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2 EXPOSIÇÃO DO PROBLEMA SOBRE O FUNDAMENTOE O SER DAJUSTIÇA

2.6 Parresíae Justiça Intergeracional

Revisando todo o exposto, aparresía émeio para a comunicação efetiva da justiça intergeracional ou da justiça considerada em si mesma. Sabendo-se que a justiça – indigitadaem qualquer de suas modalidades – não pode discrepar da verdade, parresía é virtude, dever e técnica para dela se escrever ou falar – poisse “trata apenas da transmissão da verdade.” 148

Foucault não esqueceu que a parresía foi objeto de lições de Sêneca à Lucílio nas cartas 75, 29, 38 e 40.149 Cartas que devem ser relidas para se saber da relação entre parresía, justiça intergerarcional e a justiça considera em si mesma.

147 Cf.: VALENTE, Milton. A ética estóica em Cícero. Caxias do Sul: EDUCS/Escola Superior de Teologia de São Lourenço de Brindes, 1984.

148 CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores.Tradução de Ingrid Müller Xavier. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. p. 316-318.

2.6.1 Sêneca, Carta 75

Na carta 75 Sêneca distingue parresía da retórica: a primeira, despida de artifícios, objetiva comunicar a verdade, e apenas esta; a segunda, busca a persuadir e frequentemente não expressa a verdade.150 Entretanto, Sêneca não deixa de afirmar que a parresía caracteriza o falar que não se afasta daquilo que se sente enquanto se fala.

Sêneca, por valorizar o sentimento experimentado diante da verdade, pratica a Filosofia para curar a alma enfermiça pelas paixõesque a afastaram da ataraxia. Logo, a parresía somente pode ser exercita por deseja como virtude. E, uma vez quea justiça é espécie da verdade, a parresía torna o filósofo apto para a veracidade do Direito, por se encontrarem unidos pensamento e ação em torno da justiça (em si mesma) e da justiça intergeracional (em particular). Isto faz com o Direito se torne vivo e claro para todos. Dessa forma, a parresía propõe que a justiça intergeracional é comunicação universalmente válida por ser virtuosa; e é virtuosa por não relegar ao silêncio a verdade, retirando-a os homens e sua conduta da sombra para a clareza da práxis.

Contudo, a parresía não pretende alcançar efeitos para determinada situação e não é retórica literária. Sêneca é impecável:

O nosso objetivo último deve ser este: dizer o que sentimos, sentir o que dizemos, isto é, pormos a nossa vida de acordo com as nossas palavras. Imagina um mestre qualquer: se a impressão que tu sentes contemplando as suas ações é idêntica à que tens ouvindo o seu discurso, esse mestre atingiu o seu propósito. Observemos a qualidade de seus atos, a fluidez do seu discurso: entre ambos, a mais perfeita unidade! As nossas palavras não visam o prazer literário, mas sim a pertinência.151

De outro lado, Sêneca deixou claro que ninguém consegue a sabedoria instantaneamente. Trata-se de conquista gradativa que está direcionada para se fazer o uso da parresía. Esta postura altera o Direito de estratégia retórica, tal como ele é comumente entendido, para expressão exata daquele que sente e expressa a verdade no uso pertinente das palavras.

150 SENECA, Lucius Annaeus. Oeuvres Complète de Sénèque, le philosophie. Traduction en français. Direction de M. Nisard. Paris: J.-J. Dubochet et Compagnie, 1858.

151 SÊNECA, Lúcio Aneu. Cartas a Lucílio.Tradução, Prefácio e Notas de J. A. Segurado e Campos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991. p. 306. O comentário das demais cartas foi realizado com uso desta obra.

2.6.2 Sêneca, Carta 29

Parresía é técnica inspirada da libertas, do falar franco, da palavra livre, independente de regras, livre dos procedimentos de retórica, e “constitui um determinado pacto entre o sujeito da enunciação e o sujeito da conduta.” 152 Logo, a parresía tão mais se aproxima do ideal do filósofo quanto mais se liberta de regras que impedem o uso franco da palavra; – daí a estranheza de técnica que elimina regras, pois estas mais aprisionam a fala do que a libertam. Este o conteúdo desta carta: a palavra liberta enquanto aquele que a usa esta determinado a tornar-se filósofo dentro desta postura fundamental.

