• Nenhum resultado encontrado

4. A CIÊNCIA EVOLUCIONÁRIA NO PENSAMENTO DE THORSTEIN VEBLEN:

4.1. UMA ANÁLISE DE THE THEORY OF THE LEISURE CLASS

4.1.6. Pecuniary canons of taste

Conforme apresentado até aqui, Veblen desenha o comportamento dos indivíduos como resultante da emulação pecuniária, regida e regulada pelo desperdício conspícuo, tanto de recursos (consumo conspícuo) quanto de tempo (ócio conspícuo). Ordinariamente, os

motivos que moldam essas características de comportamento e pensamento, baseiam-se no comportilhamento de hábitos e, portanto, na busca pela conformidade com comportamento socialmente estabelecido, “[...] to avoid unfavourable notice and comment, to live up to the accepted canons of decency...” (Veblen [1899] 2009, 78). Sendo assim, ressalta-se o já comentado poder coercitivo do compartilhamento de hábitos em sociedade, fazendo com que os indivíduos busquem por projeções emulativas de si mesmos em comparação com aqueles que o cercam. Porém, neste capítulo Veblen visa trabalhar a construção do entendimento daquilo que se propõe honorífico e nobre. Afinal, a identificação e o esclarecimento acerca dos elementos pecuniários são de fundamental importância no estabelecimento dos gostos.

Entender a composição habitual dos indivíduos como uma malha orgânica de influência multidimensional é importante para que possa se vislumbrar as capacidades e possibilidades no processo de escolha e na consciência destes. Desse modo, conforme já visto, os hábitos de pensamento – como expressão individual – condicionam, em direção e efeito, a visão consensual acerca daquilo que é ―bom‖ e ―certo‖ em uma determinada comunidade. Em grande medida, dada à característica pecuniária estabelecida antropológicamente como resposta aos desdobramentos da sociedade bárbara, o papel da reputação apresenta-se como fundamental nas habituações humanas, principalmente no que se refere à manutenção da honra. Sendo assim, Veblen pontua que as perspectivas habituais de decência permeiam as decisões econômicas, não só em seu caráter conspícuo, mas também em senso de dever, beleza e utilidade. Haja vista a caracterização institucional da propriedade privada em consonância com os elementos de emulação pecuniária, é possível observar a emergência de perspectivas psicológicas ligadas a manutenção do status em seu sentido consensual. Este sentido, por sua vez, apresenta-se carregado de percepção merituosa em relação à riqueza e a capacidade emulativa. Sendo assim, mais uma vez, a reputação dos indivíduos através de sua conduta pecuniária é reforçada.

Voltando-se ao entendimento da construção de decência, Veblen retoma o papel do aprendizado de comportamentos tidos como de etiqueta, assim como na capacidade de distinção entre diferentes bens de diferentes qualidades. Porém, dessa vez visando o esclarecimento do processo pelo qual o nobre caracteriza-se como é, Veblen traça os caminhos que o justificam historicamente. Nesta construção de trajetória, Veblen estabelece como fundamental o direcionamento do consumo ―cânone‖101 através das influências do consumo devoto praticado e/ou incentivado através de atividades e instituições do clérigo.

101 Essa expressão advém da nomenclatura original utilizada por Veblen para representar as regras de consumo

Ainda segundo o autor, é possível observar que durante muito tempo o papel atribuído às instituições religiosas era o de justamente aparentar a prosperidade através do consumo conspícuo de tempo e bens. Desse modo, cabendo ao consumo devoto um importante papel na caracterização vicária, não necessariamente voltada ao conforto, mas sim ao desperdício conspícuo.

Com base na passagem acima, Veblen argumenta a característica de manutenção soberana dos poderes conspícuos das entidades religiosas, mesmo frente ao baixo poder emulativo de seus fiéis. Isto justifica-se devido a antropomorfização das tradições conspícuas, garantindo-lhes papel de divindade e superioridade que, conforme já visto anteriormente, se dá não só em consumo de bens, como também em consumo de tempo. Afinal, não só se tem as características pecuniárias de propriedade, como também a de aprendizado e manutenção de cerimonialismos e demais rituais. “[T]his holds true, in different degrees of course, for the different cults and denominations; but in the priestly life of all anthropomorphic cults the marks of a vicarious consumption of time is visible” (Veblen [1899] 2009, 82).

