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4. A CIÊNCIA EVOLUCIONÁRIA NO PENSAMENTO DE THORSTEIN VEBLEN:

4.1. UMA ANÁLISE DE THE THEORY OF THE LEISURE CLASS

4.1.13. Survivals of the non-invidious interest

Através do advento de uma nova realidade material, assim como novas demandas socioeconômicas, Veblen destaca que gradualmente há uma desintegração das interpretações antropomórficas. Em mesmo sentido e consequência, as perspectivas predatórias justificadas e identificadas através do regime de status e emulação também apresentam seu declínio conforme a nova realidade industrial apresenta-se. Segundo o autor, os motivadores destas mudanças em uma nova perspectiva produtiva e de organização social se dão, majoritariamente, através de novos anseios. Tais novos anseios, como resultantes do processo de causação cumulativa até aqui desenhado por Veblen, resultam principalmente em novos hábitos de pensamento atrelados à solidariedade humana e à simpatia entre os indivíduos e suas diferenças de realidade. Logo, nota-se que estas mudanças não só apresentam-se como significativas em relação aos objetivos emulativos abordados anteriormente, mas também apresentam-se como rompimentos de antigas tradições.

Segundo Veblen, essas alterações seriam o resultado do processo evolucionário de seleção de hábitos de pensamento nos estágios mais avançados do desenvolvimento industrial. Teriam em sua origem a fé religiosa e o senso de comunhão da comunidade. Veblen destaca ainda a presença de importantes impulsos relacionados à caridade e sociabilidade no comportamento e pensamento humano. Sendo assim, nota-se a convergência de elementos ambientais e cognitivos que permeariam e justificariam as alterações nos hábitos de pensamento visando uma adequação ao propósito econômico moderno. Ou seja, há perceptível rompimento com os até então apresentados esquemas de vida pautados na manutenção do status e na busca pela emulação através de consumo conspícuo de tempo e

bens. Sob esta nova perspectiva, segundo Veblen, o indivíduo deveria estar engajado num senso social de vida em comunidade e apreço e zelo pelo que lhe cerca, tanto em sociedade quanto em ambiente econômico.

Veblen apresenta sua leitura acerca deste processo apresentando como seus viabilizadores aqueles indivíduos que no momento anterior de evolução social encontravam- se nas posições privilegiadas de ócio. Exatamente por este ponto, as atividades atreladas ao clérigo apresentam forte conexão com os atributos humanitários aqui descritos, assim como os indivíduos não participantes das atividades industriais, como por exemplo, as mulheres em suas posições na sociedade patriarcal. Segundo Veblen, esta alteração se dá através de uma não sustentação proveniente do próprio sistema pecuniário-emulativo. Na perspectiva do autor, o variante emulativo do instinto de trabalho eficiente (workmanship), em seu estágio mais avançado de desenvolvimento, atua como neutralizador de suas próprias bases, eliminando hábitos de comparações injustas de eficiência e pecuniaridade. Ou, nas palavras de Veblen ([1899] 2009, 218):

The pecuniary or the leisure-class culture, which set out as an emulative variant of the impulse of workmanship, is in its latest development beginning to neutralize its own ground, by eliminating the habit of invidious comparison in respect of efficiency, or even of pecuniary standing.

Segundo Veblen, este comportamento é notável entre aqueles indivíduos que não apresentam o dom de serem capazes de atingirem mais destaque no processo de luta competitiva/emulativa. Dentre estes, a capacidade emulativa não mais depende somente da possessão de bens e exibição dos mesmos, mas também da capacidade de aflorar novos hábitos como os destacados acima. Desse modo, nota-se que estes indivíduos fazem-se melhor sucedidos no topo da estrutura social, se comparados com aqueles dos estratos inferiores da sociedade.

Sendo assim, Veblen destaca que, do mesmo modo que os já comentados traços arcaicos do comportamento humano foram beneficiados pela característica conservadora da sociedade sobre o regime da classe ociosa, outras características de vertente pré-predatória também destacam-se. Ou seja, Veblen apresenta a este comportamento benevolente e humanitário como uma característica também beneficiada pelo caráter cumulativo da história em seus desencadeamentos como anteriormente apresentados. Porém, Veblen destaca que, dada a matriz habitual engajada durante o período predatório e praticada durante a ascensão industrial através do regime de classes, essas aptidões comportamentais e cognitivas

permaneceram encobertas. Afinal, como já visto, os hábitos de pensamento condicionam os comportamentos dos indivíduos; inclusive aqueles impulsos tidos como oriundos de antigos traços psicológicos. Segundo Veblen, um dos principais retardadores deste processo de nova ascensão habitual seria a noção de mérito envolta na perspectiva pecuniária de emulação e sucesso. Segundo o autor, a noção merituosa desencadearia uma justificativa injusta para a apresentação de uma sociedade estratificada em termos emulativos.

Sendo assim, nota-se que este comportamento de empatia e de viés não-injusto110 que os indivíduos apresentam neste estágio do comportamento emulativo teria sido uma característica oriunda de períodos pré-pretadório e que, por definição habitual, mantiveram-se adormecidos. Porém, neste estágio do desenvolvimento social, através de uma neutralização do trabalho eficiente em suas próprias bases, viabiliza-se novamente a emergência e compartilhamento desses antigos traços. Sobre este fenômeno, Veblen salienta que trata-se de uma reversão esporádica e, comenta também que sempre que o temperamento humano apresentar-se desassistido da composição social e habitual que tradicionalmente lhe é imputado, este o fará através de outras vias, como por exemplo, através de outras institucionalizações. Quando busca por exemplificações sobre esta afirmação, Veblen destaca a possibilidade de se vislumbrar múltiplas organizações e demandas sociais voltadas à este propósito. Segundo o autor e conforme aqui já comentado, essas organizações atuam de forma muito atrelada à atividades do clérigo, sendo muitas vezes de característica quase-religiosa ou pseudo-religiosa. Dentre seus exemplos Veblen pontua a busca por reformas sociais, dentre as quais destacam-se a ampliação da educação, combate a vícios, desarmamento, repúdio a guerras e reformas prisionais.