Transpondo esta particularidade para o Direito, a justiça intergeracional deverá ser pronunciada para o mundo, e nãopodeser aprisionada no calabouço de textos de leis natimortos. Assim, a técnica também revela que a parresía édever. Logo, pronunciar a verdade usando da palavra que é libertada de amarras que lhe foram impostas torna-se dever para o jurista e o filósofo. Contudo, a História do Direito faz desfilar perante o jurista mais os erros cometidos do que os acertos, e estes se tornam raros com o passar do tempo.

2.6.3 Sêneca, Carta 38

Esta carta ressalta que a parresía tem as seguintes características: a) a utilidade da conversação somente se alcança quando gravada no espírito paulatinamente; b) a parresía se reveste de familiaridade, o que lhe é essencial, fato que não ocorre com discursos preparados para o público; c) palavras simples são mais adequadas para a transmissão da verdade; d) a abundância das palavras sufoca a eficácia da comunicação, que ocorre quando restritas à sua essência; e) as palavras devem ser escolhidas como sementes, e o mesmo ocorre com a razão, que deve agir no espírito com a brevidade dos termos usados; f) é indispensável encontrar intelecto (espírito) apto para interiorizar a comunicação eficaz.

O Estoicismo de Sêneca, levado às últimas conseqüências, propõe que teorização excessiva encobre a verdade, assim como termos ou expressões equivocadas estropiam a nitidez do pensamento. Além disso, é possível pensar qual vocábulo poderia expressar a totalidade do real. Assim, justiça ou justiça intergeracional deveriam ser inteligíveis em si mesmas para o intelecto de qualquer ser racional, e o mesmo se pode afirmar sobre Direito, ciência, dignidade humana, homem, princípio, norma ou razão. Contudo, cada um destes

152 CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores.Tradução de Ingrid Müller Xavier. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. p. 318.

termos transforma-se, especialmente para o homem contemporâneo, numa miríade infinita de problemas. Mutatis mutandis, Heidegger também foi sensível à fragmentação do sentido das palavras: “[...] perdemos a capacidade de ouvir coisas simples, ditas nas palavras dos pensadores originários.”153 Através de Foucault, imerso no estudo da parresía, se encontra a vereda da justiça intergeracional:a verdade que a justiça é situa-se entre as gerações e deve ser entendida antes da justiça que se estabelece entre os indivíduos.

Por outras palavras, a justiça intergeracional estabelece o sentido da justiça, (considerada em si mesma). Adiante serão colocadas à luz do dia o quão nefastas revelaram- se vocábulos, conceitos ou expressões equivocadas. Isto ocorreu com as repetidas tentativas de se examinar o conceito de justiça antes do exame da justiça intergeracional. Neste caso, se trata da reestruturar a investigação da justiça a partir da justiça intergeracional, pois se assim for compreende-se que o Direito naturalmente existe em função da humanidade.

2.6.4 Sêneca, Carta 40

Nesta carta, Sêneca apresenta problemas que se relacionam com a parresía para explicar o quanto é necessário a presença do outro: a companhia – assim como a familiaridade – são condições para a transmissão da verdade. Distante de Lucílio, Sêneca reponde-lhe (carta n. 40) que se encontram presentes um diante – ainda que de modo ilusório e fugaz – pois se utilizam de correspondência epistolar.

Percebe-se o quanto os homens hodiernos estão distantes do exercício da parresía: não dispõem da simplicidade das palavras, de tempo, da presença real do outro, da familiaridade, da fala franca e aberta e da expressão indispensáveis de sentimentos.

Salta aos olhos que a presença do outro é essencial para o exercício do pensamento filosófico que busca a verdade. O rosto, os olhos, a gesticulação, a entonação de voz; minúcias inúmeras como o silêncio, breve ou longo; a espontaneidade; o humor, bom ou mau; o início e o término da conversação; as palavras que foram usadas; o lugar também familiar em tudo ocorreu. Tudo isto são características indispensáveis para que a verdade possa ser pronunciada pela parresía.

Após, a carta refere-se sobre o estilo que o filósofo deve usar para expressar a verdade e refere-se sobre os prestidigitadores de palavras reafirmando o quanto a verdade se torna oculta com os ornatos e figuras da retórica. As lições de Sêneca são valiosas para o Direito

153 HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Tradução de Sérgio Mário Wrublevski. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco; Petrópolis: Vozes, 2008. p. 23.

contemporâneo para se saber como este morreu nos textos de lei, e como este se tornou refratário à verdade ao invés de se tornar útil para a organização social. Inúmeras vezes a ciência abandonou o Direito ecedeu lugar àquilo que não deveria ser ou à ausência da maestria de decisões judiciais; – tornando-se dispensável enumerar exemplos.

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