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CAPÍTULO 2 – POLÍTICAS EDUCACIONAIS PARA A EXTENSÃO

2.3 A crítica da extensão universitária

O horizonte apontado pelo documento do FORPROEX (2012) procurou delinear as possibilidades para a extensão a partir do protagonismo das universidades, que são orientadas a organizarem essa tarefa. Como já foi exposto, o Fórum busca reunir e sistematizar as experiências surgidas ao longo da trajetória da extensão universitária, de modo a alcançar os objetivos da indissociabilidade com o ensino e a pesquisa, sua

institucionalização e financiamento.

Esse esforço para organizá-la, entretanto, longe de ter encontrado obstáculos só agora, com a emergência de um novo modelo universitário, sempre foi alvo de críticas – o que também teve importância na trajetória de seu desenvolvimento. Desde a década de 1960, com os estudos de Paulo Freire (2002), passando por outras análises de modelos adotados pelas instituições, a extensão continuamente suscitou reflexão e certo cuidado por parte dos atores envolvidos na formação de nível superior.

Freire (2002), criticando posturas conservadoras, assim se expressava:

Na medida em que, no termo extensão, está implícita a ação de levar, de transferir, de entregar, de depositar algo em alguém, ressalta, nele, uma conotação indiscutivelmente mecanicista. Mas, como este algo que está sendo levado, transmitido, transferido (para ser, em última instância, depositado em alguém – que são os camponeses) é um conjunto de procedimentos técnicos, que implicam em conhecimento, que são conhecimento, se impõem as perguntas: será o ato de conhecer aquele através do qual um sujeito, transformado em objeto, recebe pacientemente um conteúdo de outro? Pode este conteúdo, que é conhecimento de, ser “tratado” como se fosse algo estático? Estará ou não submetendo o conhecimento a condicionamentos histórico-sociológicos? (Freire, 2002, p.26) O autor critica a postura mais tradicional da extensão, como ferramenta de controle e submissão travestida de serviço humanitário. Ele prefere o conceito de

comunicação ao de extensão, uma vez que, no primeiro, o processo ensino-aprendizagem

se realiza como uma via de mão dupla, em que diferentes saberes se articulam para a produção do conhecimento. Levou tempo até que a universidade reconhecesse que existe uma dinâmica de retroalimentação na extensão, através da qual a universidade também é impactada pelas atividades que realiza em articulação com a sociedade.

Depois, na década de 1990, os programas neoliberais foram implementados. A reestruturação da universidade a colocava em posição estratégica para alavancar o desenvolvimento tecnológico e científico e um novo posicionamento do país no cenário

internacional de economia globalizada. Nesse contexto, a extensão foi pela primeira vez disputada como espaço de parcerias com o setor privado e movimentos sociais. Através dela se projetava uma formação em serviço, com novas metodologias de aprendizagem articuladas à prática. Porém, também naquela época, se reformulava o discurso de que a extensão era um equivoco, concebida como uma espécie de compensação para um ensino e uma pesquisa incapazes de beneficiar a sociedade.

Para Botomé (1996), a extensão não deveria trazer para si a tarefa de vincular a universidade aos problemas sociais; antes, seria parte inerente da pesquisa e do ensino, não como instrumento que articula ensino e pesquisa, mas como característica do ensino – no sentido de que o ensino torna o conhecimento acessível a todos – e como etapa da

pesquisa – no sentido de que a busca do conhecimento deve, em última instância,

melhorar a vida do ser humano na sociedade. Nesse sentido, ele via a extensão acontecendo nas ações dos departamentos e das pró-reitorias de pesquisa e extensão:

Cabe aos departamentos e às pró-reitorias de pesquisa e extensão administrar (coordenar, dirigir, gerenciar e monitorar condições de apoio, etc.) as múltiplas atividades que podem tornar o conhecimento (a pesquisa da universidade e o conhecimento da humanidade) acessível à sociedade por meio de publicações, assessorias, consultorias, cursos de educação continuada ou permanente (atualização, especialização, aperfeiçoamento, etc.) eventos, congressos científicos, etc. Não para substituir, anular os trabalhos de outras agências sociais ou para competir com elas, mas como contribuição específica onde não houver competência ou condições instaladas para isso ser feito pela sociedade (Botomé, 1996, p.203).

Na percepção de Botomé (1996), a extensão deixaria de ser uma função dentro da instituição universitária, paralela ao ensino e à pesquisa, para ser compreendida como uma dimensão ou parte do ensino e da pesquisa. Para ele, a responsabilidade social da universidade é praticada desde suas atividades-fim – pesquisar e produzir conhecimento ensinando e integrando-se à comunidade – sem identificar um espaço institucional específico para isso e excluindo os demais dessa tarefa.

