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CAPÍTULO 4 –EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA E FORMAÇÃO CULTURAL

4.2 As origens do processo semiformativo

No âmbito de nossa pesquisa, a confirmação de que certos aspectos da cultura industrializada, presentes nas atividades extensionistas, obstaculizam uma educação emancipadora, impõe o detalhamento desse processo. Essa, na verdade, é a grande contribuição dos estudos e reflexões da Teoria Crítica, tratando dos mecanismos, sempre renovados, através dos quais a educação – informal e formal – reproduz, e até reforça, a sociedade estandardizada, com suas desigualdades. Trata-se de uma discussão que interpela, denuncia e desestabiliza o discurso padronizado de viés técnico e é preciso reforça-la. Nesse caso, a revelação das contradições torna-se possibilidade de produzir a

consciência verdadeira.

A crítica da modernidade é antiga. Na verdade, desde que a emancipação humana se tornou bandeira do movimento Iluminista, no século XVIII, e prerrogativa básica da democracia burguesa subsequente, a emergência de uma sociedade mais justa, constituída por sujeitos de direitos, revelou-se contraditória. Com efeito, tornou-se uma aspiração difícil de ser concretizada nas modernas sociedades industriais.

Aquilo que era para ser “a saída do homem de sua menoridade da qual ele próprio é culpado” (Kant, 2013, p.63), o esclarecimento, tornou-se um processo civilizatório cuja intenção de compreender a natureza para dominá-la resultou na submissão final do ser humano ao novo constructo social idealizado – uma estrutura organizativa totalizante, um produto humano que adquiriu força e poder sobre ele, uma nova realidade mítica restringindo as potencialidades do próprio ente que as erigiu. E se perpetua por meio de um processo educativo – a semiformação.

A modernidade criou a perspectiva de que o progresso científico e tecnológico seria o mais alto grau de desenvolvimento da humanidade. Refutá-los significaria um retrocesso aos tempos da barbárie, deixar de promove-los resultaria em estagnação e malefícios. A sociedade moderna definiu-se em um estágio superior da experiência humana no mundo, depurada e esclarecida, livre de toda ignorância e crendice, com uma ciência positiva, uma racionalidade técnica e princípios comprovados empiricamente. Entretanto, desde o início, vozes discordantes encontraram nesse novo paradigma indícios da presença das antigas percepções, rechaçadas como falsas e ilusórias. A Teoria

Crítica retoma esses autores em suas análises da sociedade moderna.

Assim, desde que Sigmund Freud (1856-1939) escreveu O mal-estar na cultura34, muito já foi investigado acerca da angústia, da depressão e da agressividade no interior das modernas sociedades. À medida que o processo civilizacional avança, a sociedade se industrializa e a vida fica mais complexa, aumenta também a crise do ser humano no interior dessa civilização, uma vez que, nela, ele está cada vez mais impedido de externar suas energias fundamentais. Desse modo, o crescente conflito entre o princípio de prazer e o princípio de realidade teria estrangulado forças vitais e necessárias à existência. Adorno (1995), reconhece a dimensão social desse mal-estar, presente na pressão civilizatória que anula a singularidade das pessoas em função de sua conexão com o grupo social. Para ele, “é possível falar da claustrofobia das pessoas no mundo administrado, um sentimento de encontrar-se enclausurado numa situação cada vez mais socializada” (Adorno, 1995, p.122). Ou seja: o tipo de civilização em curso estabeleceu determinados padrões de comportamento, de consumo, um modelo de vida que vai comprimindo a diversidade humana e tolhendo a singularidade dos indivíduos e de sua consciência.

Esses novos padrões de comportamento, anulando o que é particular, acabam desencadeando angústia, depressão e agressividade como mecanismos de defesa de quem

nem sempre consegue identificar claramente o que está enfrentando. A situação vivenciada pela estudante extensionista, acerca de estados depressivos de colegas de outros cursos (Entrevista, Apêndice C), pode ser um sintoma dessa realidade. Nas atividades de seu grupo de Terapia Vibracional Integrativa – TVI, os estudantes são acolhidos e acabam revelando sua angústia em relação aos estudos. Com efeito, se o espaço da aprendizagem se revela submetido a uma dinâmica de produção comercial, com prazos limitados estabelecidos por recursos financeiros do mercado produtivo, os processos de ensino-aprendizagem, muito provavelmente, já se encontram mecanizados e os aspectos subjetivos da aprendizagem deteriorados, de modo que os projetos pessoais entram em conflito.

Outro pensador reconhecido pela Teoria Crítica, Karl Marx (1818-1883) descreveu a situação do trabalhador na sociedade capitalista, alienado da produção, transfigurado e coisificado pelo sistema produtivo, reduzido a mero executor de gestos mecânicos.

