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2 EXPOSIÇÃO DO PROBLEMA SOBRE O FUNDAMENTOE O SER DAJUSTIÇA

2.5 Técnica é “Poder-Querer-a-Si-Mesma”

Poder que quer a si mesmo; – eis a essência da técnica.

Isso significa que não poderá ser detida por mero ato de vontade jurídica ou de pessoas bem intencionadas. Não se afirma o prosaísmo que a técnicatem “vida própria”, mas que se

139 HEIDEGGER, Martin. Heráclito, a origem do pensamento ocidental. Lógica. A doutrina heraclítica do logos.Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998. p. 205.

140 HEIDEGGER, Martin. Que é isto - a filosofia? Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 14. (Coleção Os Pensadores). “A frase: a filosofia é grega em sua essência, não diz outra coisa que: o Ocidente e a Europa, e somente eles, são, na marcha mais íntima de sua história, originariamente “filosóficos”.

141 Cf.: MATTEI, Ugo; NADER, Laura. Pilhagem, quando o Estado de direito é ilegal. São Paulo: MartinsFontes, 2013.

desprendeu da raiz humana para se tornar o querer que transborda para além de si próprio.Por isso não há como estacioná-la à margem da vida pensando-se ser possível solucionar problemas da técnica que atingiram a Terra, o mundo e a história.

A técnica – a partir da concepção de Heidegger – enovela-se em si mesma, por si mesma e para si mesma gerando movimento de espiral antropofágico mais abrangência. Amplexo incessante, é claro desde sua origem que este movimento haverá de entrar em crise: não é possível a mesma vontade de poder obter mais poder. E apesar dessa impossibilidade, a técnica haverá de continuar a querer a si mesma até o término final deste movimento: despreza a impossibilidade obsedante em direção à autodestruição por lhe ser inacessível a razão que dita o limite que está na Ética, no Direito e na Moral.

Embora se possa argumentar que o caos da natureza existe apenas para a perspectiva humana, é sempre da perspectiva humana que nasce a interpretação sobre história, mundo e Terra. E isto significa, de imediato, que o caos pode vir a se tornar cosmos, e vice-versa.142 Contudo, a técnica exige mais para ser mantida dentro de ordenamento hígido para o próprio ser humano que dela precisa. Ordem e controle da técnica existem paralelamente à desordem e descontrole. Do subsolo foi retirada a matéria-primado bisturi com o qual o médico mantém vidas humanas; –utensílio que é extensão desua mão que restaura a saúde do paciente. Contudo, nem tudo a técnica pode colocar ao alcance da mão humana e sob controle de resultados precisos; e, por vezes, torna-se difícil determinar se algumas técnicas são nocivas ou não, e se podem ser aceitas como racionais ou irracionais.143 Da interpretação de Heidegger, observa-se trata-se de transformações e formações de transformações sucessivas que impulsionaram outras transformações técnico-científicas e técnico-filosóficas: o que faz o

142 TELLES JUNIOR, Goffredo. Iniciação na ciência do direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 7: “A chamada desordem se pode verificar tanto no mundo da natureza como no mundo do comportamento humano. No Mundo da Natureza, a desordem dos elementos é sempre uma ordem produzida por forças físicas ou químicas, ou físico-químicas, mas ordem que contraria concepções ou interesses humanos, não sendo, portanto, a ordem desejada pelo ser humano.” Cf.: TELLES JUNIOR, Goffredo. O direito quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica.6. ed. rev. São Paulo: Max Limonad, 1985. p. 245: “Na realidade, a ausência de uma certa ordem não é desordem, mas a presença de outra ordem. Suprimir uma ordem é fazer surgir outra, como sucede quando a ordem ditada pela vontade é substituída pela ordem imposta pelo terremoto. Logo, a desordem não existe.” Estas conclusões de Goffredo Telles Junior foram embasadas na Evolução Criadora, de Henri Bergson.

143 SINGER, Peter. Ética prática. São Paulo: Martins Fontes, 2002.p. 65: “À primeira vista, a sugestão pode parecer bizarra. Estamos habituados a ver a discriminação contra membros de minorias raciais, ou contra as mulheres, como fatos que se encontram entre as mais importantes questões morais e políticas com as quais se defronta o mundo em que vivemos. São problemas sérios, merecedores do tempo e da energia de qualquer pessoa que não seja alienada. Mas que dizer dos animais? O bem-estar dos animais não se insere numa categoria totalmente diversa, uma história para pessoas loucas por cães e gatos? Como é possível que alguém perca o seu tempo tratando da igualdade dos animais, quando a verdadeira igualdade é negada a tantos seres humanos.” Neste caso, pode-se pensar no sofrimento intenso em que cobaias são submetidas na busca por novas técnicas cirúrgicas ou na indústria farmacêutica.

ser humano espectador inativo daquilo que acontece, está acontecendo, ou que acontecerá e que não poderá ser de outro modo.144 Este aspecto, apresenta o tempo fragmentado: vários fatos acontecendo do mundo, em locais diversos, simultâneos ou não, que podem ou não ser compatíveis sem que se perceba a ordem e a conseqüência que deles podem advir.145 Além disso, a ordem histórica em que surgiram para o homem, a filosofia, a ciência e a técnica, não é aquela que hoje impera. É possível pensar que a técnica se imponha sobre a ciência, e que está e imponha para o pensamento filosófico e o Direito. Assim como é possível imaginar que o conhecimento seja produzido aleatoriamente e sem se ater a qualquer tipo de ordem.

