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A defesa de uma educação comprometida com a consciência verdadeira

CAPÍTULO 4 –EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA E FORMAÇÃO CULTURAL

4.4 A defesa de uma educação comprometida com a consciência verdadeira

Obviamente a assunção de uma consciência verdadeira não acontece espontaneamente, simplesmente por força do caráter dinâmico do processo de

emancipação. Trata-se de uma possibilidade, de um potencial da dialética emancipatória,

mas que só pode realizar-se através de uma educação comprometida com o sujeito, não propriamente com a produção. Ocorre que a produtividade é o eixo central da sociedade capitalista. Nela, os sujeitos reificados são ferramentas de produção e consumidores sistemáticos de mercadorias, num fluxo ininterrupto. Porém, esse modelo não pode sustentar-se indefinidamente, ao longo do tempo; cada vez mais, ele gera distorções, extermínio, degradação e miséria para a maior parte da população, distanciando, continuamente, a classe que produz da classe que consome. Assim, a discussão acerca do atual modelo de produção e da participação humana nessa engrenagem é urgente e não pode ser adiada. No âmbito da educação e da sistemática formação técnica existe muita

resistência, como pudemos observar na própria configuração das World Class Universities brasileiras, mas, no plano geral, a racionalidade sistêmica mostra-se

hegemônica.

Extinguindo tensões, a semiformação estabiliza as ações educativas no ajuste de funcionalidades, na qualificação técnica, na instrumentalização dos sujeitos, para que sejam versáteis e capazes de resolver rapidamente as crises provocadas pelas contradições da existência, camufladas e/ou tratadas como desajustes e pequenas falhas do sistema. Um processo, portanto, segundo o qual as relações entre macro e microestrutura não são pertinentes; em que as questões pertinentes são aquelas que garantem o conjunto das competências adequadas (conhecimentos específicos, habilidades e atitudes importantes para alcançar o sucesso com o mínimo de desgaste); em que os objetivos gerais e específicos estão muito bem delimitados e em que o foco é encontrar o “o que” e o “como

fazer” (e nunca o por quê e o para quê).

Entretanto, as crises e contradições desse modelo, cada vez mais intensas, vão despertando novas análises por parte da crítica, não de todo inviabilizada. A ideia de uma

reflexão. Em princípio, é preciso reconhecer que a racionalidade técnica instrumental não

despolitizou completamente o processo formativo, como dissemos acima. Na verdade, ela reinterpretou o caráter político da educação, associando-o ao gerenciamento equilibrado

desse processo, em que sujeitos devem ser capacitados para prestar serviços sempre mais complexos, necessitando não só das ferramentas adequadas como também de criatividade para enfrentar desafios sempre novos. A educação política, desde essa perspectiva, acontece na assunção da ideologia empresarial conduzindo o processo formativo, cujo resultado deve ser o indivíduo autônomo, isto é, autoprogramável.

Além disso, esse entendimento sustenta-se em princípios que estruturam uma educação designada como passaporte para o desenvolvimento e a justiça social. Uma educação alcançada pelos países desenvolvidos, a partir dos incentivos dados aos seus sistemas de ensino, que asseguraram sua chegada à elite da modernidade. Uma educação que garantiu seu salto para o futuro, razão pela qual seria preciso promovê-la em todos os lugares. Entretanto, se trata, ainda, de um modelo de educação que privilegia a aprendizagem de conhecimentos técnicos e sustentam a sociedade de consumo, articulando uma ideia de desenvolvimento ligado à esfera econômica, produtiva, no qual

justiça social significa acesso irrestrito à moderna tecnologia e ao seu consumo. Seus

princípios, portanto, são os da produtividade, competitividade, eficiência e eficácia. Nele,

capacidade reflexiva significa habilidade para manipular ferramentas, aperfeiçoando-as.

Desde essa percepção formativa, emancipada é a condição de quem acessa, se movimenta e se atualiza nesse contexto.

A educação política de que fala Adorno (1995), ao contrário, tem por princípio a

crítica reflexiva. Por isso, dissemos que não pode estar focada no conceito capitalista de produtividade, mas, como diz ele (Adorno, 1995, p.141), na produção da consciência verdadeira, a qual só poderá se constituir quando as tensões da existência forem reconhecidas, as contradições se manifestarem e os diferentes interesses forem

explicitados e discutidos.

