KAMENEZKY, Eliezer
Bachmut (atual Artemivsk, Ucrânia), 1888 ‑Lisboa, 1957 Eliezer Kamenezky nasceu na cidade russa de Bachmut, no dia 7 de abril de 1888, sendo filho de Izak e Sofia Kamenezky (Fig. 1). Desde cedo imbuído de um espírito inquieto e curioso, foge de casa aos 15 anos, para calcorrear meio mundo. Na década de 1920, decide por termo ao périplo de judeu errante, fixando -se em Lisboa até ao final da vida, com residência na Travessa da Mãe de Água, 26 -2.º andar.
Figura polémica e multifacetada do panorama artístico do início do século XX, dedicou -se, em paralelo, a diversas atividades, desde a divul- gação do naturismo e vegetarianismo à poesia, à música, ao cinema e ao comércio de antigui- dades. Vagamente estudado, o seu nome surge mais recorrentemente associado ora ao contex- to da literatura e do cinema, ora ao naturismo e vegetarianismo em Portugal, sendo denominado pela imprensa como o “Apóstolo do Naturismo”. É por excelência um dos principais introdutores desta prática em Portugal, famoso pelas prele- ções públicas no Largo de São Domingos (Mân- tua, 2010, 80), tornando -se parte do imaginário coletivo dos lisboetas.
O círculo intelectual que frequenta em Lisboa foi determinante para a afirmação de Kamene- zky enquanto poeta, destacando -se a convivên- cia com Fernando Pessoa e com a escritora e espírita Maria O’Neill. Em 1932, publica o livro A Alma Errante, merecedor de um inusitado pre- fácio de Fernando Pessoa. Longe da consagração e reconhecimento como poeta, Kamenezky obte- ve, não obstante a posição vigorosamente crítica de Fernando Pessoa e a aparente desvalorização
entre os seus pares, divulgação entre pessoanos, chega a ser considerado por alguns um heteróni- mo de Pessoa, sendo a sua obra poética equivo- camente confundida com a de Fernando Pessoa e gerando incorreções autorais.
Ainda a propósito de Alma Errante, a obra contém um retrato de Kamenezky a pastel, exe- cutado por José Malhoa. De olhar penetrante, Kamenezky surge representado “com barbas de Rasputim, cabeleira farta (Cavalcanti, 2012, 474), aos 35 anos, seguindo o registo de retra- to outrora devedor do estilo “tenebrista” que Malhoa praticou, no qual se destaca, no canto superior esquerdo, uma legenda com o nome do retratado em hebraico (iídiche).
De facto, a personalidade excêntrica de Kame- nezky, anacronicamente atraente, registada por Malhoa, torna o episódio merecedor de enfâse por parte da imprensa portuguesa.
Outros artistas registaram a enigmática figura de Kamenezky. O primeiro retrato que se conhe- ce é da autoria de V. Genito (1914), seguindo -se Júlio Vaz (1924) e Eduardo Malta (1929), os três
FIG. 1 José Malhoa, Retrato de Eliezer Kamenezky, 1923, Pastel s/papel, 47 x 42 cm, Museu de José Malhoa, inv. 414 Pint. © DGPC / ADF, José Pessoa, 1998
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“Procedi à escolha das peças que me pareceram mais adequadas para o fim em vista, e que já estão apartadas em casa da Senhora Kamene- zky. São esculturas, miniaturas, vidros coalha- dos, objectos de madrepérola e marfins”.
Todavia, devido ao facto de ter sido membro titular do Grupo dos Amigos do Museu Nacional de Arte Antiga, proposto por João Couto, somen- te de 1955 até ao seu falecimento, o envolvimen- to de Kamenezky com o Museu Nacional de Arte Antiga é mais recuado, surgindo documentado em compras feitas pelo museu ao antiquário, entre 1934 a 1942. A 23 de novembro de 1957, é autorizada a aceitação da doação ao Estado, com afetação ao MNAA do espólio, no qual constam 47 peças. Percorrendo a lista de peças ofertadas, verificamos que o conjunto se constitui como significante para o acervo do museu, servindo pertencem hoje à coleção do Museu Nacional de
Arte Contemporânea do Chiado (Pinho, 2013). Por ocasião da XXXVIII Exposição de Pintura, Desenho, Gravura e Escultura, na Sociedade Nacional de Belas Artes, o pintor Mário Eduardo Passos Reis expõe, em abril de 1941, uma pintura intitulada Retrato do Ex.mo Sr. Eliezer Kamenezky. A apresentação pública deste retrato deu origem a um caso judicial, tendo sido registado o episó- dio pelo caricaturista Francisco Valença.
Merece igualmente menção a sua participação como ator em três comédias cinematográficas, fruto da amizade com António Lopes Ribeiro (Ramos 2012): A Revolução de Maio (1937), O Pai Tirano (1941), ambas de António Lopes Ribeiro, e o Pátio das Cantigas (1942), de Francisco Ribei- ro. As personagens que interpreta são um reflexo de si mesmo, nas mais variadas e estereotipadas vertentes.
Em 1933 Kamenezky casa com Arnilda Roque Penim (Fig. 2), uma professora oriunda da vila alentejana do Redondo, que introduz uma vira- gem no seu percurso, adotando um novo estilo de vida, o de burguês e ávido comerciante de arte. Não obstante, o sobejo reconhecimento alcança- do noutras atividades às quais se dedicou, a casa comercial de antiguidades que estabelece na rua de S. Pedro de Alcântara, 71, atinge um reputado estatuto no mercado de arte português, surgin- do à data na lista das casas mais respeitadas da cidade de Lisboa.