Tais menções a respeito do papel clérigo no desperdício conspícuo é justificada por Veblen, principalmente, através da noção consensual que relaciona a pecuniaridade e a conspicuidade com aquilo que é divino: portanto, nobre e digno. Sendo assim, segundo Veblen, é criada uma institucionalização de duas vias em que, num primeiro momento há a projeção humana de dignidade na divindade, e num segundo momento, há a projeção divina de dignidade no ser humano. Ou seja, a divindade é digna por apresentar características pecuniárias e conspícuas, assim como o ser humano é digno por apresentar características divinas de pecuniaridade e conspicuidade.

[I]t appears that the canons of pecuniary reputability do, directly or indirectly, materially affect our notions of the attributes of divinity, as well as our notions of what are the fit and adequate manner and circumstances of divine. (Veblen [1899] 2009, 84)

Contextualizada a importância antropomórfica no papel do desperdício conspícuo, Veblen volta-se especificamente ao papel da utilidade e valoração de bens em seus critérios de beleza e dispêndio. Um dos primeiros elementos tratados pelo autor baseia-se na diferenciação entre artigos industriais e artigos artesanais. Segundo Veblen, um artigo de fabricação artesanal terá consigo uma maior valoração em relação a um semelhante de fabricação industrial devido a sua característica de quase exclusividade em tempo e em material de confecção. Porém, ao analisar os aspectos de utilização do artigo, nota-se que seus

desdobramentos e possibilidades não apresentam distinções. Sendo assim, um artigo artesanal de utilidade e função semelhante a um mesmo artigo de fabricação industrial apresentaria, além de um maior dispêndio do ponto de vista conspícuo, também uma característica honorífica de consumo102. Neste ponto, Veblen ainda salienta que não necessariamente esta distinção baseia-se na beleza do artigo em questão, mas sim em sua apreciação honorífica. Exatamente por este ponto o autor comenta que, não basta que o artigo industrial se pareça/emule um artigo artesanal, ele deve de fato o ser103.

Em mesmo sentido, atentando especificamente ao papel do ouro e seu status de beleza, Veblen salienta que em sua utilidade trata-se de um artigo atrelado a honra de propriedade, muito mais do que em beleza estética. Utilizando-se do exemplo do ouro como adorno de vestimenta, Veblen pontua que sua exibição como raridade de honra intrínseca é superior relativamente a sua beleza e/ou utilidade, no que se refere a potencial de emulação. Desse modo, Veblen estabelece uma diferença fundamental entre expressividade e beleza. A expressividade terá o papel fundamental de conotar honra e nobreza a determinado artigo, sendo anterior ao conceito de beleza. Devido a expressividade de determinado artigo, este se torna bonito aos gostos numa perspectiva pecuniária. Sendo assim, salienta-se a reputabilidade em detrimento do atributo estético per se, caracterizando uma beleza pecuniária que em um segundo momento condiciona e rege a beleza estética.

Exatamente com base neste ponto, Veblen argumenta que as diferenciações entre artigos se dão pela sua reputabilidade e não necessariamente pela sua beleza estética. Desse modo, diferentes artigos serão consumidos por diferentes classes, não só pela sua caracterização conspícua, mas também pela sua reputabilidade intrínseca. A designação do senso de beleza seria resultado posterior, associado à fineza de determinado artigo por ser almejado e possuído pelas classes superiores da sociedade. Por esta característica, artigos de procedência rara e/ou excêntrica ganham papel de destaque no senso de beleza da sociedade de características pecuniárias. Afinal, estes artigos são aqueles que corriqueiramente apresentam maior desejo pelas classes superiores da sociedade, por possuírem elevado grau de reputação e trazerem consigo estima e honra. Entendendo, portanto, que a beleza apresenta uma relação emulativa no que se refere à pecuniaridade dos artigos consumidos, então Veblen

102 Veblen ainda salienta que essa característica se baseia principalmente em consonância com o afloramento do

instinto de trabalho eficiente.