Se a dimensão política da educação não foi extinta, pode existir a possibilidade de recuperá-la, nesses termos. A dinâmica da emancipação também carrega essa potência. Trata-se da emergência da autorreflexão crítica, a partir do próprio processo formativo, isto é, da capacitação profissional, mas extrapolando-a, no sentido de conjugar a discussão dos próprios fazeres. No quadro atual, a educação desenvolvida pelas instituições de ensino tem um caráter semiformativo, porém, a educação política pode

ser despertada fora dos espaços formais estabelecidos, pois seu lugar é o espaço administrado e controverso da inserção na cultura.

Para avançarmos nessa ideia, retomemos alguns elementos já pontuados: se a consciência é sempre consciência de alguma coisa, então mesmo na sociedade regulada pela racionalidade sistêmica, em que a consciência se estabelece pela via do condicionamento, em que a forma dominante da consciência é a semiformação, ela sempre estará pronta a vislumbrar o contraditório, pois guarda essa potencialidade. Nesse sentido, a produção da consciência verdadeira depende de uma educação que desenvolva, além da adaptação ao meio social, os aspectos subjetivos latentes. Retornemos a Adorno (1995, p.154):

A situação é paradoxal. Uma educação sem indivíduos é opressiva, repressiva. Mas quando procuramos cultivar indivíduos da mesma maneira que cultivamos plantas que regamos com água, então isso tem algo de quimérico e de ideológico. A única possibilidade que existe é tornar tudo isso consciente na educação; por exemplo, para voltar mais uma vez à adaptação, colocar no lugar da mera adaptação uma concessão transparente a si mesma onde isso é inevitável, e em qualquer hipótese confrontar a consciência desleixada. Hoje o indivíduo só sobrevive enquanto núcleo impulsionador da resistência.

O posicionamento de Adorno (1995) nessa passagem é bastante esclarecedor. Creio que, ao expor os limites da consciência não-crítica, ingênua, o autor nos ajuda a compreender melhor o significado da consciência verdadeira. Vimos, anteriormente, que a educação é política porque incide sobre a consciência dos sujeitos. Mesmo quando ela está fixada em uma perspectiva instrumental, ela constrói uma determinada sensibilidade “política” – nesse caso, focada nas questões técnicas e indiferente a quaisquer outros aspectos. Entretanto, uma educação comprometida com os sujeitos entende que uma autêntica sensibilidade política não pode limitar-se às questões funcionais, mas deve expandir-se para outros horizontes. E também o faz incidindo sobre a consciência: tornando-a consciência da própria formação, dos próprios conteúdos que administra, dos

procedimentos que estabelece e das atitudes que suscita. Nesse sentido, a ideia de concessão transparente a si mesma, no processo de adaptação, indica que o sujeito pode

admitir, sem prejuízo de sua individualidade, a própria acomodação aos elementos da cultura de forma consciente, ou seja: o processo formativo deve refletir sobre essa acomodação, como que desdobrando a consciência e revelando seus próprios condicionamentos; ao mesmo tempo, a ideia de confrontar a consciência desleixada em

crítica permanente – diante da realidade cultural, ou seja: o processo formativo deve incluir uma checagem de todas as implicações envolvidas em cada aprendizagem, de modo que a consciência desatenta se veja instada a dar as razões de cada uma delas.

Trata-se, em outras palavras, de uma educação comprometida com o exercício do potencial reflexivo dos sujeitos, despertando a consciência para o objeto contraditório, a ambiguidade e as discrepâncias presentes no confronto das distintas teorias e práticas, não só no âmbito acadêmico, mas na vida, de maneira geral. Ao tornar tudo transparente, o processo formativo força os educandos a refletir sobre essas implicações e o indivíduo, ressurgindo do coletivo, pode posicionar-se responsavelmente. E mesmo diante da impossibilidade de uma prontidão absoluta e permanente da educação em relação às contradições da existência, certamente esse é o primeiro elemento a ser buscado: “tornar tudo isso consciente na educação” (Adorno, 1995, p.154). Com efeito, sem essa preocupação voltada à formação da consciência dos indivíduos, a educação degenera-se, tornando-se opressiva e repressiva.

Nesse sentido, o ensino superior, consolidando-se como etapa de maturidade e autonomia, de entrada na vida adulta, tem amplas possibilidades de resgatar as tensões relativas à afirmação do sujeito como autor de si mesmo, desenvolvendo experiências que permitam aos estudantes produzir a própria palavra, inserir-se no ambiente cultural de forma crítica, assimilar a diversidade das forças sociais que compõem a realidade.

