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2 EXPOSIÇÃO DO PROBLEMA SOBRE O FUNDAMENTOE O SER DAJUSTIÇA

2.4 Physise Natura

2.4.1 O Ser Humano, o “Animal Indireto”

A reflexão de Rousseau sobre o confronto entre homem e natureza prosseguiu por caminhos diversos até a atualidade.

103 Este problema – que se considera importante para a fundamentação da justiça intergeracional – será explicado com maior profundidade mais a diante.

104 Esta perspectiva que traz a pretensão de ter em si novidade será o alicerce para solucionar o problema da fundamentação da justiça intergeracional. Sobre ela irá assentar a tese principal do texto que haverá de propor que a justiça intergeracional – sob a perspectiva da ética hermenêutica – representa uma forma especial de “reconciliação” entre homem e natureza.

Cioran atribuiu a maldade humana a partir do fato do homem ser um animal enfermo: “Siendo el hombre un animal enfermizo, cualquiera de sus palabras o de sus gestos equivale a um sintoma.”105 Este mesmo autor escreveu que o homem é um “animal indireto”.106

Horkheimer e Adorno escreveram sobre concepções que deram origem a inúmeras condutas equivocadas no decorrer da história humana, inclusive naquilo que se refere às mulheres: “La idea del hombre se expressa em la historia europea em sua diferencia respecto al animal. Mediante la irracionalidad del animal se demuestra la dignidad del hombre.” 107Em outro fragmento – Sobre la Genesis de la Estupidez – os mesmos filósofos afirmam que “la estupidez es una cicatriz” e que “la buena voluntad se vuelve mala a causa de la violência sufrida”.108 Construíram a seguinte concepção que pode ser expressa desta forma: o homem é o instávelanimal indireto, enfermo em seu ser. Daí a convicçãode Amiel: “Viver é curar-se e renovar-se todos os dias, é também reencontrar-se e reconquistar-se.” 109Logo, somente buscacura e renovação o ser sujeito a perdersua essência; – ser convulsionado por instabilidades diversasque não são de todo conhecidas pelo Direito.Mas que também não podemser completamente contidas pelo Direito e são óbices para a justiça intergeracional que não ingressa no mundo jurídico devido a interesses manifestos, ocultos ou ignorância dos lidadores jurídicos.

A incessante destruição da Biosfera é causada pela má organização da natureza humana que propende para o exercício infrene do mal.110Nas cicatrizes visíveise invisíveis da Biosfera se encontram as pegadas do animal indireto: a importância da justiça intergeracional só foi percebida quando asatuais gerações objetivamentetornaram-se cônsciasdo poder direto de autodestruição da espécie humana. O problema se adensa: o sentido de construção do bem

105 CIORAN, Emil Michel. Esse maldito yo. 3. ed. Barcelona: Tusquets, 2008. p. 17.

106 CIORAN, Emil Michel. Breviario de podredumbre. Traducción y ensajo introductoria de Fernando Savater. Madrid: Taurus Humanidades, 1992. p. 42: “Se llega a um auténtico desconcierto cuando se piensa continuamente, por uma obsesión radical, que el hombre existe, que es lo que es y que no puede ser outro. Pero lo que es, mil definiciones lo denuncian y ninguna se impone: cuanto más arbitrarias son, más válidas parecen. El absurdo más alado y la banalidad más gravosa le convienen semejantemente. La infinidad de sus atrubutos componen el ser más impreciso que podamos concebir. Mientras que los animales van derectamente a su fin, él se pierde en rodeos; es el animal indirecto por excelência. Sus reflexos improbables – de cujo relajamiento resulta la conciencia – le transformam em um convaleciente que aspira a la enfermedad. Nada en él es sano, salvo el hecho de haberlo sido.”

107 HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. Dialéctica de la ilustradión: fragmentos filosóficos. Introducción y traducción de Juan José Sanches. Madrid: Trotta, 1994.p. 291-301.

