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2 EXPOSIÇÃO DO PROBLEMA SOBRE O FUNDAMENTOE O SER DAJUSTIÇA

4.4 A Carta VII de Platão: a Educação do Homem Livre

4.4.3 Parresía Socrática: Apropriação de si Mesmo

Foucault escreveu que Sócrates é modelo de resistência individual do filósofo diante do poder, e, agindo assim usou de forma modelar a parresía.376 Exatamente por isso a morte de Sócrates perpassa os séculos e não poderá ser esquecida: diante da ilegitimidade do processo judicial que lhe fora impingido e do Governo dos Trinta “o dizer-a-verdade

374 Exemplos paradigmáticos: os juristas desconhecem a sexualidade humana, a justiça intergeracional, a epistemologia do Direito Penal, a fraternidade, a conduta humana, amor, perdão, misericórdia e outros temas que apenas parecem conhecidos. Vicente de Paulo Barreto clarificou este fato no artigo A Misericórdia, a

punição e a justiça. no prelo.

375 DECLARAÇÃO Universal dos Direitos Humanos, de 1948, Artigo VI. In: FCOMPARATO, Fábio Konder. A

afirmação histórica dos direitos humanos. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 236.

376 FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2013. p. 197-198.

filosófico confrontou-se com o dizer-a-verdade político”.377 Mas o que tornou celebérrima o fato da injustiça cometida contra Sócrates repousa na seguinte verdade: Sócrates manteve a relação de pertencimento com o seu presente e com isso apropriou-se de si mesmo para projetar-se sobre o futuro. Conclui Foucault: “A parresía [...], o dizer-a-verdade na ordem política só pode ter fundamento na filosofia.”378

Das reflexões de Foucault infere-se que a execução de Sócrates é o exato instante em que a verdade foi exposta em sua inteireza: o poder de Atenas estava não apenas decrépito, tornou-se incapaz de governar os cidadãos por ser incapaz de pronunciar a verdade. A parresía de Sócrates obrigou a todos, no curso de vários séculos até a atualidade, à refletir sobre a necessidade de dizer a verdade para si mesmo, para os outros e para o Estado. Naquele instante de paroxismo, passou-se a desconfiar do Estado, que foi indigitado como fonte primeira da mentira.379 No século XX não faltou quem fizesse acusação igual. O depoimento de Einstein é chocante, mesmo para a sensibilidade de homens contemporâneos que perdeu o hábito da crítica e aceita facilmente afirmações indiscriminadas que lhe chegam sobre os aspectos mais diversos da realidade:

Quando eu era um jovem razoavelmente precoce, fiquei impressionado com a futilidade das esperanças e dos esforços que atormentavam incansavelmente os homens durante toda a sua vida. Além disso, muito cedo percebi a crueldade dessa busca, que naquele tempo era muito mais cuidadosamente disfarçada pela hipocrisia e por palavras brilhantes. Todos estavam condenados a participar dessa busca pela mera existência dos seus estômagos. O estômago talvez se saciasse com essa participação, mas não o homem, na medida em que é um ser pensante e dotado de sentimentos. A primeira válvula de escape era a religião, implantada nas crianças pela máquina educacional tradicional. Assim – embora fosse filho de pais absolutamente não-religiosos (judeus) –, entreguei-me a uma religiosidade profunda, que terminou abruptamente aos doze anos. A leitura de livros científicos populares convenceu-me de que a maioria das histórias da Bíblia não podia ser real. A conseqüência foi um orgia positivamente fanática de livre-pensamento, combinada com a impressão de que a juventude é decididamente enganada pelo Estado, com mentiras; foi uma descoberta esmagadora. Essa experiência fez com que passasse a desconfiar de todo tipo de autoridade, adotando uma atitude cética quanto às convicções vigentes em qualquer ambiente social específico – uma atitude que jamais abandonei,

377 FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2013. p. 199.

378 Ibid., p. 199.

379 PLATÃO. A República. Lisboa: Gimarães Editores, 2005. p. 27. Trata-se do discurso que Trasímaco faz frente a Sócrates para condenar os governantes e o Estado.

embora mais tarde tenha sido amenizada por uma visão mais perfeita das conexões causais.380

O texto transcrito – mutatis mutandis – lembra algo da carta VII de Platão, narrativas que desvendam que o Estado é poder que produz a mentira.381 Contudo, Sócrates manteve-se intacto, não abriu mão de si mesmo e pronunciou a verdade em circunstâncias que o levaram a condenação à morte. Realizou esta experiência a que se poderia afirmar ser única por que realizada em plena solitude. No entanto, isto não é verdadeiro. Sócrates apropriou-se de si mesmo e de seu presente enquanto usava da parresía para falar até mesmo para o porvir de muitos séculos; e isto foi possível enquanto aprofundou-se nas derradeiras reflexões que lhe foram possíveis no breve lapso de tempo de que dispunha. Nele se encontra maior profundidade da noção de parresía, fato que é explicado por Foucault na obra que é o vincula maior para solucionar os problemas que surgiram com o advento do conceito anfractuoso de sustentabilidade. Foucault escreveu que a parresía não é facultada a todos:

