem os reis aquemênidas em sua função de impor leis. Por isso, explana Otto, também para

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Ibidem, pp. 202-203.

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os autores do Hexateuco é claro que não a obediência às leis persas, mas à Torah de Moisés, ratificada com a conclusão da Aliança em Siquém, garante a posse da terra (Josué 24). Conforme as pesquisas de Otto, nas inscrições dos reis persas, um argumento principal da legitimação dos governantes aquemênidas são os sucessos militares do respectivo rei, que são tidos como obras da divindade nacional que acreditam o rei.

Relata o estudioso que o Hexateuco transfere essa figura argumentativa a Moisés e a Josué como líderes bem-sucedidos de seus exércitos que vencem os transjordânicos e os cisjordânicos de acordo com o mito dos estruturadores do Hexateuco. Dessa maneira, conclui Otto, o Hexateuco responde à pergunta polêmica sobre quem seria o senhor da História inequivocamente em favor de Yahweh, a divindade dos judeus, pois a descrição sacerdotal do ciclo das pragas egípcias (Êxodo 7-12) é ampliada no Hexateuco por outros prodígios, para ser uma comprovação de que, entre todas as divindades, somente Yahweh tem poder na história, pois as nações devem reconhecer isso (Êxodo 7,17; 8,6/18 etc.). Conforme os construtores e elaboradores do Hexateuco e da figura de Moisés, o interesse da referida personagem não teria sido o domínio, em contraste com o rei persa, que queria impor o domínio mundial por meio do poder repressivo, mas o conhecimento e o reconhecimento do poder histórico de Yahweh como divindade criadora.

Por isso, ressalta Otto, a figura epônima de Moisés não deve ser um instrumento do poder da divindade entre as nações, mas, como mensageiro de Yahweh, ele deve servir ao (re)conhecimento de que nenhuma divindade, portanto a divindade imperial persa também não, iguala-se a Yahweh. Com isso, conclui o autor, modifica-se a ideologia imperial persa em um ponto decisivo, e a obediência das leis não deve se basear no reconhecimento das relações políticas reais de poder, como expressão do poder da divindade persa Ahuramazda, mas no reconhecimento do poder histórico de Yahweh, que deu a Terra a seu povo de “Israel”.

Conclui-se que, neste item, da parte de Eckart Otto, houve uma grande iniciativa para o retorno à Judeia, em dois pontos enfáticos. O primeiro foi à reutilização do livro de Josué, que possuiu grande valia na época da sua composição durante a Reforma Deuteronomista devido à ênfase de que o território no qual eles retornaram deveria ser conquistado mais uma vez. O segundo ponto é a questão do Yahweh como divindade nacional para os judeus, assim como Ahuramazda era para os persas. Os persas possuíam vários mitos religiosos que os legitimavam, agora, para os escribas, era a vez dos judeus possuírem os seus próprios mitos religiosos que os legitimassem.

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