• Nenhum resultado encontrado

4. A CIÊNCIA EVOLUCIONÁRIA NO PENSAMENTO DE THORSTEIN VEBLEN:

4.2. UMA ANÁLISE DE THE INSTINCT OF WORKMANSHIP AND THE STATE OF

4.2.2. Contamination of instincts in primitive technology

A faceta evolucionária que acompanha os instintos em sua ascensão e perpetuação é responsável também por adaptar esses traços do comportamento às diferentes realidades habituais em que os indivíduos encontram-se inseridos. Sendo assim, Veblen volta a destacar o papel habitual de determinação e condicionamentos dos instintos através dos hábitos. Esta constatação mostra-se de fundamental importância uma vez que o acervo de hábitos está diretamente relacionado à realidade material, cultural e produtiva de uma comunidade. Com esta inquietação em mente, Veblen dedica este capítulo a entender como se deu a contaminação dos instintos com o advento da tecnologia primitiva e seus reflexos no cotidiano e na estruturação social.

Iniciando através da explicação da cumulatividade habitual, Veblen destaca que trata- se de um processo entre gerações. Segundo o autor, através das tradições, treinamentos e educação. as novas gerações estariam condicionadas a perpetuarem hábitos desenvolvidos e também perpetuados por gerações anteriores. Sendo assim, esta característica cumulativa dos hábitos é diretamente responsável pela institucionalização de costumes, convenções e preconcepções que são traços característicos de determinadas raças/comunidades. Logo, o esquema tecnológico e produtivo, pela sua característica convencional e habitual, também apresenta-se passível do processo cumulativo dos hábitos através do tempo e de diferentes gerações. Com diferentes realidades, diferentes rotinas emergem no modo em que as novas possibilidades produtivas mostram-se viáveis; assim como o papel do conhecimento também apresenta-se cada vez mais relevante e carregado de informações pregressas.

Desse modo, o esquema tecnológico e produtivo, assim como já mencionado anteriormente, está diretamente relacionado às capacidades dos indivíduos em adaptarem-se as realidades materiais. Conforme o conhecimento emerge através de gerações, assim como hábitos desempenham suas funções de condicionadores instintivos, novas possiblidades produtivas passam a ser vislumbradas e desenvolvidas. Porém, como Veblen bem salienta, os hábitos formados através de qualquer linha de experiência, terão seus efeitos na conduta e nos objetivos dos trabalhadores em todos os seus trabalhos. Isto implica dizer que todo o processo de progresso tecnológico não apresenta-se como um resultado do trabalho eficiente per se, mas também está fortemente carregado das malhas habituais (aprendidas e perpetuadas) de uma comunidade.

Conforme salientado por Veblen, essa característica humana representa a faceta de contaminação dos comportamentos dos indivíduos em uma mesma comunidade. Sendo assim, as organizações industriais/produtivas da comunidade estarão sempre voltadas à atender as diferentes demandas habituais de seus membros. Como os hábitos e, por tanto, instituições apresentam-se conservadores pela sua característica psicológica, as diferentes possibilidades produtivas e inovativas seriam condicionadas pela cumulatividade crescente de experiências e conhecimento. Desse modo, constantemente há uma formatação tecnológica e produtiva da sociedade como resultado reflexo das mutações e perpetuações desses diferentes elementos institucionais. Cabe salientar que estas diferentes inclinações habituais acerca da produtividade e progresso tecnológico apresentam-se fortemente atrelados ao instinto de trabalho eficiente (workmanship) e sua busca pela eficiência material.

Tecidas as supracitadas explicações a respeito do processo de formação e perpetuação institucional no que se refere ao progresso tecnológico e produtivo, Veblen segue sua

explicação a respeito das contaminações dos instintos nas tecnologias primitivas. Segundo o autor, em períodos mais arcaicos de organização social, as comunidades pareciam muito dependentes dos conhecimentos anteriores de seus membros. Mais do que isso, Veblen argumenta que esta teria sido uma caraterística fundamental dos estágios finais da selvageria pacífica e início da fase predatória. Logo, através desta característica, nota-se que o processo de criação e inovação dessas comunidades apresentava-se precário e comprometido, uma vez que o conhecimento anterior prevalecia a novas possibilidades do presente. Este comportamento conservador destas culturas, manteve-se existente enquanto compatível com as demandas e possibilidades da sociedade. Afinal, em períodos de selvageria pacífica e carência de propriedade privada, as demandas produtivas apresentavam-se muito menos complexas. No caso aqui descrito, nota-se uma forte dependência e reforço de outras proclividades instintivas, como por exemplo, o instinto parental (parental bent). Neste caso, o papel de manutenção da sociedade, através do direcionamento e ensinamento dos mais novos, é de responsabilidade das gerações que os antecederam.

