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2. BIOGRAFIA, CONTEXTO E INFLUÊNCIAS

2.2. VEBLEN E A ECONOMIA DE SUA ÉPOCA: POR QUE A ECONOMIA NÃO É

2.2.2. As Influências da Filosofia Pragmática Clássica e Suas Lições Psicologistas

2.2.2.1. Charles Sanders Peirce: as crenças, as dúvidas e a habituação

Tanto Veblen quanto Dewey assistiram ao seminário intitulado ―Elementary Logic‖, ministrado por Charles Peirce durante o outono de 1881, na Universidade de John Hopkins (Griffin 1998). Na ementa deste, pode ser facilmente observada uma associação aos interesses expressos por Veblen em seus escritos, apresentando tópicos como: a teoria da cognição, o método da ciência, silogismo, lógica dos parentes, concepção de números, indução e raciocínio científico, ilustrações da história da ciência, teoria científica da constituição da matéria, e questões filosóficas relacionadas à concepção da causação (Griffin 1998)48. Sendo que o ―inquérito científico‖ era recorrentemente do interesse de Peirce e usado como pano de fundo para este seminário. Desse modo, nota-se que Peirce contribuiu com a construção teórica de Veblen principalmente através da percepção da lógica científica através da construção de inferências. Porém, Almeida (2015b) salienta que nem Dewey e nem Veblen compartilhavam da abordagem metodológica que Peirce apresentava. Sendo a influência desse pensador em seus célebres alunos ocorreu no pensar científico e filosófico de um modo mais genérico.

Essa diferenciação de perspectiva pode ser entendida como uma distinção fundamental nos objetivos teóricos desses autores, pois como Almeida (2015b) bem comenta, em Peirce observa-se majoritariamente o objetivo de entendimento do processo de evolução científica através da ótica da filosofia pragmática, enquanto que por Dewey e Veblen (assim como por James), a ótica pragmática estava voltada a entender o processo de tomada de decisão49. Ou,

47 Esse item, apesar de sucinto, tem o objetivo de apresentar algumas das contribuições de Peirce que,

provavelmente, foram de grande auxílio na construção teórica de Veblen. Essa passagem consiste em uma possibilidade e não em uma afirmação, pois conforme consensual em boa parte dos estudiosos de Veblen, poucas referências são encontradas nos escritos do institucionalista. Sua característica de escrita dificulta a identificação de suas referências e influências, porém, não raro, essas são identificadas através de estudos biográficos do autor. Exatamente esse é o caso de Charles S. Peirce.

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Os tópicos da ementa da disciplina foram apresentados por Griffin (1998) através de uma circular da Universidade de John Hopkins, conforme destacado pelo seguinte trecho:

A Johns Hopkins University circular composed by Peirce for fall 1882, the year after Veblen took the course, lists the topics to be covered in "Elementary Logic" as follows: theory of cognition, the method of science, syllogism, logic of relatives, conception of number, induction and scientific reasoning, illustrations from the his- tory of science, scientific theories of the constitution of matter, and, finally, philosophical questions such as the conception of causation. (Griffin, 1998, p.733).

49 Apesar de focar majoritariamente em questões de metodologia científica e evolução científica, cabe o destaque

de que Peirce também fizera importantes contribuições ao pensar filosófico na análise da tomada de decisão e do comportamento dos indivíduos, conforme veremos mais adiante ainda neste item. Ou seja, quando destaca-se essa característica nos trabalhos de Peirce, não objetiva-se dar a entender a exclusão de outras temáticas de trabalho, somente melhor situar o autor em suas contribuições.

pelas palavras de Almeida (2015b, p.3) sobre essa diferenciação: “[...] Peirce relied on a „scientific pragmatism‟ and Dewey and James – as well as Veblen – relied on „pragmatism of human beings‟ or „social pragmatism‟”.

Tal caracterização explica em boa medida o fato de Veblen ter se debruçado muito mais sobre os escritos de Dewey e James, mesmo que sua fonte primária ao pragmatismo tenha sido Peirce. Porém, não se deve mal interpretar essa colocação, imaginando total ausência das influências de Peirce nos escritos de Veblen (Liebhafsky 1993). Afinal, foi pautado nos ensinamentos de Peirce que Veblen aderiu fortemente à noção de processo evolucionário na lógica científica (Almeida 2015b). Sobre a ausência de menções das influências de Peirce nos escritos do institucionalista, Dyer (1986) e Liebhafsky (1993) pontuam que é possível observar importantes convergências entre ambos os autores, como por exemplo, a noção de existência de uma ―curiosidade vã‖ nos indivíduos, representada pelo conceito de musement em Peirce e idle curiosity em Veblen, e também a adesão de uma abordagem metodológica abdutiva50 na construção científica de ambos os autores.

