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À FORMULAÇÃO DA MAQUETA COMO SÍNTESE DO PROJECTO

No documento Para uma definição de maqueta (páginas 174-178)

IV O PROJECTO DE OBJECTOS ARQUITECTÓNICOS, A PARTIR DA MAQUETA

À FORMULAÇÃO DA MAQUETA COMO SÍNTESE DO PROJECTO

São mais exigentes e aprofundadas as propostas de Alberti acerca da maqueta. A maqueta deve proporcionar a avaliação da relação da obra com a sua envolvente – “[n]a feitura das maquetes deve-se ter em atenção e considerar, da melhor forma possível, o enquadramento no ambiente” Alberti, 2011: 188) –, a avaliação quer da configuração, quer das dimensões da obra – “a delimitação da área […], o número e a disposição das partes, a configuração dos muros, a solidez das coberturas e, finalmente, a ordenação e conformação de todos aqueles elementos de que tratámos no livro anterior” 192 (Alberti, 2011: 189) –, bem como a avaliação de todos os seus detalhes – “[e]fectivamente, ter-se-á uma noção mais clara e exacta da disposição e quantidade de colunas, capitéis, bases, cornijas, frontões, revestimentos, pavimentos, estátuas, e outros elementos do mesmo género que pertencem à estrutura ou à ornamentação do edifício” (Alberti, 2011: 189). A maqueta deve fixar o resultado do processo projectual, fixando a obra em toda a sua completude – “[d]eve, portanto, cada qual fazer maquetes deste género e examiná-las atentamente consigo mesmo e com várias pessoas, reexaminando-as uma e outra vez, a fim de que, na obra, não venha a existir um só pormenor, ainda que mínimo, acerca do qual não esteja definido o que é, como é, que lugar e extensão vai ocupar e a que usos se destina” (Alberti, 2011: 189-190). A maqueta deverá ainda permitir uma antecipação de custos – “será mais exacto o cálculo e a soma das despesas a fazer, pormenor que não se pode deixar de ter em conta, depois de ponderada a largura, a altura, a espessura, o número, o tamanho, a forma, o aspecto e a qualidade de cada um dos elementos, em função da sua importância e da mão-de-obra” (Alberti, 2011: 189) – bem como permitir também a previsão da construção – “e é necessário que, com a ajuda das próprias maquetes […], planeemos e preparemos não só o que se vai construir, mas também o que será usado durante a construção” (Alberti, 2011: 615). E é ainda na maqueta que o arquitecto deve confiar quando pretende ponderar a correcção das suas intenções

191 Tradução do autor. No original: “Thoenes suggests that Alberti’s position is actually consonant with – or

rather, a reversal of – his method of perspective construction as described in Della pittura. In doing this, Alberti also advises the preparation of separate sheets for the two” (Ackerman, 2002: 50).

ao longo do projecto – “aconselho repetidamente que, diante de modelos feitos à escala, antes de iniciares a obra, não só ponderes contigo mesmo, mas também consultes os peritos [...]. Gostaria que, a partir desses modelos, revisses duas, três, quatro, sete, dez vezes, ora interrompendo ora retomando, todas as partes da futura obra” (Alberti, 2011: 613) –, bem como quando procede ao ensaio da proposta em fases mais avançadas do projecto e a partir dos ensaios antes feitos com desenho –

“finalmente, ao faz[er] [os desenhos] à escala e em maquete […], sucedeu-me, às vezes, revendo cada um deles, que me apercebi de que me tinha enganado nas contas” (Alberti, 2011: 619). Por fim, é ainda por meio da maqueta que o arquitecto deve sistematizar a informação antes vertida no desenho ao investigar obras de referência – “fará um desenho, anotará as proporções [dessas obras], há-de querer, em sua casa, reduzi-las à escala e a maquetes” (Alberti, 2011: 617). A par da utilidade que teria para o desenvolvimento do projecto, a maqueta colocará ainda o arquitecto perante a dimensão ética que deveria orientar o seu trabalho, condição fundamental para a sua afirmação como praticante de uma arte liberal. A maqueta permitirá ao arquitecto ponderar e verificar quer a exequibilidade das suas propostas – “[q]uando estiveres para examinar as maquetes, entre as razões a considerar, deves ter presente o seguinte: em primeiro lugar não acometas nada que seja superior às forças humanas, nem empreendas coisa alguma que de imediato entre em conflito com a natureza” (Alberti, 2011: 191) –, quer a sua capacidade para as concretizar – “[e]m segundo lugar, é preciso acautelarmo-nos de assumir uma obra que não temos ânimo para levar até ao fim, deixando-a inacabada” (Alberti, 2011: 192).