Vimos, no primeiro capítulo, as diferentes fases do modelo capitalista ao longo do tempo, procurando superar as contradições que engendra sem mudar seus princípios básicos. Assim, à medida que o capital se multiplica, concentrado nas grandes corporações, multiplicam-se também os produtos que prometem atender todas as necessidades humanas (reais e fictícias) e, ao mesmo tempo, cresce a pressão por obtê- los. Do mesmo modo, com o aperfeiçoamento das tecnologias de produção, das especificidades dos produtos, dos modelos de gerência, etc., a situação do trabalhador se torna crítica: por um lado, definitivamente separado da produção e da riqueza, e, por outro lado, cada vez mais exigido na capacidade de compreender e inserir-se no sistema. De um lado, aniquilado em sua capacidade criativa e imaginativa e, de outro lado, instado a consumir e reproduzir sua realidade dependente.

A Teoria Crítica, estudando a realidade também desde essa perspectiva, observa que a dinâmica libertadora do trabalho, capaz de transformar a natureza e produzir a sobrevivência humana, tornou-se, a partir da produção industrial capitalista, uma dinâmica social alienadora e expropriadora de energias vitais. A vida humana parece ter perdido a perspectiva de uma realização prazerosa e criativa, parece ter sido irremediavelmente subsumida na esfera da produção e do consumo, administrada desde fora. Na moderna sociedade capitalista, sem autonomia de escolha e esvaziada de quaisquer possibilidades imaginativas, a vida dos homens conforma-se à crescente e totalizante produção de uma cultura global.

Para Adorno (1995), falar em emancipação nesse contexto é tarefa bastante intrincada. Segundo ele,

A organização social em que vivemos continua sendo heterônoma, isto é,

nenhuma pessoa pode existir na sociedade atual realmente conforme suas próprias determinações; enquanto isso ocorre, a sociedade forma as pessoas

mediante inúmeros canais e instâncias mediadoras, de um modo tal que tudo absorvem e aceitam nos termos dessa configuração heterônoma que se desviou de si mesma em sua consciência (Adorno, 1995, p.181 – grifo nosso).

Instaurou-se um processo deformativo, conduzido pela indústria cultural, que enreda a vida humana e a reproduz de forma passiva. “A violência da sociedade industrial instalou-se nos homens de uma vez por todas. Os produtos da indústria cultural podem ter a certeza de que até mesmo os distraídos vão consumi-los alertamente” (Adorno e Horkheimer, 1985, p.105).

Para esses autores, existe uma pressão civilizacional que intensifica a participação dos sujeitos nas demandas produtivas e consumistas, de modo que a chamada globalização da modernidade representa, na verdade, a massificação da vida, tornada ela mesma mercadoria de consumo. Nesse sentido, todas as instâncias sociais encontram-se submetidas a essa pressão – “o mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da indústria cultural” (Adorno e Horkheimer, 1985, p.104).

A indústria cultural, nesse sentido, não pode ser compreendida como indústria, tampouco como cultura, mas como expressão de uma dinâmica social instalada na moderna sociedade produtiva. De acordo com essa dinâmica, o sistema não admite que o sujeito lhe imponha qualquer resistência, antes, é fundamental perceber que toda sua existência está assegurada, de alguma forma, e todas as suas necessidades podem ser satisfeitas pela indústria cultural, de tal sorte que lhe resta apenas seguir o fluxo, consumir e conformar-se com o que lhe é oferecido.

Nos termos expostos, é difícil imaginar toda a capilaridade dessa dinâmica nas diversas instâncias da vida, inclusive a acadêmica. Em nossa pesquisa, os estudantes relataram a influência do setor produtivo sobre as atividades universitárias. Porém, nos projetos em que estavam envolvidos, por tratarem de demandas sociais e parcerias com setores governamentais, não lhes pareceu existir o mesmo processo. O controle e direcionamento dado pela legislação, referência para sua constituição e fundamental na captação de recursos para sua realização, foi assimilado com naturalidade, sem qualquer questionamento. As implicações dessa natureza de projeto extensionista não foram

discutidas pela equipe. Ora, sem a consciência dos aspectos condicionantes a que está submetido em sua atuação, o indivíduo não alcança vislumbrar os limites nem a existência de outras possibilidades de ação. Seguindo essa dinâmica, a formação circunscreve-se a um conjunto estruturado de situações do cotidiano, já sistematizadas, em relação às quais ele é instrumentalizado a responder, de maneira que não se completa a perspectiva crítica. Tal formação orbita apenas ao redor da técnica. O que resulta claro é que a produção da

consciência verdadeira envolve alguma percepção dos aspectos condicionantes, os quais

só se revelam no enfrentamento das contradições.

Como se vê, a emancipação do ser humano não se realiza adequadamente, dada a configuração a que a vida está submetida no atual modelo de produção. Na Dialética do

esclarecimento, Adorno e Horkheimer (1985, p.41) já haviam denunciado: “a maldição

do progresso irrefreável é a irrefreável regressão”, deixando claro que a defesa apaixonada da modernidade contra as sombras de um passado mítico negava a possibilidade de se questionar a existência de contradições, o que não poderia significar a conquista final de uma vida boa para toda a humanidade. Na verdade, em última instância, tal postura danificou a existência de todos. Desfeito o horizonte religioso, a lógica científica racionalizou todos os âmbitos, não apenas mensurando e dando concretude aos espaços antes sagrados, mas também lhes atribuindo um valor. Com isso, a vida ganhou nova dinâmica, marcada pelo consumo, pela competitividade, eficiência e

produtividade. Agora, o sistema integra os sujeitos a si, e cada um é livre para escolher o

que achar mais conveniente. “Mas a liberdade de escolha da ideologia, que reflete sempre a coerção econômica, revela-se em todos os setores como a liberdade de escolher o que é sempre a mesma coisa” (Adorno, 1985, p.138).

