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As diferentes acepções dos conceitos de formação e autonomia

CAPÍTULO 4 –EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA E FORMAÇÃO CULTURAL

4.3 As diferentes acepções dos conceitos de formação e autonomia

Diante dessas colocações, podemos afirmar que estamos concebendo o processo

formativo desde uma perspectiva dinâmica, que deveria envolver tanto a aquisição de conhecimentos instrumentais e desenvolvimento de certas habilidades e atitudes quanto

a capacidade crítica de avalia-los constantemente nas relações e desdobramentos estabelecidos durante sua implementação. Não queremos afirmar que a racionalidade sistêmica é um mal em si mesma. Ocorre que a tendência predominante a considera superior, o Conhecimento por excelência, descartando a segunda perspectiva.

Ao longo da pesquisa, por ocasião das análises dos relatórios da extensão, das entrevistas com os estudantes e das conversas com os professores, pudemos observar essa

tendência presente e orientando, inclusive, as atividades dos distintos setores acadêmicos da UFSCar em função de certos padrões estabelecidos. Nesse sentido, por exemplo, as áreas da saúde e humanidades encontram-se mais voltadas ao atendimento das demandas sociais, desenvolvendo e implementando políticas públicas em parceria com órgãos governamentais municipais, do Estado e da União, ao passo que as áreas da tecnologia e da produção estão mais comprometidas com organizações empresariais e comerciais, captando grande volume de recursos para seus projetos específicos.

Poderíamos citar os números relativos à captação de recursos externos pelo Centro

de Ciências Exatas e Tecnologias e pelo Centro de Ciências Agrárias da UFSCar, nos

últimos anos, bem como as demandas sociais e a procura dos órgãos governamentais propondo parcerias para implantar políticas sociais e direcionando as ações no Centro de

Educação e Ciências Humanas e no Centro de Ciências Biológicas e da Saúde da

universidade. Com efeito, nessa segunda esfera, a Lei 13.006/2014 e a Portaria 2761/2013, do Ministério da Saúde, estabelecem orientações que foram integradas aos projetos analisados, confirmando a ideia de que a universidade, de certa forma, se vê cooptada por órgãos governamentais para atender demandas da sociedade, muitas vezes em detrimento de sua missão educativa. Nas áreas da saúde e de humanidades, portanto, o compromisso acontece nos projetos de cunho social, enquanto que, na área tecnológica, se materializa em forma de parcerias comerciais que possibilitam o desenvolvimento de novas tecnologias, incorporadas pelo setor produtivo. Em todas as áreas, o fio condutor das ações é sempre a mesma racionalidade instrumental, voltada ao desenvolvimento de práticas e à resolução de situações concretas que demandam estudos e qualificações sempre mais especializadas.

O que pudemos perceber, dessa realidade, é que a categoria formação parece ter perdido a noção de desenvolvimento da consciência verdadeira, emancipada, no sentido crítico, capaz de reconhecer as instrumentalizações e posicionar-se livremente em relação ao contexto, tendo se fixado na noção de aquisição de novas competências, por meio do desenvolvimento de habilidades e atitudes, capacitação para atuar com novas tecnologias, resolução dos problemas pontuais. É como se a formação tivesse se divorciado de sua face educativa, junto da qual completava o movimento de expansão e delimitação de horizontes. O entendimento do quadro atual, por sua vez, conduz também a uma nova perspectiva em relação à emancipação dos sujeitos: esses passam a ser, agora, os mais versáteis, capazes de se transformar rapidamente atendendo melhor às exigências da realidade.

Entretanto, é preciso que se reconheça uma perda na dinâmica formativa. A dimensão crítica foi silenciada em função da preponderância de outra acepção da categoria educação; um único sentido foi naturalizado, fixado como verdadeiro. Ou seja: observamos que, em grande medida, a universidade pondera a noção de formação e

autonomia dos sujeitos segundo a perspectiva do desenvolvimento de competências instrumentais, habilidades e atitudes padronizadas, de tal modo que a questão da consciência crítica vai se restringindo gradativamente.

Essa redução é um movimento regressivo da razão, em decorrência do modelo de produção capitalista. Com efeito, a imposição de uma crescente produtividade requer a supremacia de uma racionalidade sistematizadora e controladora, inibindo o pensamento crítico-filosófico.