Ainda dentro dessa perspectiva, mas configurando um viés peculiar no entendimento da extensão, encontra-se a concepção de José Fagundes (1985). Este autor postulou uma existência transitória para a extensão, como estratégia de restauração das competências fundamentais da instituição universitária no âmbito da sociedade:

A verdadeira função da extensão é a de fazer com que a universidade assuma uma nova postura e reoriente o ensino e pesquisa, socializando os seus benefícios. Daí

porque a extensão deve negar-se enquanto função perene e inerente à universidade, pois enquanto persistir nesse caminho ela vê-se impedida de vislumbrar uma nova universidade, na qual ela não teria mais razão de ser. A inerência e a perenidade da extensão têm como pressuposto o fato de que a universidade será sempre assim, e que, por conseguinte, necessitará sempre de extensão para contrabalançar o seu caráter antissocial.

É assim que o sentido da extensão, enquanto função da universidade, reside no seu não-sentido. Quando tiver contribuído para a deselitização do ensino e da pesquisa, para as transformações estruturais da sociedade e para a socialização da universidade, a extensão tornar-se-á desnecessária, terá cumprido a sua função como não-função da universidade. O caráter da extensão é, pois, o da provisoriedade e não o da perenidade, e o seu limite é a transformação e não a conservação. Por paradoxal que possa parecer, a plenitude da extensão, enquanto instrumento efetivo da universidade para realizar o seu compromisso para com o conjunto da sociedade, coincide com o seu ocaso. Nesse sentido, a extensão é antes uma estratégia do que uma função da universidade. (Fagundes, 1985, p.143- 144).

A mesma ideia também foi defendida por Souza (2010, p.128):

Está nas mãos da extensão universitária fazer com que a própria universidade seja relevante socialmente. Esta forma de conceber a extensão – ‘instrumento articulador do ensino e da pesquisa entre si e da universidade com a sociedade que a rodeia’ – nos conduz a pensar que se trata de uma função passageira, que deverá ser superada pela sua própria prática.

Em cada uma dessas análises, a extensão universitária exprime o âmbito das relações entre a universidade e a sociedade. Em cada crítica e ressalva se tenta estabelecer a identidade institucional da universidade de um lado e sua relação com a sociedade de outro, procurando aperfeiçoar os processos através dos quais se realiza essa aproximação. A crítica representa o diálogo, o confronto entre diferentes pontos de vista em ordem à maior compreensão de determinada temática. Nela, as diferentes percepções sempre influenciam a síntese a ser alcançada. E, para que exista a crítica, é preciso garantir que as distintas racionalidades constituam o horizonte das interações humanas.

Diferente é a subsunção, quando uma temática é subsumida em outra, hegemônica, transmutada sem deixar vestígios, quando apenas um único aspecto da realidade é legitimado. É o que pode ocorrer com o surgimento da nova universidade de cunho operacional, em seu entendimento das funções de ensino, pesquisa e extensão. Nelas a extensão não é entendida como estratégia de restauração das competências universitárias ou função passageira, mas âmbito de gerência comercial. Com efeito, a separação entre graduação, pós-graduação e extensão, a fragmentação e separação das atividades de ensino, pesquisa e extensão, cada uma delas desenvolvida em setor

específico, por profissionais distintos, regidos por uma disciplina exclusivamente administrativa, sugerem a emergência de uma universidade conduzida exclusivamente pela racionalidade técnica instrumental, cuja dinâmica desobriga a autorreflexão crítica de si mesma. A essa nova organização caberá preparar quadros para o campo didático, direcionar pesquisadores para os Centros de Pesquisa e transformar a extensão em incubadora de negócios para todas as esferas da atuação humana, excluindo a reflexão

crítica acerca dos próprios fazeres.

Entretanto, de acordo com Nogueira (2005, p.51):

