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Capitulo I – A Questão Deuteronomista

2. Origens da Teoria Deuteronomista

2.1 A História Deuteronomista nos Livros de Reis

De acordo com Römer67, a tradição deuteronomista abrange as redações dos livros de Deuteronômio, Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis. Mas como a preocupação principal desta pesquisa é o Templo monárquico do reino de Judá, o estudo irá se ater aos livros de 1 e 2 Reis, que retratam a sua construção e a sua destruição.

O autor aponta para uma estruturação relacionada às origens do Templo considerado como o primeiro68, quando a história da sucessão dinástica de Davi para Salomão chega ao fim em 1 Reis 1-2,13, após uma interrupção em 2 Samuel 21-2469. Relacionado ao desfecho de como Salomão assumiu o trono do Reino Unido de Israel e de Judá, o autor relata que tal fato, conforme a narrativa de 1 Reis 1, ocorre de forma similar a uma intriga ao estilo do seriado estadunidense Dallas70, liderada pelo profeta Natã e a mãe de Salomão, Bat-Sheva, enquanto o velho Davi parece completamente inválido, sem qualquer capacidade de controlar os acontecimentos.

Römer afirma que no ciclo de 2 Samuel 9 – 1 Reis 2, a denominada “História da Sucessão ao Trono de Davi” ou “História da Corte”, a personagem Davi aparece muitas vezes como um rei fraco, e mesmo moralmente imperfeito, pois após engravidar Bat-Sheva, esposa de Urias, Davi envia seu marido, um de seus melhores oficiais, para a morte; a mesma Bat-Sheva se tornará mãe

67 RÖMER, T. op. cit., pp. 11-19. 68 Ibidem, pp. 17-19.

69 Ibidem, p. 17. De acordo com o autor, estes quatro capítulos do livro de 2 Samuel formam um apêndice e, no

último capítulo, 2 Samuel 24, Davi é apresentado como o fundador do futuro templo.

70 Römer faz menção ao seriado clássico da televisão estadunidense, que vigorou de 1978 a 1991, com catorze

temporadas e ao todo 357 capítulos, e não à sua continuação recente, que vigorou de 2012 a 2014, e foi cancelada no mês de outubro de 2014.

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de Salomão (2 Samuel 12). Conforme os estudos do autor, Davi também deve enfrentar revoltas, especialmente da parte de seu filho Absalão (2 Samuel 13-19) e é obrigado a fugir de Jerusalém. Após o assassinato de Absalão por Joab, general de Davi, o rei retorna a sua capital, onde enfrenta nova revolta (2 Samuel 20).

Entende-se por essas colocações de Römer que o rei Davi dos relatos de 2 Samuel 9 – 1 Reis 2 não era um rei tão popular quanto o mito que se sustentou na religião cristã afirma, e segundo o qual Davi era um rei de acordo com o coração de Deus; pois um rei do qual o povo não gosta, nem o filho gosta, que mata um de seus melhores soldados para ficar com a mulher dele (e bons soldados são muito difíceis, e não podem ser mortos a esmo ou por mera arbitrariedade ou egoísmo do rei) e, no final das contas, não é respeitado na morte ao ocorrer uma disputa de poder entre os seus filhos Salomão e Adonias não poderia ser tão amado assim, pelo contrário, o Davi do referido trecho apontado por Römer era um rei desprezado, desprezível, incompetente e irrelevante, e não o grande homem de vitórias fundador de uma dinastia que, de acordo com os relatos bíblicos, duraria por volta de quinhentos anos.

Quanto à subsequente história do Rei Salomão (1 Reis 3-11), esta pode ser dividida em duas partes:

•A primeira parte descreve o Rei Salomão como o rei sábio e construtor do Templo. Termina com um longo discurso de Salomão em 1 Reis 8, no qual ele verifica que Yahweh realizou todas as promessas feitas a Davi. Mas ao inaugurar o templo, Salomão já prevê sua destruição e exílio do povo. Por esta questão apresentada por Römer, dá para entender que esta redação é pós-exílica, ao ponto de prever a destruição e o exílio dos judaítas, pois mesmo se o rei Salomão tivesse existido de fato como rei de Israel entre os anos de aproximadamente 970 a 931 a.C., dificilmente (ou impossivelmente) ele faria a previsão exata do que aconteceria por volta do ano de 586 a.C., que é o possível ano da destruição do “Primeiro Templo”.