Deve-se notar que a característica de mudança e inovação nos processos sociais, tanto produtivos, quanto cerimoniais, estão diretamente relacionados com o volume de informações e conhecimentos da sociedade. Exatamente devido a esta característica, nota-se que formas de organização mais complexas geram também mudanças mais abruptas e rotineiras. Neste ponto retoma-se a correlação existente entre o instinto de trabalho eficiente e a inclinação parental, uma vez que ambas determinam a execução das atividades produtivas das comunidades em contexto e possibilidades diferentes. Em ambos os casos, há o direcionamento dos indivíduos em suas inclinações instintivas à perpetuação de conhecimentos em prol de sua continuidade e realização. No caso do instinto parental, os indivíduos voltam-se a criar habituações relacionadas a os ensinamentos dos mais velhos e a perpetuação da cultura. No caso do instinto de trabalho eficiente, os indivíduos voltam-se a melhor adequação do cenário em que vivem, direcionados e condicionados aos hábitos que lhe compõem.

Segundo Veblen, no caso do instinto de trabalho eficiente nota-se um dos casos mais obstrutivos de contaminação. Na perspectiva do autor, em processos mais primitivos de organização social, em que o animismo e o antropomorfismo apresentam-se de maneira mais incisiva e recorrente, nota-se a auto contaminação do instinto de trabalho eficiente nos termos em que compromete-se com as características teleológicas de explicações o observações de fenômenos. Veblen destaca que a característica íntima e pessoal atrelada ao entendimento do mundo e, portanto, dos processos, faz com que os indivíduos busquem por equacionamentos habituais que lhe confiram consonância com suas crenças. Sendo o instinto de trabalho

eficiente passível de interferência e condicionamento habitual, assim como todos os demais instintos, as características de vida das comunidades de origem antropomórfica apresentam-se decisivamente presentes neste traço do comportamento.

Veblen aponta ao animismo como uma forma arcaica de antropomorfismo, na medida que direciona consciência à todos os atributos e artigos existentes. Tal perspectiva, em consonância com a crença antropomórfica de entidades (deuses) faz com que a perspectiva teleológica seja predominante nos hábitos de pensamento dos indivíduos. Ou seja, apresente- se de grande relevância no condicionamento dos instintos e nas instituições. Sendo assim, Veblen delata como correlata as perspectivas teleológicas na composição do conhecimento humano com as perspectivas animistas e antropomórficas dos hábitos de pensamentos dos indivíduos de determinada comunidade. Logo, todos os hábitos de pensamento voltados ao entendimento de processos, apresentam-se contaminados pela perspectiva de finalidade e direcionamento moral devido a esta característica dos hábitos arcaicos de pensamento.

Cabe comentário de que na perspectiva teórica de Veblen, a eficiência tecnológica é resultado direto do conhecimento que de fato é desempenhado. Devido ao caráter teleológico imputado a finalidade tecnológica, todo corpo de conhecimento será direcionado a uma finalidade, ou então motivado por determinado fato/crença114. Logo, para que o conhecimento e a eficiência tecnológica tomassem forma e desenvolvimento em seus estágios iniciais em culturas mais primitivas, estes estavam diretamente relacionados a elementos empíricos de rotina prática. Portanto, no processo de adaptação seletiva, em seus estágios iniciais, o instinto de trabalho eficiente apresentava-se de maneira bastante arcaica e simples, voltado ao direcionamento da eficiência a realidade material, visando um fim e um processo específico para satisfação de hábitos.

Buscando identificar e delatar a dificuldade da emergência da relação mecânica do indivíduo com as proclividades instintivas, Veblen ([1914] 2018, 63) comenta:

This obstructive force of the anthropomorphic interpretation of phenomena is by no means the same in all lines of activity. The difficulty, at least in the earlier days, seems to be greatest along those lines of craft where the workman has to do with the mechanical, inanimate forces – the simplest in the point of brute concreteness and the least amenable to a consistent interpretation in animistic terms. While man is conventionally distinguished from brute creation as a ―tool-using animal‖, his early progress in its native sense, seems to have gone forward very slowly, both absolutely and as contrasted with those lines of workmanship in which he could carry his point by manual dexterity unaided by cunningly devised implements and

114 Neste ponto Veblen comenta a emergência de perspectivas monoteísticas devido a busca pela facilitação nos

mechanical contrivances; and still more striking is the contrast between the incredibly slow and blindfold advance of the savage culture shown in the sequence of those typical stone implements which serve conventionally as land-marks of the early technology, on the one hand, and the concomitant achievements of the same stone-age peoples in the domestication and use of plants and animal on the other hand.

Sendo que, segundo Veblen este estágio inicial caracteriza-se pelo já comentado período do neolítico, tempo geológico que o próprio autor reconhece como temporalmente vasto, sendo caracterizado por centenas de anos.