108 Ibid., p. 302-303. A conclusão deste fragmentos é muito importante: “Como las espécies de la serie animal, también los niveles intelectuales dentro del género humano, e incluso los puntos ciegos en um mismo individuo, señalan las estaciones en las que la esperança se detuvo e son testimonio, en su petrificación, de que todo lo que vive está bajo uma condena.”

109 AMIEL, Henri-Frèdéric. Diário íntimo. Tradução de Mario Ferreira Santos. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1947.p. 281.

110 Cf.:BARRETTO, Vicente de Paulo; PINTO, Gerson Neves. O direito e suas narrativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado: Unisinos, 2016.p. 12-24.

é tão natural quanto o poder destrutivo do mal. Kantfoi verazao refletir sobre ainsociável sociabilidade do homem.111 Mas Schopenhauer veracíssimo: a rudeza de suaparresíque assenta sobre o empirismosempre próximo da natureza, trouxe-lhe o idealismo do qual Cioran poderia aderir: o animal indireto é o animal metafísico de Schopenhauer que o tornouhobbesiano.112

A Biosfera transformada em tacape éa tecnologia que dela emergiu e não pode ser repartida entre boas e más. Contudo é verdadeiro que adesarmonia da vida inter-humana jamais será extinta pela organização que o Direito pretende lhe impor.

Ora, se “a hermenêutica sempre se propôs como tarefa restabelecer um acordo alterado ou inexistente”,113a justiça intergeracional colhe para si esta lição de Gadamer. 114A preocupação com o futuro humano é a sinal da ausência da justiça intergeracional, é construção e reconstrução de acordo obliterado pela incúria humana.A rigor, a justiça intergeraciconal é, em essência, reconciliação e cura que o homemserá obrigado a firmar consigo mesmo e sua espécie.Objetivo que, se alcançado, terá mais de egoísmo que o altruísmo que o Direito anuncia possuir e distribuira quem resiste à presença do outro. O Direito não é elogio ao ser humano, éhistória da sua existênciaexecranda; muito emborao animal indireto também sejaânsia pela perfeição, que, neste caso, é a justiça intergerarcional.

Para a hermenêutica a justiça intergeracional é “antecipação da perfeição”115 que está em toda obra humana: desde a arte da guerraaté o Direito que também não pode afastar-se da idéia de perfeição.116Direitoque não é cônscio da perturbadora verdade que o relaciona com oanimal indiretopara adquirir validez, existência e vigência, e que somente assim poderia compreender a justiça intergeracional.Kant e Schopenhauer resumiram a questão: o homem quer a perfeição desconhecendo que não pode alcançá-la; –núcleo da obra máxima de Cervantes.

111 KANT, Immanuel. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. Tradução de Rodrigo Naves e Ricardo R. Terra. São Paulo: MartinsFontes, 2011.p. 8.

112 SCHOPENHAUER, Arthur. Metafisica de las costumbres. Edición bilíngüe de Roberto Rodrígues Aramajo. Madrid: Debate/CSIC, 1993. p. 85-87.

113 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y metodo: fundamentos de uma hermenêutica filosófica.3. ed. Tradujeron Ana Agud Aparicio y Rafael de Agapito. Salamanca: Sígueme, 1988. p. 362.

114 Ibid., p. 362: “Incluso, un precedente de Schleiermacher, el filólogo Friedrich Ast, mantenía una comprensión decididamente material de la tarefa de la hermenêutica cuando presentada como su tarea específica la reconstrucción del acuerdo entre antigüidad clássica y cristianismo, entre una antigüidad clásica verdadera, percebida con ojos nuevos, y la tradición cristiana.”

115 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y metodo: fundamentos de uma hermenêutica filosófica.3. ed. Tradujeron Ana Agud Aparicio y Rafael de Agapito. Salamanca: Sígueme, 1988. p. 363.

Amiel, Camilo e Rousseau foram conscientes do acordoque começava a ser desfeito entre natureza e homeme colocaram-se perto de Rabelais.117

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