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Capítulo II – O Senso Crítico sobre o Primeiro Templo

3. Perspectiva Literária de Mario Liverani

3.1 A Fundação Mítica: A Unidade como Arquétipo

Conforme o autor125, a historiografia deuteronomista teve todo o tempo para revisitar a história passada da monarquia, para aceitar plenamente sua função e para louvar seus méritos, tanto quanto para condenar suas infidelidades. Na perspectiva do pesquisador, é provável, porém, no momento um tanto difícil de demonstrar textualmente (senão por raciocínio preconcebido), que a escola protodeuteronomista na corte de Josias tivesse de fazer da monarquia como instituição um juízo positivo (salvo lançar-se contra as idolatrias dos reis individualmente); já a historiografia do período do exílio, depois do fracasso da monarquia, não teve freios para inserir passagens fortemente críticas sobre a própria instituição.

Relata o estudioso que as tendências “democráticas” visíveis na corrente deuteronomista, que exprimem o papel dos juízes ( '$"

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) e dos “anciãos da cidade” (( )* +

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), já podem ser um produto dos sobreviventes do norte, mas devem ser reforçadas nas comunidades da diáspora.

Tal fator das tendências “democráticas” visíveis na corrente deuteronomista só pode ser um produto dos sobreviventes do norte se os escribas do reino de Israel foram imediatamente trabalhar na corte de Jerusalém. Portanto, é necessária comprovação material extrabíblica para dar legitimidade a tal informação, pois, conforme afirmado anteriormente, qualquer tentativa de colocar a individualização da atividade literária antes do período helenístico é discrepante com a realidade.

De acordo o estudioso126, uma vez instituída, a realeza é legítima, e sobre o primeiro rei Saul, acumulam-se todos os tipos de legitimação possíveis e imagináveis por ele ser o escolhido de Yahweh, ungido por Samuel, aclamado pelo povo, e ovacionado pelo exército. Contudo, reforça o autor, como as tradições historiográficas relativas a Saul tinham recebido bem cedo uma conotação negativa (e sem remédio na visão de Liverani) por parte das intervenções filodavídicas, a trajetória da realeza segundo o Deuteronomista (e depois, segundo o Cronista) se inicia com Davi e continua até o exílio.

Conforme o autor, que se inicie com Davi parece bem óbvio, pois Davi, na visão de Liverani, foi quem fez de Jerusalém a sua capital, e tudo o que precede a união de Judá a

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LIVERANI, M. op. cit., pp. 381-384.

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Jerusalém não é senão pré-história da realeza judaica. Mas, sob a óptica do pesquisador, para a tradição histórica antiga, esse fato exterior (político e administrativo) não era o suficiente; o fato realmente fundante é dado pelo “pacto” estabelecido por Yahweh com Davi, que por sua vez confirma de forma adequada à monarquia o que já havia sido pactuado – em subsistência – pelo menos com Moisés, se não já com Abraão. Conforme o estudioso127, os termos do pacto (fidelidade contra prosperidade) determinam depois todo o curso histórico dos eventos, e, como Yahweh é sempre fiel, os êxitos e os fracassos são sempre determinados pela conduta do rei, e a progressiva deterioração do reino é determinada pela persistente infidelidade.

Para o referido autor128, em sua configuração inicial, mal saído das mãos de Yahweh e ainda não deteriorado a não ser pelas modestas infidelidades, o reino apenas podia se encontrar no ápice da sua ampliação e de seu poder. E, segundo o citado estudioso, uma vez que a secular divisão (as vidas paralelas) dos dois reinos yahwistas de Judá e de Israel era vista como elemento precoce e vistoso da degradação, e para o pesquisador, o reino-protótipo não podia estar senão unido, em um abraço amplo, a todas as doze tribos, a todos os fiéis do único e verdadeiro Yahweh para eles. Percebe o autor que é um sinal claro de como a historiografia filomonárquica, de Josias a Zerubabel, tinha em mente não a simples revitalização do reino de Judá, mas a constituição de um reino que compreendesse “Todo Israel”, inclusive o norte.

