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4. A CIÊNCIA EVOLUCIONÁRIA NO PENSAMENTO DE THORSTEIN VEBLEN:

4.1. UMA ANÁLISE DE THE THEORY OF THE LEISURE CLASS

4.1.1. Introduction

De maneira bastante direta e incisiva, já no capítulo introdutório, Veblen pontua a institucionalização da classe ociosa nos altos estágios da cultura bárbara, utilizando-se dos exemplos do Japão Feudal e da Europa Feudal. Em tal momento, segundo Veblen, ocorrem as estratificações em seu sentido mais rigoroso, deixando claras as diferenças existentes entre diferentes costumes, classes sociais, e diferentes funções socioeconômicas. Com base nestas observações, Veblen apresenta uma das primeiras caracterizações de uma ―classe superior‖: a desconexão com ocupações tidas como industriais, e o forte apreço por atividades atreladas a elevado grau de honra. Sendo estas últimas, normalmente, atribuídas a serviços de guerra, serviços religiosos, serviços governamentais e esportes. Desse modo, já no primeiro parágrafo

de sua obra, Veblen salienta o surgimento da classe ociosa como compartilhadora de uma característica comum; o não envolvimento em atividades laborais atreladas ao provimento das condições materiais dos agrupamentos sociais.

Para explicar como a organização social atingiu os estágios de estratificação como apresentados acima, Veblen é levado a fazer uma leitura regressiva dos acontecimentos históricos. Para isso, retrocede a cultura bárbara à seus estágios iniciais, visando identificar elementos antropológicos e psicológicos que justificassem a essa transformação. Nos estágios mais medianos87 da cultura bárbara, Veblen pontua que as estratificações de classes, apesar de existentes, se davam em um grau muito menor de diferenciação. O senso comum, que atrela as atividades associadas aos trabalhos manuais, indústria e tudo aquilo que se apresentasse como uma rotina laboral hodierna, ainda era válido, na medida em que se associava as classes inferiores. Sendo que, na perspectiva antropológica trazida por Veblen, nestas classes inferiores estariam os escravos e outros dependentes, como por exemplo, todas as mulheres88. Em mesmo sentido, as classes mais elevadas também viam-se atreladas a atividades designatórias de honra, como por exemplo, as já citadas atividades de guerra e governança. Veblen ainda frisa que qualquer descumprimento desta diferenciação (tanto das atividades relacionadas às classes baixas quanto as atividades relacionadas às classes elevadas) seria uma quebra abrupta com o senso comum da época89.

Retrocedendo ainda mais em direção aos estágios iniciais da cultura bárbara, é onde Veblen encontra os principais elementos de viabilização para o início das estratificações sociais e, em específico, os potenciais motivos e circunstâncias fomentadores do surgimento de uma classe ociosa. Afinal, segundo o autor, neste estágio da história humana, é onde há a maior dificuldade em se identificar a essas diferenciações nas formas e critérios anteriormente apresentados. Sendo assim, podendo-se caracterizar como o estágio de transição entre duas lógicas socioeconômicas. Sendo que, o principal caracterizante de segregação neste período, seriam as diferenciações laborais entre homens e mulheres. Cabendo às mulheres os trabalhos tidos como vulgares e relacionados a ocupações que nos estágios seguintes seriam associadas à indústria. Já aos homens caberiam os trabalhos associados aos já citados trabalhos honoríficos.

87 Ou nas palavras de Veblen ([1899] 2009, 7): ―...an earlier [stage], but not the earliest‖.

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Esta passagem se faz importante, pois a frente, no processo histórico e na identificação dos desdobramentos dessa diferenciação, importante papel poderá ser atribuído a essa segmentação de gênero.

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Nota-se que Veblen apresenta esse ponto visando evitar que julgamentos e leituras anacrônicas ocorressem. Mais adiante, ainda no capítulo introdutório, Veblen destacará os elementos atribuídos à fixação e modificação desses sensos comuns que, como já sabemos, são os hábitos.

Sendo assim, na constituição histórica apresentada por Veblen, as circunstâncias associadas ao surgimento de classes estratificadas está diretamente relacionada às diferenciações laborais que, em seu âmago, apresentavam-se como discriminações de gênero. Sendo assim, para Veblen, a estratificação e diferenciação de empregos caracterizou-se como um dos primeiros passos para a passagem de uma Era não industrial para uma Era industrial. E, portanto, devido aos critérios de estratificações acima mencionados, aqueles que seriam os empregos classificados como industriais, seriam o produto de trabalho de mulheres no estágio primitivo da comunidade bárbara.

