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Capítulo V – Relevância da Memória do Primeiro Templo

2. O Programa Ideológico do Pentateuco

Nas pesquisas de Otto262, os autores do Hexateuco, que escreveram em Yehud, colocaram o acento ideológico na terra como bem salvífico central de Yahweh, o que provocou protesto dos sacerdotes que viviam na diáspora da Mesopotâmia, e eles se voltaram contra essa ideologia da terra, e com a missão de Esdras, que chegou a Jerusalém em 398/397 a.C. por incumbência do governo imperial persa como funcionário com tarefas de fiscalização e vistoria, impôs-se em Jerusalém a ideologia da diáspora. Afirma o estudioso que no início do século IV a.C., isso teve sua consequência na Torah de Moisés, pois os círculos da diáspora não definem a identidade do judaísmo a partir da posse da terra, que é vinculada condicionalmente à obediência da lei. Ao contrário, ressalta Otto, a própria Torah seria o poder interpretativo e o bem salvífico centrais, pois o judeu seria, em qualquer lugar que estivesse, aquela pessoa da linhagem de Abraão que cumpre a Torah de Yahweh.

Por isso, considera o estudioso, destaca-se o livro de Josué e inaugura-se o Pentateuco, composto dos livros do Genesis até o Deuteronômio. Nos conhecimentos de Otto, como vita do profeta epônimo Moisés, o Pentateuco vai desde o seu nascimento (Êxodo 2), até a sua morte (Deuteronômio 34), e o Gênesis tem a função de um saguão que conduz desde a criação até a formação do povo de Israel no Egito (Gênesis 1 – Êxodo 1). Conforme as análises do estudioso, ao deslocamento dos temas, devido à separação do livro de Josué e da redução do Hexateuco para um Pentateuco, corresponde a forte ampliação da perícope do Sinai (Êxodo 19 – Números 10), que é assim ampliada pela conexão com a moldura do Deuteronômio a dar origem ao lugar preferencial da revelação dos mandamentos no Pentateuco. Relata Otto que os autores do Pentateuco tinham um ponto de enlace na perícope do Sinai, pois já ali o Decálogo e o Código da Aliança como fontes do Deuteronômio tinham sido transferidos para o Sinai, e um dos elementos importantes utilizados pelos autores da redação do Pentateuco na transformação da perícope do Sinai em centro dos livros de Moisés foi a inserção de Levítico 16, a narrativa ritual do Dia da Reconciliação, como centro do Pentateuco inteiro.

Segundo o autor, tais autores vincularam com essa narrativa Êxodo 19,3-6 e o Código de Santidade por eles formulado (Levítico 17-26) e, consequentemente, com a ampliação da perícope do Sinai, os mesmos autores inseriram nos livros de Moisés a complicada teoria da

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revelação e da fixação por escrito. Conforme relata Otto, o Decálogo (Êxodo 20), teria sido levado aos ouvidos do povo imediatamente por Yahweh, mas a partir dali, e segundo o desejo do povo apavorado, toda revelação de leis teria sido intermediada por Moisés e interpretada no Deuteronômio na terra de Moabe. Para o autor, a estrutura da narração dos livros de Moisés como Torah, na forma em que temos atualmente em leitura sincrônica, remonta (com exceção dos acréscimos pontuais do período persa tardio e helenista, especialmente nos livros do Genesis e dos Números) aos autores escribas do Pentateuco do início do século IV a.C.

Otto enfatiza que a narração dos livros de Moisés responde à pergunta sobre como Yahweh, a divindade dos judeus, estaria naquele tempo presente no meio de seu povo, a saber, na forma da Torah registrada por escrito e interpretada por escribas. Naquele instante, para o estudioso, já não se tratava, como no Hexateuco no século V a.C. da justificativa legítima da posse judaica da terra por meio da história primitiva de Israel, mas da dignidade revelatória diferenciadora da Torah. Nos relatos de Otto, no século IV a.C., o Pentateuco tornou-se Torah na forma de uma revelação e promulgação de leis, emoldurada por narrativas e colocada no Gênesis no horizonte da criação da história do mundo (Gênesis 1-11). Conforme o estudioso, para justificar a qualidade revelatória da Torah, o Pentateuco desenvolve, inspirado pelo Hexateuco, uma teoria literária de sua formação e seu registro escrito que atribui uma função-chave ao Moisés literário, cuja biografia forma a moldura dos livros do Êxodo ao Deuteronômio.