•A segunda parte da narrativa de Salomão, em 1 Reis 9-11, apresenta uma visão mais negativa do rei (apesar de haver a história positiva da visita da rainha de Sabá a Salomão), especialmente sobre à sua atração por mulheres estrangeiras e divindades estrangeiras. Afirma Römer que os erros religiosos e políticos de Salomão provocaram o colapso do “Reino Unido” após a sua morte (1 Reis 12-14). Jeroboão, um antigo servo civil de Salomão, torna-se rei de Israel, o reino do Norte; estabelece dois santuários javistas, um em Dã e outro em Betel (isto é,

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nas fronteiras norte e sul do reino de Israel) como uma alternativa ao templo Judaíta em Jerusalém.

Algo que Römer71 aponta e que é interessante enfatizar aqui é a centralização do culto em Jerusalém, pois, conforme os estudos do autor, a passagem de 1 Reis 15 – 2 Reis 17 relata a história paralela dos dois reinos; a história é contada a partir de uma perspectiva nitidamente judaíta, pois todos os reis são submetidos a uma avaliação, que se baseia em sua fidelidade a Yahweh e em sua observância do mandamento da centralização do culto. Observa atentamente o autor que os reis judaítas são também comparados com Davi (“Não agiu/não agiu como o seu pai Davi”). Nota o autor que o critério para a centralização do culto explica por que nenhum rei de Israel pode satisfazer os padrões ideológicos dos autores ou redatores, nem mesmo Jeú, embora este seja descrito como um revolucionário Javista que põe fim à dinastia dos Amridas (2 Reis 9- 10).

Segundo Thomas Römer, a história dos dois reinos é narrada sincronicamente, e o Reino do Norte parece ter sido governado por reis maus, e o rei Acab (1 Reis 16,29-22,40), de acordo com as observações do autor, parece ter sido o pior deles; pois se diz que ele foi responsável por introduzir o culto à divindade masculina fenícia Baal, vinculada à tempestade e à fertilidade. Conforme Römer relata, a situação do Reino do Norte é descrita como anárquica, visto que os seus reis são assassinados e as suas dinastias mudam frequentemente, ao passo que o Reino do Sul, pelo contrário, parece ter sido governado todo o tempo por reis da dinastia davídica, e, por esse motivo, na passagem de 2 Reis 11, envidam-se todos os esforços para apresentar o reinado de Ataliah, filha de Acab, sobre Judá como ilegítimo. Sobre o assunto, Römer conclui que a história do Reino do Norte termina com um longo comentário do narrador, que aponta as razões que levaram à sua queda e a de Samaria, sendo que elas, consequentemente, foram transformadas em províncias da Assíria (2 Reis 17).

Mas tais relatos hoje em dia já são compreendidos como tendenciosos na intenção de legitimar a Reforma Deuteronomista de maneira oportuna, caracterizada pela queda do Reino do Norte. Como o Deuteronomista é escriba apoiador da ideologia da coroa do Reino do Sul representada pelo rei Josias, obviamente ele vai escrever que todos os reis do Reino do Norte foram maus e péssimos, tanto como pessoas, quanto em suas atitudes, e é lógico que o Reino remanescente de Judá vai ter mais reis bons do que ruins. Um dos aspectos da propaganda

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deuteronomista foi o de buscar convencer a todos sobre as vantagens que o Reino de Judá teve sobre o Reino de Israel que foi destruído pelos Assírios. Contudo, quando foi a vez da queda de Judá, culpou-se a monarquia, independentemente de ter ela gerado reis bons e reis maus.

Há um aspecto o qual Römer aponta72 e não pode deixar de ser explanado que é sobre os últimos capítulos de 2 Reis (18-25), que narram a história do Reino de Judá até o seu exílio. Tal ponto possui forte relação com o Templo pré-exílico, pois houve por volta do ano de 622 a.C. a Reforma Deuteronomista do rei Josias, que objetivava a centralização do culto em Jerusalém. Segundo afirma o autor, há dois reis na narrativa de 2 Reis 18-25 que recebem atenção particular: Ezequias e o já referido Josias, sendo que ambos conformam com a vontade de Yahweh, em contraste com os seus antecessores e sucessores. Na narrativa de 2 Reis 18-20, o rei Ezequias abole os cultos ilegítimos segundo o yahwismo e os seus respectivos lugares de culto; sob o seu reinado o cerco assírio de Jerusalém é abandonado por causa da intervenção de Yahweh. Seu filho Manassés, personagem da narrativa de 2 Reis 21, é apresentado como um dos piores reis de Judá, embora tenha reinado por 55 anos, o que leva certo comentário no qual como um rei que reina por tanto tempo, sem nenhuma rebelião ou conspiração encontrada no relato de seu pleito, pode ter sido considerado um rei tão ruim e péssimo? É algo para se verificar à tendência do relato bíblico no qual um rei com um pleito tão longo é tão ruim quanto os reis do Reino do Norte que não conseguiam sustentar uma dinastia por períodos muito longos.