Em suma, a parresía não seria porventura que todos possam dizer tudo? É o que sugere, num sentido, a palavra. Na verdade, vocês se lembram, vimos que as coisas eram um pouco mais complicadas que isso. Primeiro porque a

parresía não é a liberdade da palavra, a liberdade de falar facultada a

qualquer um. De fato, a parresía aparece como ligada a uma organização, se não exatamente legislativa, pelo menos instituída, consuetudinária, do direito de palavra e dos privilégios do direito de palavra. Segundo, ficou manifesto que a parresía não era tampouco simplesmente licença de dizer tudo, mas, por um lado, uma obrigação de dizer a verdade e, por outro lado, uma obrigação acompanhada do perigo que comporta dizer a verdade. (grifo nosso).382

Deste faz-se observa-se o seguinte:

a) Sócrates usou a palavra diante de um tribunal que aceitou provas ilegítimas e que refletia o governo corrupto de Atenas;

b) estava ele postado diante de uma organização de poder, afeita à mentira, que protegia seus colaboradores e que para que tudo pudesse se manter afastavam-se da verdade;

c) ao mesmo tempo, desde quese iniciou o processo em que figurou como acusado enfrentou real perigo de vida que os fatos posteriores confirmaram.

380 EINSTEIN, Albert. Notas autobiográficas. Tradução de Aulyde Soares Rodrigues. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p. 14-15.

381 Cf.: BETTETINI, Maria. Breve historia de la mentira, de Ulises a Pinocho. 1. ed. Madrid: Cátedra, 2002. p. 33-36. 382 FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins

Portanto, houve uso da virtude e da técnica da parresía: fato que ingressou na História do Direito Universal por ser absolutamente impossível ignorá-lo lançando-o no esquecimento.383

Compreensível, então, que o Estado de Direito e o ordenamento jurídico que lhe segue erram diversas vezes, outras tantas podem produzir boas decisões e também podem produzir julgamentos iníquos. No que se refere à justiça intergeracional – que não é aceita como conceito essencial para problemas dos Direitos Humanos e do Direito Ambiental – será necessário que indivíduos enfrentem poderes imensos para fazê-la com que ela prevaleça sobre a sustentabilidade. E com essa análise também se revela que a parresía deverá ser exercida enquanto se sabe que ela está dentro da Filosofia, mas completamente fora do mundo jurídico. No caso de Einstein não houve o exercício da parresía. Mas dela se aproximou com a descoberta que lhe abriu a mente para percurso intelectual criativo. Assim, se é possível morrer por vontade de dizer a verdade, também é possível entender que sociedades e nações declinam e morrem por ausência da mesma verdade.

A justiça intergeracional – que somente pode exigir a verdade – foi vedada ante às portas do Direito: apenas se permitiu o ingresso da sustentabilidade.

383 Luis Jimenez de Asua lembra que o advogado grego Eupolemos, em 1892, iniciou campanha que durou quarenta anos para que a justiça helênica reexaminasse o processo contra Sócrates, buscando inocentá-lo depois de tantos séculos passados. O resultado demonstra que ainda no século XIX a verdade não é bem- vinda pelo uso da parresía: o resultado absurdo condenou Sócrates a três meses e um dia de prisão e jejum, “pois a ironia do acusado significou desacato à nobreza do tribunal. Cf.: ASUA, Luis Jimenez de. Tratado de

5 CONTABESCÊNCIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL

A sustentabilidade é contabescência social e da comunicação jurídica enquanto enfraquece o Direito. Por isso a sustentabilidade também é contemporização com a irracionalidade, com a “ausência de sentido” e artifício que impede a concepção da justiça intergeracional como fundamento do Direito Ambiental. Uma vez que a equidade é essência da justiça, concepção de Rawls, a justiça intergeracional é a equidade que deve ocorrer entre as gerações em função da preservação, uso e divisão das riquezas naturais. Trata-se, então, de substituir-se a noção obsoleta de desenvolvimento sustentável por desenvolvimento equitativo. Tanto Kant como Rawls oferecem procedimentos filosóficos como instância superior para confirmar que a sustentabilidade não é conceito legítimo para o Direito. A argumentação Sarlet / Fensterseifer exemplifica o quanto é ilusório pesar os fundamentos constitucionais do Direito Ambiental através da sustentabilidade. Por fim o “horizonte jurídico” do Direito Internacional deve ser dominado pela justiça intergeracinal.

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