Para que se possa entender a característica abdutiva da teoria de Peirce, deve-se, primeiramente, salientar que para o autor o conhecimento apresenta-se como resultado da capacidade cognitiva dos indivíduos, por isso esse importante elemento psicológico deve ser levado em consideração quando tenta se entender o processo de desenvolvimento científico através das inferências. Afinal, o processo de inferência de um indivíduo seria o resultado das percepções recebidas por este ao longo de sua vivência (Dyer 1986). Entender esse fator é fundamental para se vislumbrar a teoria de Peirce sobre o método científico, principalmente no que se refere à construção de hipóteses. Exatamente nesse ponto, outra grande convergência entre Peirce e Veblen emerge, afinal, ambos os autores viam como fundamental a construção precisa de hipóteses e inferências científicas no processo de desenvolvimento da ciência (Dyer 1986).

Atentando especificamente às contribuições teóricas de Peirce que podem ser entendidas como influências em Veblen, podemos observar o apreço do pragmatista pelos assuntos de lógica e, como já comentado, inferência científica (Liebhafsky 1993). Nesses campos, Peirce estabelece importantes noções e conceitos que vêm a permear a toda sua teoria. Dentre os quais, as crenças (beliefs), dúvidas (doubts) e construção de hábitos

50 A abdução é um método de inferência que apresenta certa probabilidade de conclusão, mas não

necessariamente a sua verdade. Desse modo, a abdução é a inferência a favor da melhor explicação em relação a outras; uma possibilidade plausível, aceitável e provável (Branquinho 2006).

mostram-se como fundamentais, principalmente ao se atentar ao processo de tomada de decisão e o comportamento dos indivíduos. Sobre tal, Peirce mostra que os indivíduos que estão imersos em um mesmo ambiente na tomada de decisão, conseguem desempenhar um processo de associação entre suas crenças e dúvidas em relação ao comportamento alheio (Peirce [1877] 2006). Tanto as crenças quanto as dúvidas correspondem a aquilo que esse indivíduo tem internalizado em sua forma de pensar, tendo como foco seus objetivos. Desse modo, segundo Peirce ([1877] 2006), existem diferentes possibilidades de se aprender um comportamento, de acordo com diferentes crenças e dúvidas em relação a aquilo que está sendo observado.

A crença pode ser melhor entendida se observada em forma de convicção do indivíduo em atingir um resultado satisfatório em determinada ação/deliberação. Quando Almeida (2015b), por exemplo, comenta, especificamente, o processo de tomada de decisão de consumo conspícuo51 baseado no sistema de crenças e dúvidas de Peirce, pode-se observar uma explicação bastante clara a respeito do desencadeamento dessa deliberação. Segundo Almeida (2015b) através da observação do comportamento alheio em adquirir/consumir determinado bem, o indivíduo pode ser levado a compreender aquela atitude como apropriada ou não para ser adotada em ordem de se ver livre do impulso para o consumo (gerando uma relação de satisfação entre o consumo do bem e o impulso de consumir). Desse modo, frente a essa observação, a crença pode ser observada como a convicção de que aquele comportamento traria satisfação para o indivíduo frente ao consumo daquele bem especificamente52.

A dúvida pode ser entendida através do mesmo processo, porém, ao invés do indivíduo estar convicto de um resultado positivo, o mesmo estabelece uma relação de dúvida sobre o resultado dessa ação/deliberação. Desse modo, a dúvida age como uma descrença, ou então, como algo que desqualifica determinada ação/deliberação como a mais adequada para aquela situação em específico. Ou seja, as dúvidas ocorrem frente a não identificação do indivíduo com determinado modelo de comportamento (Peirce [1877] 2006).

Diferentes emoções são experimentadas nesses dois critérios de deliberação. No caso da crença, quando o indivíduo estabelece uma causação positiva entre a ação e o resultado, o

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O conceito de consumo conspícuo será melhor trabalhado na seção 4.1 quando trabalharemos esta e outras importantes noções relacionadas a teoria da classe ociosa.

52 Sob esta perspectiva nota-se a característica da busca pelo pertencimento. Afinal, para que o indivíduo consiga

encontrar as crenças e as dúvidas em relação à sua tomada de decisão, a observação alheia aparece como atributo fundamental. Sendo assim, conforme Veblen mostrará em The Theory of the Leisure Class, as propensões comportamentais dos indivíduos apresentam um caráter emulativo em relação à seu meio.

sentimento será de satisfação. No caso da dúvida, quando o indivíduo não for capaz de gerar a associação positiva em relação a ação e o resultado, o sentimento será de frustração e irritabilidade. Peirce (1877) explica que essa relação está associada ao fato de que as crenças auxiliam no direcionamento dos desejos e na formatação do comportamento do indivíduo, enquanto que a dúvida pauta-se na ignorância (desconhecimento) sobre como canalizar os desejos e o comportamento.