Continua Römer que, após o perverso também Amon traçado pela narrativa deuteronomista, vem o reinado de Josias, que à primeira vista aparece como desfecho positivo da monarquia judaíta, já que Josias, após a descoberta do livro da lei no templo, empreende uma tremenda reorganização do culto, a transformar Jerusalém no único santuário legítimo e a destruir os símbolos de todos os cultos javistas ilegítimos e outros cultos (2 Reis 22-23). Entretanto, não somente para Römer, mas para todos aqueles que conhecem a história, nem mesmo a reforma de Josias é capaz de impedir a destruição de Jerusalém e de Judá pelos babilônios, que, por sua vez, castigam as revoltas dos sucessores de Josias. Mas Römer atenta para o fato de toda esta história referida não termina com um comentário final, como seria de se esperar, mas com uma nota um tanto obscura sobre a libertação do rei judaíta Joaquin de seu cativeiro babilônico, que permanece na Babilônia, mas se torna um hóspede privilegiado à mesa do rei da Babilônia, de acordo com 2 Reis 25,26-30.

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Aqui há muitas questões nas quais o próprio relato bíblico chega a ser contraditório, como por exemplo o rei Manassés, personagem da narrativa de 2 Reis 21, que é apresentado como um dos piores reis de Judá, embora tenha reinado por 55 anos, o que leva a certo comentário no qual como é possível que um rei que reina por tanto tempo, sem nenhuma rebelião ou conspiração encontrada no relato de seu pleito, pode ter sido considerado um rei tão ruim e péssimo? Na verdade, foi intenção do deuteronomista falar mal não apenas do rei Manassés, como também do rei Acaz, por serem reis que fizeram aliança com a Assíria, pois o deuteronomista defende uma religião Yahwista isenta de rituais que não sejam os vinculados a Yahweh.

De acordo com Finkelstein e Silberman, conforme as descobertas arqueológicas vinculadas ao período de ambos os reis, o vínculo do reino de Judá com a Assíria foi benéfico para a organização do referido reino do Sul, pois, conforme os achados, a organização, principalmente de Jerusalém, era bem maior do que no período de Josias. Deduz-se que no período de Josias apenas poderia ter havido produção literária imensa para legitimar o reino de Judá como o reino central, assim como Jerusalém, a sua cidade principal, porém, com organização administrativa não tão eficiente quanto no período de Acaz e de Manassés.

Conclui Römer73 que, na literatura deuteronomista, o retrato da monarquia é profundamente ambíguo, pois, por um lado, pode-se encontrar textos que insistem na legitimação divina da dinastia davídica (em 2 Samuel 7, Yahweh promete, conforme o autor, que ela durará “para sempre”); por outro lado, há numerosas observações críticas sobre os reis que não se conformam com a vontade de Yahweh exposta no livro de Deuteronômio. Para Römer, relacionado ao fracasso da monarquia, a mesma história contém afirmações muito positivas sobre reis judaítas que não se encaixam bem num contexto de exílio e de deportação. Tal tensão, afirma o autor, é um primeiro indício da complexidade do material contido nos livros de Deuteronômio até Reis, comumente rotulado como “História Deuteronomista”, que, de acordo com Römer, necessita de ser esclarecida por meio do atual debate sobre a teoria.

De acordo com o contexto referido por Römer, na literatura deuteronomista há duas vozes: uma que legitima a dinastia davídica que pode ser considerada produto da Reforma de Josias ou Deuteronomista; e outra que é exílica, contundente nas críticas aos piores reis de Judá. São assuntos que estão inseridos nos mesmos livros e em diversos momentos, até mesmo são contraditórios. Mas todos esses assuntos de alguma forma possuem a intenção de reunir e

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legitimar um raciocínio lógico. Por um lado, houve a propaganda da coroa de Judá como a remanescente no período de Josias e escolhida por Yahweh para guiar os judaítas e os israelitas, e por outro, durante o exílio, já que a coroa judaíta perdeu a sua credibilidade devido às péssimas e terríveis consequências que a referida trouxe a seu povo, ela deveria ser severa e duramente criticada sem o mínimo pudor pelos desterrados.