103 Neste ponto, mais uma vez destaca-se o papel fundamental das normas e etiquetas. Afinal, é fundamental que

comenta que em diferentes classes haverão diferentes possibilidades de emulação e, consequentemente, diferentes classificações de beleza regentes do gosto.

Outro ponto atentado por Veblen diz respeito às mudanças intertemporais nas características de gostos. Segundo o autor, e assim como sua perspectiva teórica nos faz inferir, estas diferenças seriam resultado de mudanças nas situações econômicas. Logo, diferentes possibilidades de emulação pecuniária e comportamento conspícuo, levam os indivíduos a diferentes possibilidades de apresentação de reputabilidade e instituição de beleza. Desse modo, novas tendências surgem apresentando novas características e novos bens potencialmente consumíveis.

Dentre as características de consumo que mais diferenciavam-se temporalmente na época de Veblen, cabe menção especial aos animais de estimação que, segundo autor, seriam também respostas conspícuas de consumo e, portanto, teriam suas belezas devidamente legitimadas. Quando tece comparação especificamente entre cachorro e gato, Veblen é incisivo em destacar a característica emulativa do cachorro como superior à do felino. Afinal, segundo Veblen, o cachorro apresenta em seu temperamento e comportamento características de um servo exemplar que coloca-se à disposição de seu dono até mesmo nas ocasiões e situações menos favoráveis. Outra característica comportamental dos cachorros pontuada por Veblen, seria justamente a sua similaridade em desempenhar com êxito as atividades predatórias que lhe são imputadas, tanto de forma inata quanto de forma adquirida. Tais características de favorecimento dos cachorros como animais domésticos fazem com que este tenha sido, segundo Veblen, um dos animais de maior manipulação comercial, principalmente no que se refere à criação de diferentes estilos de animais para diferentes características de seus donos, tanto em atividade quanto em gênero. Ainda segundo Veblen, uma observação bastante semelhante pode ser feita no caso dos cavalos de corrida que, em sua amplitude de ―ativo‖, é muitas vezes obtido como item de colecionador dada a sua reputabilidade e representação.

Ao atentar aos aspectos de beleza pessoal, no sentido físico dos seres humanos, as relações com os elementos pecuniários de formação da sociedade mais uma vez se destacam. No caso das mulheres especificamente, o papel da aparência frágil, delicada e romântica seria o resultado primário do objetivo de emulação, principalmente no que se refere ao desvincilhamento de atividades laborais. Sendo assim, a beleza feminina pauta-se na delicadeza estética. Ou como Veblen ([1899] 2009, 98) pontua: ―[t]he resulting chivalric or romantic ideal of beauty takes cognizance chiefly of the face, and dwells on its delicacy, and on the delicacy of the hands and feet, the slender figure and especially the slender waist. Já

seus artigos de vestimenta e adornamentos, são pautados no consumo conspícuo e na já comentada beleza de reputabilidade, através da utilização de artigos de elevada estima.

Sendo assim, observa-se que a beleza e os gostos na perspectiva pecuniária da sociedade estão pautados no julgamento. Tal julgamento baseia-se através de atributos econômicos, morais, estéticos e de reputação, sendo que os critérios de aprovação são configurados em regras conspícuas de vivência. Veblen ainda destaca que estas normas de gostos apresentam ascensão bastante antiga na construção histórica da humanidade, assim como os hábitos pecuniários de emulação, também passando por processos cumulativos de mudança através do compartilhamento desses hábitos em sociedade de diferentes configurações econômicas e possibilidades materiais. Sendo assim, os gostos de uma sociedade pecuniária apresentam-se construídos e instituídos através de longos períodos de tempo, mesmo que apresentem variações representativas em seus aspectos estéticos.

De maneira bastante convergente aos direcionamentos de gostos como holofotes à reputabilidade, as características de vestimenta também apresentam-se fundamentais no processo de emulação pecuniária, sendo utilizadas por Veblen corriqueiramente como exemplo. Porém, este ponto em específico é apresentado pelo autor como um elemento estético de expressão de uma cultura pecuniária de consumo que, apesar de instituída em períodos remotos da civilização humana, apresenta distinções e volatilidades corriqueiras. Dada a necessidade de entendimento desta nova característica de complexidade, Veblen dedica o próximo capítulo exclusivamente ao tratamento desta questão.