Adorno (1995) havia afirmado a existência de uma dialética na constituição dos sujeitos e da cultura, como um movimento de adaptação, mas, ao mesmo tempo, de

ruptura da existência. Entretanto, a emergência da sociedade tecnológica, centrada na produção e no consumo, acabou por cristalizar o movimento da adaptação, devido à

supremacia da racionalidade instrumental, técnica, que inibe a crítica e a assunção de qualquer singularidade.

Ocorre, porém, que no conceito de autonomia também temos uma dinâmica. Se, por um lado, ela pode ser entendida desde a perspectiva da versatilidade do sujeito, sua maneira de se posicionar frente a distintas situações, por outro lado, a autonomia continua sendo algo que se conquista gradativamente, e, portanto, mesmo a versatilidade não é dada de uma só vez.

Com efeito, a questão da autonomia dos sujeitos não pode ser compreendida de forma estática, como uma realidade que alguém tem ou não tem, em termos absolutos. Quando Immanuel Kant, em sua obra Resposta à pergunta: que é esclarecimento?, questiona-se acerca da época em que vive: “vivemos agora em uma época esclarecida?, encontra a seguinte resposta: ‘não, vivemos em uma época de esclarecimento’” (Kant, 2013, p.69). De modo que a emancipação é uma categoria dinâmica, segundo a qual a

autonomia compreende um vir-a-ser, um contínuo movimento, e não um ser, uma

realidade que se apreende de uma única vez. Nesse sentido, alguém nunca será

completamente emancipado, porém sempre poderá alcançar determinada autonomia conforme exercitar o próprio entendimento em relação às diferentes situações que vivencia. Dentro do viés da racionalidade instrumental, em que a autonomia diz respeito

diferentes situações. Ora, isso implica uma abertura permanente à aprendizagem e ao conhecimento, e pode significar um horizonte de acesso à racionalidade crítica. Em sendo a emancipação uma realidade dinâmica, em constante movimento, a abertura de novos horizontes conceituais nunca está totalmente eliminada.

Considerando o movimento original da inserção dos sujeitos na cultura –

adaptação e ruptura – e o aspecto dinâmico do processo emancipatório – entendimento

crescente de novas realidades e possibilidade de lidar com elas – a formação e a

autonomia devem articular tanto o desenvolvimento de uma consciência verdadeira,

crítica, capaz de perceber as contradições da realidade, como também a emergência do sujeito versátil, capaz de compreender e se posicionar rapidamente diante das variações de seu contexto. Os processos formativo e emancipatório envolvem tanto a aquisição de determinadas competências – conjunto de habilidades e atitudes que possibilitam ao sujeito orientar-se nas situações concretas – como também a expansão da própria

consciência: o despertar de um juízo crítico suficientemente ativo, capaz de posicionar-

se livre e criativamente frente à realidade.

Resta saber até quando a predominância de uma formação para o domínio técnico, sem a discussão dos princípios que sustentam essa racionalidade nem a compreensão de sua dinâmica, obscurecerá a visão dialética da existência e inviabilizará a assunção do sujeito crítico.

No atual contexto, a cultura deixou de ser espaço de interações e constituição do sujeito reflexivo, sendo espiritualizada e transformada, também ela, em objeto de consumo. Vivemos em uma sociedade que se reproduz para o consumo, ininterruptamente. Tal situação, como parte da dinâmica produtiva, estabeleceu a hegemonia da racionalidade técnica instrumental, segundo a qual o entendimento de uma realidade resulta do domínio de suas estruturas. Nessa perspectiva, as instâncias sociais tendem a ser reduzidas a componentes, que podem ser sistematizados e controlados, o que, por sua vez, acaba estabelecendo um novo olhar sobre as coisas, sobre as atividades e até mesmo sobre as outras pessoas, sempre funcional e utilitarista, de maneira que tudo é avaliado em termos de seu valor para o aperfeiçoamento do modelo de vida existente.

Com isso, os sujeitos são simplesmente submetidos à sociedade, que os integra por meio da produção e do consumo. A singularidade humana, que criava a possibilidade de mudança, ficou reprimida, pois todos devem se conformar aos padrões estabelecidos e esquemas vigentes.