A extensão deve procurar implementar o processo de democratização do conhecimento acadêmico, estabelecer mecanismos de integração entre os saberes acadêmico e popular, de forma que a produção do conhecimento se efetive no confronto com a realidade, com permanente interação entre teoria e prática. Deve contribuir para reformular concepções e práticas curriculares e para rever o conceito de ‘sala de aula’ para além do espaço tradicional, para qualquer lugar onde o ato de aprender ocorra, caracterizado pela interação recíproca entre professores, alunos e sociedade, dentro ou fora dos muros da universidade. Ou seja, a extensão, articulando espaço universitário e espaço social, pode garantir a existência de distintas percepções da realidade. Talvez, até, possa revelar as insuficiências de uma formação centrada no treinamento mecânico, na instrumentalização dos estudantes para responderem apenas a um conjunto básico de situações pré-definidas. A partir de seu surgimento, em 1987, o FORPROEX tem assimilado essas perspectivas, razão pela qual também considera que a prática correta do ensino e da

pesquisa, por si só, superariam a necessidade da extensão. Entretanto, suas reflexões não

se encaminham para o esvaziamento da atividade extensionista nas instituições de ensino superior, muito pelo contrário. Esforça-se pelo reconhecimento da extensão, de maneira que ela possa assegurar ao ensino e à pesquisa a necessária articulação com múltiplas perspectivas e racionalidades.

No momento em que as práticas administrativas e empresariais estruturam a existência de uma universidade funcional, excluindo dela toda perspectiva de formação cultural e colocando-a a serviço de uma racionalidade exclusivamente técnica, a experiência extensionista consolidada ao longo do tempo, com suas formas próprias de conjugar as funções universitárias e colocá-las a serviço dos mais distintos setores sociais, se torna a grande possibilidade de sobrevivência de universidades mais pluralizadas.

O FORPROEX entende que se a extensão não deve ser instrumento de compensação para um ensino e uma pesquisa alienantes, também não pode simplesmente

desaparecer, pois representa um resgate das demais funções desde que novos modelos institucionais tentam reduzir a universidade a uma plataforma de produção do

conhecimento matéria-prima. O conjunto da sociedade é maior do que o interesse de suas

organizações empresariais e a extensão universitária tem formas de articular ensino e pesquisa de modo a atender essa diversidade social. Desdobrando essa ideia, Santos (2011, p.73), afirma:

A área da extensão vai ter no futuro próximo um significado muito especial. No momento em que o capitalismo global pretende funcionalizar a universidade e, de fato, transformá-la em uma vasta agência de extensão ao seu serviço, a reforma da universidade deve conferir uma nova centralidade às atividades de extensão (com implicações nos currículos e nas carreiras dos docentes) e concebê-las de modo alternativo ao capitalismo global, atribuindo às universidades uma participação ativa na construção da coesão social, no aprofundamento da democracia, na luta contra a exclusão social e a degradação ambiental, na defesa da diversidade cultural.

O autor acredita no potencial da extensão para arregimentar um projeto contra

hegemônico, que ele chama de cosmopolitismo crítico. De fato, a universidade, enquanto

espaço democrático para a interlocução de saberes, poderia desenvolver essa

dialogicidade crítica, tão necessária nos atuais contextos massificados. Seria a

emergência da pluriversidade. A pergunta, no entanto, é se a força do capital e o grau de envolvimento das instituições com o processo de mundialização das World Class

Universities já não teria minado qualquer possibilidade de reação contra hegemônica,

estabelecendo definitivamente a hegemonia da racionalidade instrumental.

Não resta dúvida que o contexto político-econômico do país, após o golpe de 2016, tem agilizado os processos de privatização da educação, iniciados há mais tempo. Se na década de 1980 eram os membros do movimento docente que assumiam postos no Ministério da Educação, na atualidade são empresários do setor educativo os convocados e integrados aos órgãos governamentais, conduzindo-os desde uma perspectiva mercantil.

O FORPROEX segue desenvolvendo reflexões e propostas para auxiliar as instituições de ensino superior a organizarem sua extensão universitária, mas já sem a mesma certificação e, talvez, com menor alcance político, além do que, em várias universidades públicas brasileiras, os processos de alinhamento ao modelo norte- americano estão bem adiantados (Silva Junior, 2017).

Não obstante o progresso dos processos de mercantilização da educação pública, com a fragmentação da universidade e instrumentalização de seus setores para distintos propósitos, existem forças comprometidas em fazer com que as instituições se articulem com as mais variadas demandas da sociedade, sobretudo as oriundas de grupos minoritários, há muito excluídos desses espaços institucionais. É o que se pode depreender das centenas e milhares de atividades em curso nas instituições e que adquirem visibilidade nos congressos nacionais e internacionais de extensão universitária que acontecem todo ano no país16, como também aqueles documentados pelas revistas multidisciplinares dedicadas à extensão. Segundo Coelho (2014), há pelo menos vinte e nove periódicos em diferentes instituições universitárias, com corpo editorial e periodicidade regular, indicando o crescimento das atividades.

A seguir trataremos de expor como a dinâmica extensionista se organiza na Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, campo de nossa pesquisa.

CAPÍTULO 3 - EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA E EDUCAÇÃO

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