Neste ponto, Veblen salienta uma leitura que é equivocada. Comumente associa-se a atividade de caça dos homens ao provimento em um sentido industrial. Porém, Veblen é direto em contra argumentar que essa noção não era partilhada pela cultura e senso comum da sociedade bárbara, e sim trata-se de uma leitura anacrônica associada a valores presentes (de sua época). Esta passagem revela um elemento de método de pesquisa em Veblen, uma vez que a técnica empregada pelo autor é a de posicionar-se na percepção do indivíduo em sua época e lugar para, pela imersão no processo de cognição e socialização do sujeito estudado, perceber ligações causais. Desse modo, Veblen enfatiza seu argumento de que neste estágio da cultura humana, a diferenciação laboral era essencialmente e necessariamente estratificada em relação ao gênero executor da atividade em questão:

There is in all barbarian communities a profound sense of the disparity between man’s and woman’s work. His work may conduce to the maintenance of group, but it is felt that it does so through an excellence and efficacy of a kind that cannot without derogation be compared with de uneventful diligence of the women (Veblen [1899] 2009, 9).

Sendo assim, observa-se que a diferenciação laboral através do gênero se dava não só pela diferenciação da atividade em si, mas também pelo que estas atividades representariam a um nível coletivo de compartilhamento de pensamentos e emoções. Nesse caso, o trabalho dos homens estaria diretamente relacionado, conforme visto, a um vasto senso de eficácia, excelência e honra perante sua comunidade.

Ao esclarecer o surgimento deste período transitório de estratificação social, Veblen continua sua leitura retrospectiva da história, dando um passo para trás da cultura bárbara, chegando ao estágio da selvageria pacífica90, período anterior às já comentadas diferenciações sociais e de classes. Neste estágio, segundo o autor, as estratificações sociais e laborais

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Conforme já destacado anteriormente, fora neste estágio histórico que importantes instintos (veblenianos) foram internalizados no comportamento humano.

mostram-se ainda menos consistentes e rigorosas, compondo uma estrutura bastante arcaica e simples. Sendo que as características predominantes deste período repousavam sobre as comunidades através da pobreza, sedentarismo e propriedade comunal91. Logo, Veblen estabelece como critério fundamental a existência da propriedade privada no surgimento das estratificações sociais e, por sua vez, na institucionalização de uma classe ociosa. Afinal, teria sido essa uma das principais viabilizadoras dos passos históricos nos termos acima apresentados, através da conquista e barbárie.

Desse modo, Veblen pontua a transição da sociedade selvagem pacífica para os altos níveis da sociedade bárbara (passando por seus estágios iniciais), como historicamente responsável pela formação das características socioeconômicas pautadas na diferenciação e estratificação. Ainda mais especificamente, Veblen destaca duas condições que mostraram-se, aparentemente, necessárias à emergência de uma classe ociosa: (i) a comunidade em questão deve apresentar hábitos de vida predatórios – como guerras e caça – desse modo, viabilizando o aprimoramento por parte dos homens dessa comunidade na execução destas atividades; (ii) a possibilidade de facilmente satisfazer as necessidade de subsistência, para que, desse modo, porção considerável da população desta comunidade esteja apta a isentar-se das atividades laborais. Salienta-se ainda que, neste último caso, intensificam-se as distinções originárias dos esforços de trabalho, sendo que dois tipos majoritários se fazem presentes: os trabalhos tidos como dignos e indignos; aqueles que representam a eficácia e honra, e aqueles que meramente viabilizam a subsistência.

Elaborada e apresentada sua argumentação histórica através de seu constructo antropológico, Veblen explica que estas transições entre diferentes períodos ocorrem não de maneira abrupta e repentina, mas sim através de períodos relativamente extensos de compartilhamentos de hábitos. Desse modo, há grande relevância no estabelecimento do senso comum e com a estabilização dos hábitos de vida e pensamento dos indivíduos em cada um dos períodos acima comentados. Exatamente com base neste argumento, Veblen comenta a impossibilidade de se estabelecer julgamentos de origem moral a respeito de atividades e estratificações feitas em outros contextos de realidade e de pensamento. E, em mesmo sentido, evidencia a impossibilidade de se vislumbrar um momento único de transição entre uma lógica socioeconômica para outra. Afinal, esta mudança seria resultado de um processo cumulativo e gradual.

91 Neste período, as propriedades eram encaradas como privadas no âmbito do grupo/comunidade, mas comunal

Quando Veblen volta-se a entender as diferenciações nas atividades laborais, identifica a segmentação de duas diferentes classes de atividades que, segundo o autor, poderiam ser entendidas como façanhas e atividades industriais. Sendo que as atividade tidas como industriais são aquelas cujo os esforços voltam-se a criação de algo novo, com um novo propósito através das mãos de seu executor em um material bruto (passivo). Já as atividades tidas como façanhas representariam a formação de um produto útil através da proeza de seu agente e propositada à determinado fim (próprio ou para terceiros).