Peirce (1877) argumenta que a irritação proveniente da dúvida é uma das principais motivadoras da busca por crenças. Tais crenças podem não só serem adquiridas através da observação das deliberações alheias, como também podem ser revisadas, realocadas e reforçadas de acordo com as novas experiências desse indivíduo. O aspecto de revisão e realocação está diretamente associado à capacidade de questionamento dessa crença em todo momento que o indivíduo à coloca a prova. Caso uma crença deixe de estabelecer uma relação de satisfação, ela pode ser revisada ou abandonada e substituída por outra crença com maior conveniência. Já a característica de reforço ocorre frente a um longo período de utilização dessa crença frente a também um longo período de satisfação atrelado a ela (Peirce [1877] 2006).

Peirce ([1877] 2006) salienta ainda a existência de diferentes métodos para fixação de crenças. Tais métodos apresentam características ligeiramente diferentes, porém o objetivo almejado é sempre o mesmo: evitar a irritabilidade e o desconforto das dúvidas aderindo (ou reforçando) a crenças. Através de Peirce ([1877] 2006) e com o auxílio de Griffin (1998), podemos entender os diferentes métodos de fixação de crenças da seguinte maneira: o ―método da tenacidade” diz respeito a aquelas crenças que estão associadas a um elevado nível de obviedade, sendo muitas vezes resultado de um processo de doutrina em relação a determinado assunto, desmotivando o indivíduo a questioná-la, simplesmente aceitando-a como verdadeira. O ―método da autoridade”, assim como o nome já nos delata, está relacionado às crenças que são aderidas devido ao caráter de autoridade do seu divulgador, sendo normalmente associada a agentes políticos ou teológicos. O ―método a priori” resulta da dúvida oriunda da impossibilidade de qualquer método em guiar todos os comportamentos em todas as situações o tempo todo. Visando evitar esta dúvida, os indivíduos reorganizam suas crenças de acordo com aquilo que seria harmônico entre os próprios indivíduos e suas razões, e também harmônicas para com aquilo que Peirce chamou de ―causas naturais‖. Por último, mas não menos importante, através da ―indução e o método científico”, Peirce defende que nossas ideias e crenças deveriam estar atreladas a funcionalidade que, por sua

vez, seria resultado do nosso processo de julgamento observacional através da inferência indutiva.

Também cabe o comentário de que uma crença que é repetidamente reforçada tende a ser compartilhada socialmente um maior número de vezes devido ao caráter observacional dos indivíduos. Desse modo, esse reforço de crença se torna também uma disseminação de comportamento no ponto de vista social. Exatamente nessa característica que reside o caráter habitual da teoria de Peirce. Afinal, segundo Peirce ([1877] 2006; [1878] 2006) a crença atua como a natureza dos hábitos, assim como os hábitos caracterizam a essência da crença. Desse modo, Peirce (1877) argumenta que a habituação de uma crença atua como um princípio guia (guiding principle) do comportamento dos indivíduos, através da repetição da crença frente ao mesmo cenário ou cenário similar (Almeida, 2015b; Peirce [1877] 2006).

A noção de comunidade mostra-se fundamental para que se entenda o sistema de crenças e dúvidas. Segundo Peirce ([1877] 2006), a habituação de crenças está diretamente relacionada com o sentimento de pertencimento do indivíduo com determinado grupo, visando sentir-se acolhido em sua vivência. Desse modo, visando pertencimento do grupo, nota-se que critérios de comportamento devem ser atingidos, pois somente assim o indivíduo será acolhido pelo grupo. É através dessa percepção de pertencimento que ocorre o compartilhamento dos hábitos e a difusão de crenças, fazendo com que sejam – numa noção vebleniana – institucionalizados os comportamentos dos indivíduos em sociedade (Liebhafsky 1993).

Com base no sistema de crenças e dúvidas de Peirce é possível observar a importância atribuída ao autor nas inferências abdutivas. Afinal, o caráter observacional dos indivíduos em relação ao seu grupo são de fundamental importância em sua tomada de decisão individual, pautado naquilo que este indivíduo acredita (tem convicção). Essa característica também poderá ser vislumbrada numa ótica vebleniana quando formos analisar aos hábitos de pensamento e comportamento que Veblen apresentou sem sua teoria.