Mas o Direito, a justiça, em si, e a justiça intergeracionalobjetiva manter a ordem das leis naturais que são lídimas aspirações humanas e que não devem ser destruídas: a natureza talvez alteraria suas leis criando outra ordem que não aquela favorável à continuidade da vida humana ou não humana.

Logo, justiça intergeracional não poderia ser compreendia em outros contextos históricos que não fosse o problemático mundo contemporâneo tal como descrito. Ela não poderia ser produto de momentos em que reinava bonança na história humana. Cícero que escreveu sob melhores ventos, com confiança advinda da Natureza e da Razão, assim se expressou:

Pois aquele que conhece a si mesmo se sentirá possuído de algo divino; conceberá sua própria natureza como uma imagem consagrada, sempre agindo e pensando de modo que seja digno dos muitos favores divinos e, quando se examinar a si mesmo, perscrutando-se por inteiro, descobrirá todos os dons que, ao nascer, lhe deu a Natureza e todos os instrumentos de que dispõe para obter e alcançar a sabedoria; desde o princípio, formou em sua mente conceito das coisas que estavam como que sombreadas. Porém, após alcançá-lo sob a direção da sabedoria, compreenderá que nasceu para ser um homem virtuoso e, como conseqüência, um homem feliz.146

No entanto, hoje parece irreal queexistiram homens quecoordenaram pensamento e ação desta forma, e assim conduziram suas vidas. O trecho transcrito apresenta o ser humano

144 PÉREZ LINDO, Augusto. Mutaciones: escenarios y filosofias del cambio de mundo.Buenos Aires: Biblos, 1995. Esta obra é excelente comentário e apanhado das principais mutações do mundo contemporâneo. O autor aborda fato como as biotecnópolis; a explosão demográfica; emancipação da mulher e feminização da sociedade; “homo sapiens” e “homo informatico”; “velhos e novos ecologismos”; etc.

145 HEIDEGGER, Martin. Estudios sobre mística medieval. Traducción de Jacobo Muñoz. Madrid: Siruela, 1995. p. 82: “Porque in multa defluximus [nos hemos dispersado en muchas cosas], nos hemos fragmentado en lo diverso e caemos en la dispersión. Tú fomentas el movimiento contrario, el movimiento contra la dispersión, contra el desmoronarse de la vida. Per continentiam quippe colligimur et redigimur in unum

[necessarium – Deum?] [Por la continência somos reunidos y congregados em la unidad (Dios uno y

necesario?)]” Fenômeno apenas semelhante ocorre nos dias de hoje. Contudo, a “dispersão” de que esteve sob a análise de Heidegger, tem outros e mais graves contornos se examinada dentro da atualidade.

146 CÍCERO, Marco Túlio. Tratado das leis (De Legibus). Introdução, tradução e notas de Marino Kury. Caxias do Sul: Educs, 2004. p. 64.

que não foi dilacerado em dúvidas, revolvido por filosofias de diversos cunhos, e apreensivo de si deixou de exercitar o autoconhecimento. Natureza, Razão e Autoconhecimento formavam momentos necessários da Ética estóica de Cícero.147 Dentro do pensamento ciceroniano o Direito escrito talvez pudesse conceber a justiça intergeracional como a excelência teleológica. Mas isto não ocorreu admitindo-se que a espécie humana não se encontrava à beira do abismo contemporâneo.

Vive-se mundo sem ascese fragmentado pela dispersão que ultrapassa aquela comentada por Agostinho e Heidegger. Uma vez que se trata de gravíssimo problema que afeta as gerações contemporâneas e futuras, é de perguntar-se se a justiça intergeracional pertence à tradição das teorias da justiça que remontam à antiguidade helênica. Problema que admite como resposta concepção que vem, antes, do “mundo externo” para o mundo da normatividade do Direito; é por isso é igualmente legítimo pensar se a justiça intergeracional pode ser denominada de “justiça” no sentido exato do termo. A justiça intergeracional que hoje se comentae confronta-se com a técnica nem sempre dúctil à boa vontade, talvez ainda carregue o ser da Diké. Mas prosseguirá resultado da observação de homens feridos em sua afinidade natural com a razão, fato que não foi vivenciado por Cícero.

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