O rompimento dessa dinâmica, ainda que possível, depende do processo formativo e da autonomia do sujeito, que sustentam a situação vigente. Nesse sentido, a dialética dos conceitos apresentados é de suma importância para nossa pesquisa, uma vez que estamos analisando o ensino superior, em que a formação já não diz respeito primordialmente à inserção cultural, mas sim à profissionalização. E quando se fala em profissionalização, é preciso considerar que estamos em uma fase do capitalismo em que o mercado de trabalho exige a emergência de sujeitos pensantes, criativos, capazes de imaginar e produzir soluções – não apenas memorizar, como no passado.

Cada vez mais, as instituições de ensino superior estão reestruturando seus projetos pedagógicos em vista de novas exigências que o mercado de trabalho vai introduzindo (Alves; Vieira, 1995): a necessidade de profissionais capazes de gerir a própria aprendizagem, que compreendam os processos de produção, que tenham uma aguçada capacidade de observação e interpretação, que saibam tomar decisões rapidamente e avaliar adequadamente os resultados. Além disso, que dominem a linguagem técnica do negócio e sejam capazes de se comunicar tanto oralmente como por escrito, tenham disposição para trabalhar em grupo, estejam abertos a novos conhecimentos e tenham uma versatilidade funcional no trabalho.

Um conjunto de qualificações, portanto, que exige abertura permanente para o conhecimento. Em vista dessas e outras exigências, busca-se, como dissemos, uma educação voltada ao desenvolvimento de competências, as quais compreendem um conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes que os estudantes devem adquirir em cada etapa do processo formativo: uma formação centrada na aprendizagem, com novas

metodologias, ênfase no estudo de casos, na formação em serviço, no desenvolvimento

de projetos, na atuação em campo prático. Interessa-nos reconhecer que uma formação dessa envergadura, formação continuada, multíplice, não pode constituir-se permanentemente distanciada de aspectos críticos, da reflexão sistemática, da discussão de contradições.

A questão que nos colocamos é se a dinamicidade implicada no conceito de

autonomia, aliada às exigências da profissionalização, cada vez mais complexas, em

algum momento poderiam suscitar uma formação de nível superior para além da capacitação técnica, da atividade meramente funcional. Essa indagação, por sua vez, remete a uma série de novas problemáticas, já indicadas anteriormente:

Ø   A Universidade é o espaço da diversidade epistêmica, mas, ultimamente, vai perdendo sua heterogeneidade, vai deixando de ser lugar de múltiplos conhecimentos, de amplas discussões, vai se conformando a um modelo internacional padronizado, vai se tornando Universidade de Classe Mundial, voltada essencialmente à pesquisa e à produção do conhecimento matéria-prima. Como poderia interessar-se pelo pensamento crítico?

Ø   As diferentes instituições que oferecem ensino de nível superior vão se especializando e se fragmentando cada vez mais, concentrando-se na formação técnica e no treinamento instrumental. Como abririam espaço para avaliar criticamente seus próprios conteúdos?

Ø   A produção, sempre mais automatizada e especializada, vai exigindo menos profissionais para os postos de trabalho existentes, ao mesmo tempo que aumentam as exigências de sua qualificação, de modo que a tendência é que cresça o número de graduados no mercado e diminua a perspectiva do emprego formal. Como dar relevância ao pensamento crítico num mundo dominado por uma tecnologia que sempre se adianta às possibilidades de formação dos sujeitos?

Não são questões de fácil resposta e, no entanto, devem ser enfrentadas continuamente pela academia. À medida que a consciência dessas e de outras problemáticas vai despertando, o processo formativo deve discuti-las, evidenciando a amplitude dos conflitos e interesses subjacentes ao ensino universitário. Considerando que a educação é um processo permanente, que se inicia na infância e se prolonga por toda vida, inclusive ao longo da formação de nível superior, a dinâmica da emancipação não se ausenta, antes, incide diretamente sobre a consciência dos educandos. Nesse sentido, ainda que seja uma educação focada em uma racionalidade técnica instrumental e existam obstáculos à crítica reflexiva, não se pode afirmar que a consciência resulta absolutamente condicionada, pois os próprios conteúdos da profissionalização, inseridos no bojo de competências cada vez mais valorizadas, podem produzir sujeitos críticos de

sua própria formação e de seu papel na sociedade, alcançando um novo grau de

maturidade. Em outras palavras: poderíamos imaginar que na própria dinâmica do processo da emancipação, defendido como processo para a assunção de um sujeito versátil e adaptável, seria possível o despertar da consciência verdadeira, da ideia do para

quê tal formação? - Para que servem os conhecimentos adquiridos? Que sociedade eles ajudam a construir?

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