Morre em 1957, em Lisboa. Nesse mesmo ano, Arnilda cumpre o desejo do marido “por expres- sa determinação verbal do falecido à hora da morte”, propondo oferecer ao Museu Nacional de Arte Antiga todos os objetos pertencentes ao espólio de Kamenezky, com a finalidade de aí ser exposto o conjunto, numa sala consagrada à doação. João Couto, à data diretor do museu, rejeita a proposta, em parte movido pelo desvio do âmbito das coleções do museu de algumas peças, e opta por fazer uma criteriosa seleção dos objetos que viriam a integrar o acervo do museu:
FIG. 2 Fotografia de Eliezer Kamenezky com a esposa Arnilda Roque Penim no seu antiquário. ©Biblioteca Nacional de Portugal
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to, contando com 3147 lotes, que nos permite entender o gosto do colecionador e o seu carácter eclético. O conjunto reunia: “peças de cerâmica, esculturas, móveis, miniaturas, relógios, jóias, tabaqueiras e pequenas curiosidades, pratas e metais, quadros da Escola Espanhola, quadros da Escola Flamenga, quadros da Escola Fran- cesa, quadros da Escola Holandesa, quadros da Escola Inglesa, quadros da Escola Italiana, qua- dros da Escola Portuguesa, quadros de Mestres Portugueses Diversos, quadros da Escola Russa, um quadro da Escola Suissa, obras de Diversas Escolas e Épocas, gravuras, tecidos e bordados, vidros e cristais e diversos”.
Em 1977, sob o título de “2.ª Exposição tem- porária da Doação Kamenezky”, é realizada a segunda exposição comemorativa da doação (Fig. 3). A este propósito, Maria Alice Beaumont, então diretora do museu, expressa a intenção de criar um espaço para expor o conjunto em per- manência: “É intenção do Museu incluiu algumas dessas peças no futuro arranjo das salas. Não podemos no entanto prever quando estará esse arranjo terminado pelo que nos parece plena- mente justificada esta pequena exposição.”
Para além da ação benemérita que o casal Kamenezky prestou ao património nacional, a partir das suas doações, destaque -se o reco- nhecimento da Câmara Municipal do Redondo, que decidiu homenagear Arnilde Roque Penim pelas suas obras de beneficência, atribuindo o seu nome à nomenclatura de um arruamento na referida Vila. Foi por vontade da homenagea- da que o nome do marido perpetua a seu lado, consagrando o topónimo Rua Arnilda e Eliezer Kamenezky.
BIBLIOGRAFIA
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CATÁLOGO dos Quadros, Esculturas, Cerâmica, Móveis, Pratas, Cristais, Tecidos, Objectos de Vitrina e Diversos. 1961. Lis- boa: Leiria & Nascimento, Lda.
para colmatar lacunas residuais, composto fun- damentalmente por imagens religiosas e minia- turas, entre as quais se evidencia a maquineta de presépio do século XVIII, executada original- mente para a Real Barraca da Ajuda, em 1783, com trabalho escultórico atribuído a Faustino José Rodrigues, discípulo de Machado de Castro. Esta peça ganha hoje particular destaque nas coleções do museu, apresentada na sala dedica- da à temática do presépio português, inaugurada em 2015, na qual se expõem 25 obras da coleção de presépios do museu.
A propósito da doação, o MNAA realiza duas exposições temporárias que consagram o gesto, a primeira, em 1959, intitulada “Peças oferecidas ao Museu pela Exm.ª Senhora D. Arlinda da Cruz Roque Penim Kamenezky”, conta com a publicação de um catálogo, com prefácio de João Couto, cujas palavras salientam o interesse da doação para o museu, reforçando a generosidade dos doadores, um gesto que considera invulgar em Portugal.
A 16 de dezembro de 1961, parte do acervo da coleção Kamenezky foi vendido em hasta públi- ca, pela casa liquidadora Leiria & Nascimen- FIG. 3 Vista de uma da sala da 2.ª Exposição temporária da Doação Kamenezky no Museu Nacional de Arte Antiga. © Arquivo Fotográfico do Museu Nacional de Arte Antiga, Palma, 1977
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INÊS GASPAR SILVA Licenciada em História da Arte pela
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (2011) e mes‑ tre em Museologia e Museografia pela Faculdade de Belas‑ ‑Artes (2014), com a dissertação O Cubo Exibicionista. Tem colaborado com diversas instituições culturais na área da mediação cultural, inventariação e produção de exposições temporárias – Palácio Nacional de Queluz, Palácio Nacional da Ajuda, Fundação Calouste Gulbenkian, Museu Nacional de Arte Antiga, Galeria Millennium, Castelo de S. Jorge – entre outras. Atualmente é bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia, desenvolvendo um projeto de investigação no Museu Nacional de Arte Antiga, subordinado ao tema Catálogo
raisonné das exposições temporárias do MNAA.
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PEÇAS oferecidas ao museu pela Exma. Senhora D. Arnilda da Cruz Roque Penim Kamenezky, que faziam parte da colecção de seu marido o antiquário Eliezer Kamenezky : 22.ª expo‑ sição temporária. 1959. Lisboa: Museu Nacional de Arte Antiga
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Arquivos
AMNAA – Arquivo do Museu Nacional de Arte Antiga BNP – Biblioteca Nacional de Portugal (Espólio Eliezer
Kamenezky, BNP, Esp. N43)
[I.G.S.]
Dicionário Quem é Quem na Museologia Portuguesa KEIL, Luís Cristiano Cinatti