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2 EXPOSIÇÃO DO PROBLEMA SOBRE O FUNDAMENTOE O SER DAJUSTIÇA

4.4 A Carta VII de Platão: a Educação do Homem Livre

4.4.2 Foucault e Kant: O Problema do Presente

Foucault analisa através de Kant a relação que o homem mantém com o presente, o problema que o impulsiona é este: o que é e como se pertence ao presente a que se pertence?369 Esta questão dirige-se para a justiça intergeracional, e lhe cai como a relação entre a mão e a luva. Examinando-a, compreende-se a relação entre presente e futuro, essência daquilo que é dever entre as várias gerações da humanidade e questão que envolve diretamente a condição do jurista em relação ao Direito.

Depois de examinar a concepção de Kant sobre a Aufklärung, Foucault concentra-se na produção do discurso filosófico e do presente ao qual o filósofo pertence. Presente e que lhe permite refletir filosoficamente:

E, com isso, vê-se que a prática filosófica, ou antes, que o filósofo, ao fazer seu discurso filosófico, não pode evitar de colocar a questão do seu pertencimento a esse presente. Quer dizer que já não será simplesmente, ou já não será de modo algum, a questão do seu pertencimento a uma doutrina ou a uma tradição que vai se colocar a ele, já não será tampouco a questão do seu pertencimento a uma comunidade humana geral, mas será a questão do seu pertencimento a um presente, vamos dizer, do seu pertencimento a um certo ‘nós’, a um ‘nós’ que se refere, de acordo com a extensão mais ou menos ampla, a um conjunto cultural característico da sua própria atualidade. É esse ‘nós’ que deve se tornar, para o filósofo, ou que está se tornando para o filósofo, objeto da sua reflexão. E, com isso, se firma a impossibilidade de o filósofo eludir a interrogação do seu pertencimento singular a esse nós.370

Foucault foi perfeito neste período, mas é lapidar sobre o porquê de querer pensar o problema nele exposto: “Em suma, parece-me que vemos aparecer no texto de Kant a questão do presente como acontecimento filosófico a que pertence o filósofo que fala sobre ela.”371 O trecho transcrito poderia ter por objeto o jurista e seu pertencimento ao “nós” de sua atualidade. O período em questão seria escrito desta forma: a prática jurídica, ou antes, que o jurista, ao fazer seu discurso jurídico, não pode evitar de colocar a questão do seu pertencimento a esse presente. Quer dizer que já não será simplesmente, ou já não será de modo algum, a questão do seu pertencimento a um presente, vamos dizer, do seu pertencimento a um certo “nós”, a um “nós” que se refere, de acordo com a extensão mais ou menos ampla, a um conjunto cultural característico da sua própria atualidade. É esse “nós”

369 FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2013.p. 10-22.

370 Ibid., p. 14.

que deve se tornar, para o jurista, ou que está se tornando para o jurista, o objeto da sua reflexão. E, com isso, se afirma a impossibilidade de o jurista eludir a interrogação do seu pertencimento singular a esse “nós”. Contudo, mera substituição é artifício útil para conduzir a reflexão para a justiça inter geracional, o jurista e o Direito; – mas não dispensa o examesobre as diferenças entre juristas e filósofos, Filosofia e Direito, pensamento jurídico e pensamento filosófico.

A propalada, e já antiga, crise do Direito instaura-se quando o jurista faz o discurso jurídico sem refletir sobre sua relação de pertencimento a seu presente. Esta postura tão comumo afasta da inserção do “nós” a que pertence: o discurso jurídico é esvaziado da relação entre presente e futuro que deveria emergir para situá-lo temporalmente. Daí o jurista formar relação quase inquebrantável com determinada tradição do Direito, com determinados rituais ou entregar-se a exercício intelectual estéril mantenedores das diversas formas do fetichismo do Direito das quais não escapa a própria hermenêutica.372 Finalmente, jurista e Direito acabam por se destacar do “nós” para concluírem obra que não se torna consciente: o pensamento jurídico é improfícuo tanto para o presente quanto para o futuro humano. Este fato dá margem a usos de falsificações ou ilusões a que os juristas recorrem, e este é o caso da sustentabilidade enquanto pensada para encobrir a justiça intergeracional. Dentro da argumentação de Barretto a sustentabilidade assumiu caráter de “moda” sem que juristas perguntassem poressência e verdade deste conceito: assim a preocupação deste autor com a “refundação da interpretação do direito”.373

O fetiche da sustentabilidade é a pele falsa com que foi recoberta a justiça intergeracional. Para reanimá-la é necessário pensar como o Direito se perdeu entre o próprio pensamento jurídico. Neste caso específico pensar significa expor a justiça intergeracional – colocá-la à luz da praça pública – que ainda vive sob a camada caiada da sustentabilidade. Na verdade, a sustentabilidade é conformismo com o fato de que a espécie humana pode ter sua existência interrompida gradualmente, e os esforços para mantê-la no curso vivo de sua história sejam lentamente abandonados. Esta uma verdade digna de ser denuncia pela parresía, técnica que o Direito deverá acolher para o projeto de nova hermenêutica. Entretanto, o Direito deverá se aproximar da Filosofia; conforme Foucault, “o filósofo não pode eludir a interrogação sobre seu pertencimento singular a esse nós”. Esta mais uma lição

372 BARRETTO, Vicente de Paulo. O fetiche dos direitos humanos e outros temas. 2. ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 125: “Em alguns ambientes intelectuais, a palavra “hermenêutica” assumiu um caráter de moda, como se fosse uma nova tendência ou movimento intelectual como o “estruturalismo” ou o “pós-estruturalismo”.

que deverá vir da Filosofia para o Direito e que deve ser ouvida pelos juristas: estes perderam a consciência de si e praticam o Direito com a estranheza de conceitos que desconhecem. Punição, misericórdia e justiça formam grandes exemplos de temas retirados da reflexão jurídica.374

Entretanto, o “nós” a que o jurista se insere permite-lhe conceber a justiça intergeracional à medida que o presente é vivido junto com gerações que já o preocupam antecipadamente. Do raciocínio de Foucault se infere que o presente localiza temporalmente o jurista e lhe apresenta o prenúncio do tempo vindouro: pertencendo a um presente ingressa na realidade de ter para si o “nós” tão amplo quanto possível. A rigor, o Direito existir com o “nós” que é hoje presente, e do “nós” em que estarão inseridas as gerações seguintes. Lê-se: “Todo homem tem direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei”.375 Considerando o que foi explanado, esta afirmação somente pode ser verdadeira admitindo o pressuposto que todo homem tem direito de ser, em todas as dimensões temporais, reconhecido pessoa perante a lei. Não se trata de ilação frágil, mas decorrência da lógica: o homem tem seu ser imerso no tempo e só através dele é compreendido, e por isso lhe é possível compreender os outros.

A relação de pertencimento a um presente, exposição de Foucault, permite que a hermenêutica jurídica do reconhecimento da pessoa perante a lei se torne possível e viável e com isso a justiça intergeracional – e não a sustentabilidade – seja conhecida como adequada para este entendimento. Entretanto, o Direito e os juristas viraram as costas para esta realidade tão ao alcance do intelecto. Portanto, o Direito deixou de existir para as gerações futuras por que as atuais gerações expropriam a si mesmas do presente que as deveria unir no “nós”.

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