Tal perspectiva, na verdade, pode estar presente em algumas iniciativas indicadas pelo professor coordenador do primeiro projeto analisado (Questionário, Apêndice D), o que revelaria a situação ambígua da UFSCar. Segundo ele, há um grupo organizando um novo programa de extensão no Departamento de Educação:

O Programa que eu comentei contigo é o PROGRAMA DE INTEGRAÇÃO DAS ATIVIDADES ACADÊMICAS E DE EXTENSÃO DA PEDAGOGIA – PIAAEP, ele ficou pronto, mas não teve Atividade Vinculada a ele ainda, e atenderá especificamente ao curso de pedagogia, e tem como objetivo principal abrigar Atividades de Extensão desenvolvida por ou com alunos de graduação do curso de Pedagogia. As Atividades sempre serão coordenadas por um Docente, pois os estudantes não possuem a vinculação necessária para ofertar uma Atividade de Extensão, mas o objetivo é que as Atividades sejam planejadas em seu princípio com, pelos e para os graduandos (Questionário, Apêndice D) Assim, tal programa significa a abertura de um espaço para o protagonismo dos estudantes na universidade. O programa nasce sob coordenação docente – para que as atividades tenham a devida vinculação institucional e possam incorporar e sistematizar,

inclusive com a possibilidade de recursos financeiros e reconhecimento de créditos acadêmicos, as ações que os estudantes já realizam de maneira informal, além de suscitar novas. Na proposta encaminhada à PROEX, são apresentados os seguintes objetivos:

- Promover a integralização das atividades de extensão já realizadas pelos cursos de pedagogia presencial, do curso de pedagogia a distância e do curso de pedagogia da terra;

- Fomentar o desenvolvimento de mais atividades de extensão que possam agregar estudantes e docentes dos cursos mencionados acima;

- Acompanhar e apoiar as atividades de extensão oferecidas por docentes e/ou estudantes dos cursos mencionados;

- Criar, juntamente com estudantes dos diferentes cursos, um núcleo de apoio às atividades de extensão;

- Fomentar o desenvolvimento de atividades de extensão de cunho formativo para professores da educação básica em diálogo com os cursos mencionados;

- Implementar um encontro para divulgação e debates dos trabalhos de conclusão de curso desenvolvidos pelos 3 cursos mencionados (PROEX, 2017d, p.2). A proposta menciona atividades que poderiam ser inseridas no Programa e alcançar os três cursos da área da Pedagogia, como as Semanas de Educação, que já acontecem por iniciativa dos estudantes e não são institucionalizadas, e os Seminários de

Grupos de Pesquisa em Educação, que existem por iniciativa da coordenação de um dos

cursos. Tal programa poderia ser um incentivo ao limitado protagonismo dos estudantes, ao mesmo tempo que estimularia a participação discente em projetos extensionistas, indo além dos cursos e ACIEPES.

Em um contexto de semiformação, marcado pela racionalidade técnica instrumental, essa abertura de espaço para o protagonismo estudantil é muito importante. Porém, uma autêntica formação cultural demanda especial cuidado e devida atenção com a produção da consciência verdadeira, caracterizada pela atitude crítica diante dos conteúdos de aprendizagem. À educação cabe a tarefa de tornar consciente os mecanismos da instrumentalização do pensamento, tornando transparente aquilo que é inevitável e confrontando criticamente o que seria simplesmente incorporado, pois “a única possibilidade de sobrevivência que resta à cultura é a autorreflexão crítica sobre a semiformação em que necessariamente se converteu” (Adorno, 2010, p.39).

Assim, o projeto, ao reconhecer o protagonismo discente em diferentes atividades do curso, deve propor que tais ações contemplem uma reflexão crítica sobre a formação desenvolvida. Desse modo, se tornaria uma dinâmica fundamental na recuperação do indivíduo dentro da sociedade de massas e consciências amortecidas, pois se realizaria a partir de uma perspectiva de racionalidade dialética e consolidação de um pensamento

crítico. O exercício da problematização dá ao indivíduo, submetido à força colonizadora da organização social, o impulso para resistir à pressão sobre sua consciência.

Portanto, a resistência aos processos massificados e à colonização dos espaços fundamentais – como é o da educação – adquire especial relevância, e daí a necessidade de se multiplicarem os atores das ações extensionistas, bem como as discussões sobre os programas em andamento. O princípio dessa educação é a urgência do desenvolvimento de um espírito reflexivo que recupere as tensões inerentes à experiência dos homens no mundo.

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