Nesta ―realocação institucional‖ de interesses e temperamento, Veblen destaca que há também o propósito travestido daqueles que, através de justificativas não-injustas utilizam-se de meios para o processo de emulação pecuniária. Afinal, através deste tipo de militância social, os indivíduos têm a capacidade de distinguirem-se entre aqueles que apresentam a capacidade de ajudar e aqueles que precisam de ajuda. Sendo assim, mais uma vez evidencia- se as diferenciações de classes e situações econômicas. Sobre essas novas institucionalizações, Veblen utiliza-se do exemplo das doações de fortunas em prol de bibliotecas, universidades e museus que, direta ou indiretamente, serão sempre remetidos aos seus financiadores. Estes exemplos não implicam desacreditar as boas intenções nesta ações,

mas sim em delatar um potencial comportamento emulativo durante este período de transição de objetivos.

Neste ponto, mais uma vez, Veblen destaca o papel de destaque desempenhado pelas mulheres. Segundo o autor, como resultado da exclusão cerimonial das atividades produtivas através do ócio vicário, estas teriam seus impulsos atrelados ao trabalho eficiente, direcionados a outras direções que não a atividade dos negócios. Além do já citado exemplo das mulheres, outros indivíduos apresentariam essas inclinações, principalmente quando são munidos de comportamento descritos por Veblen como humanizadores. Essas pessoas, ainda segundo o autor, apresentam-se como insistentes em questões de decoro, com escrúpulos, donos de vidas exemplares e etc. Conforme estes comportamentos e pensamentos tornam-se institucionalizados, uma nova agenda assume as atividades da classe ociosa que, em maior número e intensidade, impulsiona esta nova conduta. Por óbvio, Veblen salienta que esta nova incorporação de hábitos acaba por alterar de modo extremamente importante os métodos de desperdício conspícuo. Assim como Veblen fez claro em toda sua obra até aqui, estas mudanças também atuam de forma gradual.

Segundo Veblen, assim como repetidas vezes dito por autores populares de seu tempo, observar o papel e a ocupação das mulheres em uma comunidade é o melhor índice para se determinar o nível da cultura daquele local. Esta constatação é tecida por Veblen ao iniciar sua consideração sobre os movimentos iniciais pela luta das mulheres em busca da quebra de padrões ultrapassados em suas posições na sociedade (new-woman)111. Veblen destaca que, independente do mérito ou demérito, nota-se que as mulheres ainda apresentam papel vicário muito significativo na vida dos homens e na estrutura social como um todo. Aquelas que visam a quebra desta estrutura social teriam suas intenções e opiniões questionadas pela sociedade e lhe seriam imputadas julgamentos pelo rompimento com aquilo que se propõe como socialmente aceito. Segundo Veblen, este problema reside na identificação da própria mulher como propriedade do homem, sem maiores considerações do ponto de vista social e econômico que não aqueles que lhe são imputadas através da conspicuidade vicária. Neste ponto o autor explica que, independente do juízo moral que pode se fazer a respeito desta questão, assim como as leituras de naturalidade desta problemática, a grande demanda das mulheres seria o resultado de alterações na vida dos indivíduos. Sendo que, essas alterações seriam, principalmente, oriundas da comunidade industrial moderna.

111

New-woman foi um ideal do fim do século XIX que influenciou enormemente as correntes de denominação feminista durante o século XX. Iníciou após a publicação de ―The New Aspect of the Woman Question” na revista The North American Review por Sarah Grand.

Desse modo, Veblen destaca a busca das mulheres por emancipação como uma causa não-injusta, dada a quebra de um paradigma emulativo pautado no status dos indivíduos. Segundo o autor, esta demanda também atua como uma quebra nas relações de tutelagem e vida vicária. Não por acaso, assim como nos demais casos de iniciativas não-injustas, esta também seria resultante do próprio processo emulativo resultante de alocação de impulsos de trabalho eficiente, pois, segundo Veblen ([1899] 2009, 232): ―[t]he demand comes from that portion of womankind which is exclueded by the canons of good repute from all effectual work, and which is closely reserved for a little of leisure and conpicuous consumption”. Grande parte desta demanda, ainda segundo Veblen, emerge pela busca do direito das mulheres em não mais só fazerem parte de um sistema econômico imposto a elas através de condutas socialmente aceitas, mas também de fazer parte de forma mais ativa do processo industrial em busca daquilo que seria sua emancipação.

Sendo assim, de forma a concluir seu raciocínio, o autor ainda destaca que estes estímulos pré-predatórios significariam características de raça, antes mesmo daquelas características habituais que denotariam culturas ou organizações sociais. Este comentário de Veblen deixa a entender que a empatia social e a igualdade entre os gêneros, que neste capítulo foram destacadas, seriam uma característica arcaica que outrora fora inibida pela estrutura habitual dos indivíduos e, não exclusivamente, novas habituações emergentes de alterações em estrutura material.