Tal distinção, fica melhor especificada quando Veblen retoma a ideia atrelada a psique humana na condução dos hábitos das diferentes comunidades, sendo que, para esse caso em questão, Veblen argumenta a diferença de temperamento entre gêneros nos estágios bárbaros. Segundo o autor, para além das diferenciações físicas atreladas a força muscular e estatura, as diferenças fundamentais seriam de caráter psicológico. Sendo que o próprio processo adaptativo referente à distribuição das atividades laborais faz com que estas diferenças segregassem-se ainda mais em seus polos. Cabendo aos homens, através de suas características de luta, força bruta, e caça a manutenção e execução de proezas; já às mulheres os trabalhos manuais demandantes de sagacidade e capacidades assíduas de manufatura. Desse modo, como Veblen bem pontua, conforme as tradições ganham consistência, o senso comum da comunidade direciona-se a determinada conduta.

Sendo assim, mais uma vez Veblen explicita as diferenciações não somente a nível material e de execução, mas também a nível psicológico de percepção destas diferentes atividades e seus desdobramentos em nível de comunidade. Desse modo, mesmo que um homem executasse uma atividade não industrial, mas carente de proeza, ainda assim seria considerado ignóbil e não honorífico, pois não cumpriria com as características de uma atividade de façanha92. Desse modo, surge a demanda pelo melhor entendimento dos atributos que tornariam a uma atividade laboral como nobre ou digna. Afinal, para a completude do entendimento acerca das diferenciações, é necessário que identifique-se de que maneira a proeza atingiria a esses atributos nas atividades de façanha. Para tal, Veblen apresenta traços de um terreno psicológico a ser abordado.

Segundo o autor, o ser humano como agente, é em sua própria apreensão um centro de atividades impulsivas (teleológicas). E devido a esta característica, em todos os seus atos, busca por realização concreta, objetiva e de finalidade impessoal. Através deste elemento

92 Essa diferenciação, em seus termos originais, é feita através dos termos ―exploit‖ e ―drudgery‖. Segundo

Veblen, o caráter exploratório associado à proeza seria resultante das atividades ―exploit‖. Já as atividades não industriais, carente das características de proeza, seriam apenas enfadonhas (―drudgery‖), não necessariamente façanhas honoríficas.

psicológico, o indivíduo se vê possuído de um gosto pelo trabalho eficiente e avesso a esforços fúteis. Conforme já vimos anteriormente, em última instância estes impulsos resultariam no instinto de trabalho eficiente (workmanship). A nível coletivo, o indivíduo seria levado a uma comparação habitual com seus semelhantes em termos de eficiência. Afinal, trata-se de uma característica carente de comparativos no que se refere a sua mensuração e avaliação. Desse modo, o indivíduo apresentaria comportamentos emulativos, visando o melhor desempenho no processo comparativo. Exatamente neste ponto, Veblen ([1899] 2009, 16) salienta que ―[i]n any community where such an invidious comparison of persons is habitually made, visible success becomes an end sought for its own utility as a basis of esteem‖. Sendo assim, através da habituação de comparação entre indivíduos o sucesso se tornaria o resultado teleológico almejado pelo instinto de trabalho eficiente, através de uma demonstração emulativa de força e capacidade.

Através desta consideração, Veblen comenta que, em situações iniciais de convívio pacífico e ausência da perspectiva privada da propriedade, esta capacidade emulativa poderia ser melhor apresentada em atividades laborais relacionadas a uma prosperidade de vida da comunidade. Porém, conforme a comunidade passa do período pacífico para a fase predatória, as condições de emulação são consideravelmente alteradas. Sendo que toronam-se crescentes os incentivos à emulação, tanto em escopo quanto em urgência. Neste ponto as atividades laborais passam a se intensificarem em diferenciações que, conforme já vimos, pautavam-se majoritariamente em discriminações de gênero. Cada vez mais o trabalho dos homens assumia o caráter de façanha atrelado à proeza e à obtenção de ―troféus‖ visando a emulação do sucesso, inclusive, muitas vezes desvinculando-se do caráter produtivo per se e associando-se a uma exposição de feitos. Neste processo, o labor, cada vez mais, foi associado à indignidade.

Neste ponto, mais uma vez Veblen comenta os atributos psicológicos/cognitivos associados às percepções dos indivíduos a respeito das atividades laborais. Afinal, as características honoríficas das atividades laborais associadas às façanhas e à proeza seriam o resultado do compartilhamento de hábitos, principalmente através do senso comum da comunidade. Sendo assim, analisando especificamente a esses aspectos, Veblen os identifica como oriundos de conotações superiores de força em que, a honra seria encarada como formidável e a dignidade como prepotência. Estes elementos, munidos da lógica bárbara de organização social, faria com que a conquista (territorial e de pessoas), e até mesmo a morte de terceiros, tivesse conotação digna e honorífica, pois denotariam proeza e sucesso.