O estudioso traz a duração da reforma Deuteronomista desde Josias (reinado por volta de 641-609 a.C.) até Zerubabel (reinado por volta de 538-520 a.C.), ou seja, para o pesquisador, a reforma é muito mais duradoura – persiste por aproximadamente cem anos. Mas, mesmo assim, pende a questão da prova material da propaganda de Josias, que materialmente não surtiu o efeito desejado, e cujo relato bíblico afirma como bem-sucedido.

Segundo a perspectiva do referido autor129, imaginou-se (ou, deve dizer, exigiu-se como dado irrefutável) um reino unido sob Davi e Salomão, tão amplo quanto toda a satrapia do Além – Eufrates, centrado em torno da dinastia real e no templo de Yahweh, invencível na guerra e internamente caracterizado pela justiça e pela sapiência. Porém, ressalta o citado pesquisador, já quase um milênio antes (portanto, afirma o autor, o paralelo é apenas fenomenológico) o rei hitita Telipinu, no pior da crise institucional e da fraqueza militar, tinha pedido um reino-modelo inicial

127 Ibidem, pp. 381-382. 128 Ibidem, p. 382. 129 Ibidem, p. 382.

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amplo “de mar em mar”, caracterizado pela unidade interna e poder militar, que se podia de novo realizar a utilizar-se os comportamentos e as normas do correto funcionamento.

Para o estudioso, o modelo retroativo demonstra-se falso se confrontado com as fontes de época que falam de acirradas dilacerações internas, de conjurações e facções. E, da mesma forma, aponta o referido pesquisador, o reino-modelo de Davi e Salomão, a julgar pelo que de plausível se conclui das fontes, parece não somente presa de furibundas lutas de sucessão, mas também muito pequeno e, de qualquer modo, na norma das estruturas estatais da época, com uma capital de modestíssima dimensão.

O citado autor, de imediato, já ridiculariza a grandeza do Reino Unido de Israel e de Judá sob Davi e Salomão. Nas intrigas que possam ter havido no período de Davi e de Salomão, pode- se transmiti-la ou para o período da reforma josiânica, ou para períodos um pouco mais posteriores de produção literária mais forte. É mais conveniente retratar tal grandeza do Reino Unido de Israel e de Judá como propaganda josiânica do que nas épocas de Davi e de Salomão, cuja produção literária vai do pobre ao inexistente.

Indica o estudioso130 que o texto de Telipinu ajuda também a entender os mecanismos apologéticos postos em prática para rebater acusações de ilegitimidade e de abuso de poder que se cruzavam em uma situação de caos institucional com rebeliões e lutas de sucessão. Em particular, afirma o autor, o modo como o rei hitita se subtrai às acusações de cumplicidade na morte dos pretendentes ao trono é análogo ao modo como Davi se subtrai às acusações de ter tido parte na morte de Abner (2 Samuel 3,22-29) e de Ishba’al (2 Samuel 4), de Absalão (2 Samuel 18) e de muitos outros.

Nos estudos do pesquisador131, ao se tratar do reino unido em sua credibilidade histórica, há expedientes historiográficos postos em práticas para fazer dele um reino modelo, pois algumas guerras de pequena monta contra pequenos reinos aramaicos do nordeste podem ter sido ampliadas à luz das posteriores guerras israelítico-damascenas e do poder conseguido por Damasco. Relata o estudioso que alguns documentos (sobretudo “os doze distritos” de Salomão) podem ter sido transferidos por administrações ou projetos sucessivos (Josias), pois algumas realizações (e não somente o templo, mas também as cidades fortificadas) podem ter sido atribuídas, em sua fundação inicial, aos reis mais prestigiosos que a tradição popular conhecera

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Ibidem, p. 382.

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no passado. E conclui o autor que bastou acrescentar aqui e ali um “todo Israel” para conferir ao leitor a sensação de um reino unido e grande.