A semiformação dá sustentação a essa nova configuração da vida, tornando-se a forma dominante da consciência atual, ou seja, a onipresença do espírito alienado. Considerando que formação é o processo de apropriação subjetiva da cultura, tudo começa com a espiritualização do padrão cultural da sociedade industrializada que, distanciando os sujeitos da experiência concreta, fixou o modelo moderno como única percepção legítima da realidade, fundamentado na racionalidade técnico-científica. A partir daí,

Quando o campo de forças a que chamamos formação se congela em categorias fixas – sejam elas do espírito ou da natureza, de transcendência ou de acomodação

–, cada uma delas, isolada, se coloca em contradição com seu sentido, fortalece a ideologia e promove uma formação regressiva (Adorno, 2010, p.11).

A gênese do processo, portanto, está vinculada à cristalização de um modelo de sociedade, forjado na modernidade, que privilegia uma única percepção da realidade, dada pela racionalidade sistêmica.

Esta realidade se naturaliza no capitalismo avançado, tornando-se a organização de mundo ao qual todos devem se ajustar. E, a partir dessa perspectiva, a noção burguesa de indivíduo deforma-se em uma expressão mais lapidada: o tipo. O indivíduo passa a ser aquele que, dado o refinamento de suas características, se ajusta numa determinada tipologia para a qual o sistema oferece bens específicos. Nesse sentido, no processo de subjetivação, constituição de seu eu, a consciência individual, em grande medida, já se encontra marcada pelos princípios da sociedade de consumo, podendo ser deixado por conta de cada um a construção da própria identidade.

Assim, nas sociedades em que esse modelo conseguiu penetrar mais profundamente, engendrou um sistema específico para reproduzir os indivíduos típicos necessários à manutenção do todo, com seus esquemas de reprodutibilidade mecânica e embotamento do pensar humano. Sob o peso da organização desse mundo e de sua ideologia, a consciência obscurecida é treinada para mover-se nos limites estabelecidos pela produção e pelo consumo.

Atualmente, a atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural não precisa ser reduzida a mecanismos psicológicos. Os próprios produtos – e entre eles em primeiro lugar mais característico, o filme sonoro – paralisam essas capacidades em virtude de sua própria constituição objetiva. São feitos de tal forma que sua apreensão adequada exige, é verdade, presteza, dom de observação, conhecimentos específicos, mas também de tal sorte que proíbem a atividade intelectual do espectador, se ele não quiser perder os fatos que desfilam velozmente diante de seus olhos (Adorno e Horkheimer, 1985, p.104).

Trata-se do movimento de distração concentrada. O mesmo acontece nas plataformas de interação via internet, como as redes sociais, onde as relações se estabelecem pelo mesmo princípio, com predominância de imagens sendo postadas à exaustão e criando a identificação pessoal (e coletiva). Assim, o sujeito de espírito alienado que emerge é esse indivíduo tipificado, envolvido por uma lógica que, mesmo fazendo sentido, é irracional, pois, além de aprofundar sua exploração e bloquear sua capacidade reflexiva, promove, paradoxalmente, aperfeiçoamento tecnológico,

excitação, depressão, agressividade. O avanço tecnológico exprime a supremacia de uma racionalidade que enxerga o mundo, a natureza e o próprio ser humano fora dela.

O quadro esboçado até aqui é bastante grave e remete a um universo bastante amplo, sem conexão direta com nossa temática específica. Mas, na verdade, a radicalidade dessas afirmações, até certo ponto excessivas, é um traço característico do pensamento dos pioneiros da Teoria Crítica, cientes da necessidade de realçar as cores do contexto, a fim de revela-las. E a amplitude de horizontes interessa, justamente, para demonstrar o alcance do que chamamos vida danificada. Como dissemos, a dissimulação e naturalização das contradições dificulta seu reconhecimento.

Assim, essa análise destaca que a sociedade criou determinadas formas de existência nas quais a racionalidade é irracional, pois anula a singularidade humana em vista de uma positividade controversa. De fato, a ideologia da razão técnica vangloria-se de ter superado crendices fantasiosas, tornando-se fundamento da estabilidade e

racionalidade do sistema; mas um sistema que naturaliza desigualdades, degrada o

ambiente, explora a vida humana e lança sobre os indivíduos a responsabilidade pela própria situação.

A educação, por sua vez, degradou-se em semiformação, fixada na produção de indivíduos típicos, para os quais as mercadorias produzidas mediam as relações dos homens entre si e com o mundo. Na verdade, a semiformação socializada passou a ser a forma dominante da consciência humana.

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