Dessa maneira, considera Otto, cabe ao Decálogo, revelado imediatamente e registrado em tábuas de pedra por Yahweh (Êxodo 24,12;31,18 etc.), uma dignidade tão destacada entre as leis que o povo não entendeu diretamente (Êxodo 20,18-21), mas tornou conhecimento dele apenas mediante a interpretação de Moisés na terra de Moabe (Deuteronômio 5,6-21). Para o pesquisador, todas as outras leis, que teriam sido anunciadas a pedido do povo por intermédio da personagem epônima Moisés, são entendidas como regulamentos de execução que concretizam o Decálogo. De acordo com Otto, isso vale em primeiro lugar para o corpo legal que Moisés apresentou ao povo e registrou por escrito no monte Sinai (Êxodo 20,22-23,33), denominado em Êxodo 24,3-8 de “Código da Aliança”. Depois, afirma o autor, são comunicadas a Moisés, na Montanha de Yahweh e durante a caminhada pelo deserto, outras leis, entre elas o Código de Santidade (Levítico 17-26).

Enfatiza Otto que na terra de Moabe termina a revelação da lei (Números 36,13), e inicia-se a interpretação dela, que dura somente um dia, o dia da morte da personagem epônima Moisés,

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que por sua vez apresenta ao povo o Deuteronômio como interpretação da Torah sinaítica. Portanto, conclui Otto, no século IV a.C., acrescentou-se à figura epônima da personagem Moisés o ministério de escriba e mestre (doutor da lei) que interpretava a Torah (Deuteronômio 1,5) e registra a interpretação por escrito na terra de Moabe (Deuteronômio 31,9) . Segundo os conhecimentos do autor, Israel, porém, teria se tornado na terra de Moabe uma comunidade de ensino e aprendizado sob a liderança do escriba e doutor da lei Moisés. Otto declara que os autores pós-exílicos do Pentateuco erigiram para si um memorial não só ao estilizar Moisés como seu patriarca, mas também ao fazer de Yahweh o primeiro escriba da história de Israel, pois ele registra o Decálogo por escrito.

Já no Sinai, afirma o estudioso, depois da conclusão da aliança com o anúncio do Código da Aliança (Êxodo 34,3-8) e do banquete em face de Yahweh (Êxodo 24,9-11), Moisés recebeu a missão de instruir o povo no Decálogo e no restante da Torah (Êxodo 24,12). Observa Otto que Deuteronômio 4 constata explicitamente que essa missão de instrução realizada no Deuteronômio, a saber no último dia de vida de Moisés, em várias rodadas de discursos ao final dos quais se realiza o registro da Torah.

Aponta Otto263 que o motivo do registro escrito da Torah imediatamente antes da morte da personagem epônima Moisés permite compreender por que ele precisava morrer naquele momento e não podia passar com o povo para a Terra Prometida, e em seu lugar entraria na Terra Prometida a Torah registrada por escrito por Moisés, enquanto a morte de Moisés encerraria o tempo da revelação da Torah. Na visão do autor, nunca mais se levantaria em Israel um profeta, isto é, um intermediário da revelação, como Moisés, com quem Yahweh falou face a face (Deuteronômio 34,10), pois somente na forma da Torah interpretada, cujo modelo no Deuteronômio seria Moisés como primeiro escriba e doutor da lei, a vontade legisladora de Yahweh poderia estar presente no meio de seu povo. Dessa maneira, conclui Eckart Otto, o Pentateuco torna-se, no século IV a.C., o berço da erudição escriturística judaica, que permitiu ao judaísmo, após as grandes catástrofes da época romana, sua sobrevivência até hoje.

Percebe-se que, nesse instante, para Eckart Otto, a conquista encontrada em Josué não é o suficiente para manter o povo no território da Judeia, é necessária a obediência à lei que é representada por Moisés. A partir daí a figura de Moisés surge e é funcionalizada como o símbolo da lei, por ser o homem com que Yahweh falou face a face. Assim como os escribas

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possuíam a missão de instruir o povo, Moisés, como o primeiro escriba, possuiu esta função. Por isso ele é considerado o primeiro escritor e autor de todas as obras do Pentateuco e chefe supremo de todos os escribas escolhido pelo próprio Yahweh. A lei traz obediência para o povo, e precisa dos escribas para ensinar o povo a obedecer e a permanecer na Terra Prometida, ao contrário da geração que foi exilada na Babilônia.