O referido estudioso, como os diversos autores contemporâneos, defendem a ideologia do “todo Israel” como oriunda da reforma josiânica, mesmo tal reforma não tendo atingido o resultado desejado, conforme o exposto no livro de Reis, que por sua vez relata um sucesso fabuloso (no sentido de fábula) e fantasioso (no sentido de fantasia) que jamais ocorreu.

De acordo com a perspectiva do citado pesquisador132, uma vez estabelecido o que fora no início um reino-modelo, foi depois inevitável atribuir-lhe todo o tipo de anedota ou de contos que tivesse como protagonista um rei valoroso na batalha, ou um rei famoso e sábio, ou um rei prepotente. Para o autor, foi fácil colorir com traços novelescos notícias de outra forma autênticas, mas bem corriqueiras. Por exemplo, afirma o estudioso, não é considerada anacrônica uma abertura de tráfegos comerciais com o Yêmen, no século X a.C.; porém, a história da visita da rainha de Sabá é por demais fabulosa no estilo e no emprego de motivos narrativos para não ser qualificável senão como notícia situável no período persa.

Ou, outro exemplo que o autor nos traz, da história de “Urias, o hitita ou o heteu”, que o rei fez matar para poder esposar a belíssima mulher dele, pode ter acontecido efetivamente sob Davi e sob qualquer outro rei. Outro exemplo que o pesquisador traz é do apólogo de Natã, que faz desta história de Urias um conto fora do tempo histórico, sendo talvez um núcleo originário dos episódios:

Havia dois homens numa cidade, um rico e outro pobre. O rico tinha ovelhas e bois em quantidade. O pobre nada possuía, senão uma ovelhinha, só uma, bem pequena, que ele comprara. Ele a criava. Ela crescia em sua casa junto com seus filhos. Ela comia em sua mesa, bebia em sua tigela e dormia em seus braços. Era para ele como uma filha. Um hóspede chegou à casa do rico. Ele não teve piedade de tomar de suas ovelhas ou bois para preparar uma refeição ao viajante que chegara em sua casa. Ele tomou a ovelhinha do pobre e a preparou para o homem que o visitava. (2 Samuel 12,1-4)

Conforme o autor133, não se pode certamente pensar que uma história como a de Davi e de Urias, tão desabonadora para o rei, figurasse em um dos textos oficiais da escola palatina e de

132 Ibidem, p. 383. 133

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função real concebíveis no século X a.C. (documentos de arquivo, crônicas, inscrições celebrativas, ou outras coisas mais), pois para o estudioso, essas histórias não são confiáveis; não porque se queira minimizar a historicidade do rei Davi ou de Salomão, nem porque sejam per se anacrônicas ou impossíveis, mas porque não se vê por que canais possam ter sido registradas e transmitidas, na forma como as temos, percebe o pesquisador.

Nas conclusões do autor134, tais histórias fazem parte com todo direito do quadro do que no período e no âmbito “deuteronomista” (entre Josias e Zerubabel) se pensava tivesse sido o reino unido de Davi e de Salomão. Para o estudioso, elas podem fazer parte somente por excesso de acrítica credulidade da reconstrução histórica conhecida e considerada realista daquele reino do século X a.C.

Em suma, pode-se entender que toda a literatura que retrata o período de Davi e de Salomão não corresponde à sua respectiva época, mas sim a períodos bem posteriores, desde o pré-exílio da Reforma Deuteronomista datado por volta de 622 a.C. até o período persa, com data entre os séculos VI e V a.C. São todas caracterizadas como composições de âmbito “deuteronomista” para o pesquisador, mesmo com similaridades de narração com os relatos do período persa, e para quem acredita na veracidade dos relatos de Davi e Salomão, para o pesquisador, os referidos (relatos) fazem parte somente por excesso de acrítica credulidade da reconstrução histórica conhecida e considerada realista daquele reino do século X a.C.