Veblen salienta que durante o período paleolítico (antecedente do neolítico) uma série de avanços, do ponto de vista mecânico foram feitos, dos quais nota-se o domínio das ferramentas de pedra. Este, segundo Veblen, teria sido o estado da arte da tecnologia da época. Ou seja, o desenvolvimento de ferramentais e demais utensílios a base do domínio mecânico de materiais como a pedra. A partir deste ponto em diante, a cumulatividade do conhecimento e do processo de progresso tecnológico se daria com base nestes elementos ferramentais, atribuídos aos hábitos das comunidades. No caso das ponderações de Veblen, parte considerável da cultura europeia que, de maneira direta ou indireta, usufruiu dessas características mecânicas no domínio das plantas e animais domésticos, transformando a vida em sociedade através da criação de excedente e abundância. Veblen destaca que o usufruto dessas características mecânicas de outro período fez com que a cultura da época do neolítico gozasse de relativa tranquilidade no que se refere à criação de novas tecnologias mecânicas, passando a centrar-se nas características processuais de criação inovativa. Essa característica não implica dizer que as novas tecnologias perderam seu caráter de utilidade, mas sim demonstra o direcionamento da curiosidade à execução de atividades tecnológicas não mecânicas, de domínio de outras habilidades (como a já citada domesticação de animais e plantas). Segundo Veblen, a difícil e delicada atividade de cultivo fora almejada e executada pelas habilidades das mulheres dessa comunidade que, em suas funções, tinham a responsabilidade e o domínio das técnicas necessárias para tal. Dentre essas atividades de cultivo também destacam-se o domínio e cruzamento de diferentes raças de animais e plantas visando a maior proficiência da domesticação. Exatamente neste ponto, Veblen destaca o início do papel das mulheres nas atividades industriais/produtivas.

Seguido dessas considerações, Veblen apresenta alguns pontuais exemplos antropológicos da domesticação de animais e plantas em diferentes culturas humanas na Europa. Dentre estes exemplos, destacam-se o caso dinamarquês de cultivo e plantio, como o pioneiro e mais habilidoso. Também comenta o caso polinésio-americano como

instintivamente adaptado em especial grau para com as atividades de cultivo. Ao fim destes exemplos, Veblen comenta a característica em comum dessas diferentes organizações culturais em que dedicam-se grande apreço a elementos de fertilidade, crescimento, natureza e ciclos de vida. Sendo assim, Veblen delata a apreciação antropomórfica do cultivo de plantas e animais em relação ao estilo de vida dos indivíduos dominadores destas habilidades produtivas.

Logo, o animismo e antropomorfismo no entendimento dos indivíduos acerca dos processos e inquietações sobre a vida e sua realidade cerimonial e produtiva, apresenta papel fundamental no desenvolvimento do instinto de trabalho eficiente deste período e na perpetuação dos louros das eras geológicas seguintes. Sendo assim – conforme espera-se da perspectiva vebleniana do processos evolutivo – tais aspectos produtivos, apesar de representarem a evolução cega de novos métodos técnicos e produtivos, não desenvolve-se de forma aleatória, mas sim está diretamente relacionado com o seu processo de causação cumulativa. Esta afirmação parece verdade não só em seus resultados, mas também em seus anseios, como Veblen ([1914] 2018, 79) bem comenta:

This domestication and use of plants and animals was of course not a mere blindfold diversion. Here as ever the instinct of workmanship was present with its prompting to make the most of what comes to hand; and the technology of husbandry, like the technology of any other industrial enterprise, has been the outcome of men’s abiding penchant for making things useful

Veblen ainda comenta que o instinto de trabalho eficiente, através de suas proclividades nas atividades laborais, fez com que os indivíduos constantemente aprimorassem suas qualidades nos desenvolvimento e eficiência em suas atividades. Conforme já comentado, tal eficiência apresenta em sua motivação e desdobramento as finalidades teleológicas resultantes do animismo e antropomorfismo partilhados pelos indivíduos através de seus hábitos e instituições.

Preocupado em melhor descrever o processo pelo qual desdobra-se a inovação produtiva e tecnológica, Veblen apresenta o já citado instinto de idle curiosity (curiosidade vã) que, sob comando do instinto de trabalho eficiente e condicionado pelos hábitos dos indivíduos, desenvolve novas capacidades. Neste ponto, fica evidente duas características já citadas dos instintos: (i) a regência do instinto de trabalho eficiente sobre os demais instintos, e (ii) a sobreposição entre diferentes propensões instintivas. Na sequência de sua explanação, Veblen comenta o caráter não imediato dos resultados inovativos oriundos da curiosidade vã.

Afinal, assim como todas as outras características materiais humanas, a curiosidade contribui através do processo de causação cumulativa ao longo do tempo. Sendo assim, seus resultados apresentam-se de forma mais contundente através de períodos de tempo sobrepostos por diferentes realidades materiais e culturais.

Finalizando, Veblen salienta a característica fundamentalmente pacífica dos traços da sociedade até agora apresentados. Em consonância com aquilo apresentado em The Theory of the Leisure Class, Veblen identifica a fundamentação dos instintos na vida em comunidade durante o período da selvageria pacífica, adentrante à era bárbara. Nas palavras de Veblen ([1914] 2018, 101) “[i]t seems antecedently improbable that the domestication of the crop plants and animal could have been effected at all except among people leading a passably peaceable, and presently a sedentary life”. Sendo assim, entendido a contaminação dos instintos através da tecnologia primitiva e suas reverberações na realidade social, cabe ainda às inquietações de Veblen, entender como se constituiu e em que consistia o estado da arte da indústria durante o período selvagem.