Sendo assim, Veblen comenta que as mudanças ocorridas entre as fases pacífica e predatória seriam, primeiramente, oriundas de uma diferença espiritual (psicológica), não mecânica. Sendo que a mudança na atitude espiritual seria o resultado de uma mudança nos fatos materiais do grupo que, como vimos, convergiam para uma característica predatória. Com base nesse comentário, Veblen ainda salienta que no processo de mudança de uma fase para outra, as características materiais se alterariam em mesmo sentido que as já vistas condições necessárias para o surgimento da estratificação social. Afinal, seriam as mudanças materiais oriundas do conhecimento técnico – como o uso de ferramentas e habilidades industriais – que possibilitariam o aprimoramento das façanhas de uma comunidade, assim como a característica hodierna do trabalho industrial.

Ao fim, visando concluir suas considerações a respeito da formação histórica e antropológica, Veblen mais uma vez comenta o gradualismo com que as mudanças ocorrem:

The predatory phase of culture is therefore conceived to come on gradually, through a cumulative growth of predatory aptitudes, habits, and traditions, this growth being due to a change in the circumstances of the group’s life, of such a kind as to develop and conserve those traits of human nature and those tradition and norms of conduct that make for a predatory rather than a peaceable life (Veblen [1899] 2009, 19).

Sendo que, segundo o autor, tais mudanças a nível de pensamento e comportamento na história humana, podem ser muito melhor vislumbradas através dos estudos psicológicos do que através dos estudos etnológicos. Afinal, poderiam ainda ser identificados os traços arcaicos da natureza humana na psique da cultura moderna.

De um modo geral, observa-se que o anseio de Veblen em seu capítulo introdutório é de direcionar o entendimento do autor aos seus leitores. Neste quesito, entender o ser humano como resultado de um processo histórico cumulativo é fundamental, principalmente através de seus desdobramentos habituais socialmente compartilhados. Tamanha é esta importância que, para que pudesse se vislumbrar a sociedade de seu tempo em suas características de estratificação, foi necessário que o autor retrocedesse na história da humanidade em períodos de relativa escassez civilizatória, salientando a trajetória do ser humano quanto criatura animal de respostas psicológicas complexas.

Visando resumir as narrações acima, o Quadro 4 apresenta um resumo dos principais pontos e argumentos desenhados por Veblen neste capítulo, respeitando sua narrativa regressiva da história:

Quadro 5 – Quadro Resumo da Leitura Antropológica do Surgimento da Classe Ociosa

PERÍODO DIFERENCIAÇÕES CARACTERÍSTICAS

Era Industrial- Patriarcal93

 A existência de diferentes classes sociais, com diferentes ocupações laborais.

 Atenção especial é dada à classe mais superior: a classe ociosa. Por quê e de que jeito essa classe social surgiu?

 Período contemporâneo à Veblen.

 Estratificações sociais bastante rígidas e específicas.

 Convenções sociais e habituações que são partilhadas para o reforço das características de diferenciação entre classes.

Estágios Elevados da Cultura Bárbara

 As classes sociais já são bem definidas e apresentam características particulares.

o Europa Feudal e Japão Feudal

 A classe ociosa é desconexa das atividades industriais.

 Funções de guerra, governança e esportes são atreladas à honra e à dignidade.

 Trabalhos de origem industrial são indignos e ignóbeis.

Estágios Médios da Cultura Bárbara

 Classes sociais já são mais

difíceis de serem

identificadas.

 Classe ociosa ainda é pouco diferenciada das demais.

o Exclusivamente masculina.

 O provimento é função exclusiva das classes inferiores.

 Classes inferiores são formadas por escravos e mulheres.

o Discriminação laboral através da discriminação de gênero. Estágios Iniciais da Cultura Bárbara

 As classes sociais ficam ainda mais difíceis de serem identificadas.

 Não há classe ociosa caracteristicamente definida

o Mas há indicação de uma num futuro próximo.

 Os trabalhos são definidos pelo gênero.

o Trabalhos femininos antecedem aquelas atividades que se tornariam industrias nos estágios posteriores.

Selvageria Pacífica

 Pequenos grupos de estrutura simples e arcaica.

 Não há propriedade privada.

 Pacíficos.

 Sedentários.

Elaborado própria.

Salienta-se que ao longo de toda a obra, Veblen constantemente retorna ao apanhado histórico/antropológico acima desenhado. Afinal, conforme já comentando, o anseio do autor em seu capítulo introdutório seria o de apresentar a sequência de desdobramentos que viriam a viabilizar e justificar a existência de uma classe ociosa. Já no seguimento da obra, Veblen volta-se a apresentar as características da classe ociosa em seu comportamento e

cerimonialismos que, conforme veremos adiante, pautam-se na estrutura de compartilhamento de hábitos.