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2 EXPOSIÇÃO DO PROBLEMA SOBRE O FUNDAMENTOE O SER DAJUSTIÇA

4.3 Comunidade Planetária e Justiça Intergeracional

4.3.2 Justiça Intergeracional e o “Ato de Veridicção”

Foucault indica o real da filosofia: éo “ato de veridicção” (o ato de dizer a verdade).353 A vontade de dizer a verdade é o real da filosofia para o filósofo, embora possa dizer o que não é verdade. Atrair esta questão para a justiça intergeracional e o Direito tem resultado lógico: irracional pensar que o Direito despreza a verdade, que não a considera importante ou dela se afasta para privilegiar apenas a formalidade do normativismo abstrato. Com Mattei e Nader a ampliação desta reflexão é importante:as nações deflagraram crises sociais e econômicas quando abandonaram a vontade de verdade que é intrínseca à justiça intergeracional. Encontra-se a origem do Estado que se dedica à pilhagem: crises econômicas e sociais são conseqüência do desprezo da verdade e da ausência da parresíacomo virtude, técnica e postura do filósofo que fala a verdade diante do poder.

Entretanto, a sustentabilidade não é guarda da verdade e vontade de nela permanecer. Sustentabilidade é ocultação da justiça intergeracional por que é distorção do ato de veridicção que nasceu com o Direito e o conhecimento da justiça.354 A sustentabilidade afastou o Direito da justiça intergeracional e do pensamento filosófico, dispensando-o do dever da dicção da verdade.Justiça intergeracionalé dever indeclinável a que pode ser usada aparresía; sustentabilidade, ausência de compromisso com a verdade de quem apenas se atém a ornamentos da retórica. A dicção da sustentabilidade é enfraquecimento da justiça intergeracional e percorre airrealidade para se apresentar como se realidade fosse: comunicação que não comunica para sufocar a justiça intergeracional. Esta postura dúbia

352 O Direito Natural, a doutrina socrático-platônica, a filosofia de Tomás de Aquino e de Santo Agostinho, a filosofia kantiana e na atualidade o pensamento de Rawls são exemplos da aproximação entre justiça, verdade e ética.

353 FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2013. p. 203-222.

354 BARRETTO, Vicente de Paulo. O fetiche dos direitos humanos e outros temas. 2. ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 109-116. Barretto ressalta a importância da Antígona, tragédia de Sóflocles, para se compreender a origem do problema da justiça e do Direito.

obteve sucesso: o mundo fala sobre a sustentabilidade, mas sem compreender o engodo que o cercou. Quem faz uso da parresía escolhe a verdade da justiça intergeracional, e rejeita o vocábulo obscuro da sustentabilidade; – o poder enquista-se na linguagem hermética para nada comunicar. O Estado de Direito que legitima o que é ilegal – tese de Mattei e Nader – pressupõe a demolição da verdade.355 A parresía desfaz este jogo que rejeita a Ética, o Direito ou a Filosofia. Assim, o ato de veridicção perante o poder é a autenticidade de quem fala de acordo com princípios que não podem ser pisoteados.

Aproximar a justiça intergeracional da parresía e ato de veridicção é tratar de reconstruir a vida dos Direitos Humanos, do Direito Internacional e do Direito Ambiental sem orientá-los pela sustentabilidade. Sustentabilidade, por representar a atualidade do mundo problemático que está sendo vivenciado, provocou danos que se assemelham a benefícios e conquistas sociais da humanidade. A realidade empírica demonstra isto todos os dias: a sustentabilidade empapou os discursos de manutenção de poder. A parresía não pode ser concebida num mundo tão diverso do real da filosofia e da vontade de verdade; e o Brasil é apenas uma das regiões do poder que busca posição excêntrica para lhe ser possível desprezar a veridicção do real.

Foucault pensa a parresía a partir da relação do paciente perante seu médico. Este deverá comunicar àquele a verdade, ainda que esta seja desagradável.356 Yourcenar transformou esta observação em arte nas Memórias de Adriano:

Meu caro Marco,

Estive esta manhã com meu médico Hermógenes, recém-chegado à Vila depois de longa viagem através da Ásia. O exame deveria ser feito em jejum; por essa razão havíamos marcado a consulta para as primeiras horas da manhã. Deitei-me sobre um leito depois de me haver despojado do manto e da túnica. Poupo-te detalhes que te seriam tão desagradáveis quanto a mim mesmo, omitindo a descrição do corpo de um homem que avança em idade e prepara-se para morrer de uma hidropisia do coração. Digamos somente tossi, respirei e retive o fôlego segundo as indicações de Hermógenes, alarmado a contragosto pelos rápidos progressos do meu mal e pronto a lançar no opróbrio o jovem Iolas, que me assistiu em sua ausência. É difícil permanecer imperador na presença do médico e mais difícil permanecer homem. O olho do prático não via em mim senão um amontoado de humores, triste amálgama de linfa e sangue. Esta manhã, pela primeira vez, ocorreu-me a idéia de que meu corpo, este fiel companheiro, este amigo mais seguro e mais conhecido do que minha própria alma, não é senão um

355 MATTEI, Ugo; NADER, Laura. Pilhagem, quando o Estado de direito é ilegal. São Paulo: MartinsFontes, 2013. p. 217: “Na verdade, a atitude dos Estados Unidos com relação ao Direito Internacional já é hipócrita há muito tempo.”

356 FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2013. p. 212-213.

monstro sorrateiro que acabará por devorar seu próprio dono. Paz... Amo meu corpo.357

Adrianoestá diante de Hermógenes, seumédico. O exame de Hermógenes é a introdução da obra de Yourcenar, – páginas iniciais que auxiliam a compreensão do pensamento de Foucault sobre a parresía. O poder de Adriano reduz-se diante de Hermógenes que irá formular ato de veridicção: ele se posiciona acima (enquanto tem vontade de verdade) e fora (enquanto médico) do poder de Adriano. Imperadores se reduzem a homens, e homens destituídos de poder frente ao médico. Hermógenes não apenas despiu o imperador, ele o desvenda para saber de realidade que o imperador não tem controle e o vê como humores, sangue e linfa e quer diagnosticar do mal de que o paciente sofre. Adriano pensa: “É difícil permanecer imperador na presença do médico e mais difícil permanecer homem.”

O ato de veridicção e a parresía semelha a palavra dura e real do diagnóstico médico. Este irá falar sem adulações, adornos retóricos e apenas a verdade sobre a saúde abalada do paciente. De igual forma o parresiasta: é autêntica sua vida por que reeduca todo homem e do homem todo, elevando-o para patamares de experiências humanas dignas tornando-o valioso com a verdade. Estas considerações transferem-se facilmente para o Direito e a justiça intergeracional:o Estado que tem no Direito a jurisdicção deveria ter a vontade de verdade.

Contudo, para seguir nesta vereda, é necessário entender que Foucault partiu da interpretação da Carta VII, de Platão, e nela se deve buscar mais informações que serão úteis para a compreensão da justiça intergeracional e a parresía.

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