Estas observações confirmam a preconização de um uso concertado do desenho e da maqueta, uso esse que deverá acompanhar o processo de projecto ao longo das suas diferentes fases. E confirmam também que esse uso concertado deverá contribuir para proporcionar ao arquitecto uma formação equiparável à formação de um letrado, ao auxiliá-lo no estudo de obras de referência. É contudo na maqueta, não no desenho, que é possível discernir com maior evidência a concretização do projecto conforme é formulado por Alberti. Sintomaticamente, as referências ao desenho tendem a surgir como enxertos apenas num raciocínio que tem na maqueta o seu protagonista. A enunciação da distinção entre o desenho do arquitecto e o desenho do pintor é desse carácter de enxerto o exemplo mais notório. Importa pois objectivar a importância da maqueta nas propostas de Alberti, retomando, para isso, a aparente omissão de um sistema de transmissão global de informação projectual, isto depois da ausência da definição, verificada por Tavares (2004b: 93), de sistemas de desenho técnico aptos a assegurar essa mesma transmissão.

De facto, como observa Tavares (2004b: 93), não se detecta nas propostas de Alberti a preconização de um sistema de desenho técnico suficientemente codificado capaz de fixar o projecto, entendido este como síntese definitiva do trabalho do arquitecto. A recíproca autonomia de plantas e de alçados que propõe confirma-o. Mas há que ponderar as razões dessa omissão. Eventualmente, a definição desse sistema poderá ter parecido a Alberti extrínseca ao propósito das suas reflexões, focado que estava na afirmação da arquitectura como uma disciplina intelectual e do arquitecto como um seu praticante. O carácter instrumental que a representação adquire no contexto dessa afirmação, ao surgir como meio de o arquitecto sustentar o desenvolvimento do seu pensamento, assim o justificaria. Mas há que considerar também a eventualidade de a definição de um sistema de desenho com essa capacidade se revelar desnecessária. E desnecessária porque Alberti avaliaria afinal como adequado um outro sistema. O desenho não permitiria assegurar a representação completa do projecto, mesmo que contribuísse para o seu desenvolvimento, mas a maqueta permitia-o. Tudo aquilo cuja representação Alberti lhe imputa – desde a relação que o objecto em projecto detém com a respectiva envolvente, passando pela sua configuração, até aos detalhes seus constituintes, como foi referido – confirma-o. É afinal a maqueta que permite sintetizar e fixar o projecto, como é ainda a maqueta, por deter essa capacidade, que permite reiterar e em simultâneo transpor o corte que Alberti estabelece entre delineamento e construção. Na maqueta, Alberti terá vislumbrado a possibilidade de concretizar as suas conceptualizações da arquitectura e do trabalho do arquitecto. “A concepção do projecto como resultado de uma ideia encerrada e, de algum modo, autónoma em relação à problemática e às ocorrências da construção, encontra no modelo arquitectónico uma importante cristalização” 193 (Sardo, 2004: 31). Mais do que um

esteio, o método de projecto preconizado por Alberti tem na maqueta o seu vértice. E não é apenas uma cristalização dessa concepção do projecto que está em causa; é afinal também a própria possibilidade de concretização da ideia que Alberti parece confiar à maqueta. “A ideia, tal como é formada na mente, era imperfeita e apenas poderia obter a sua forma consequente por meio de um exame, exercício de crítica, e de modificação da ideia por meio de desenhos. Além disso, os desenhos tinham de ser estudados, avaliados e melhorados por meio de modelos, chegando-se assim, por último, a uma corporização da ideia” 194 (Millon in Millon e Lampugnani, 1997: 22). As

193

Tradução do autor. No original: “La concezione del progetto como risultato di un’idea conclusa e in qualche modo autonoma rispetto alle problematiche ed agli accadimenti della costruzione, trova nel modello architettonico un’importante cristallizzazione” (Sardo, 2004: 31).

194

Tradução do autor. No original: “The idea, as formed in the mind, was imperfect and could only be given its consequent form through examination, exercise of judgment, and modification of the idea through drawings. Further, the drawings were to be studied, assessed, and improved through models, thereby approaching an embodiment of the idea” (Millon in Millon e Lampugnani, 1997: 22).

palavras de Alberti (2011: 619) – já referidas –, ao reconhecer os erros das ideias que frequentemente lhe ocorriam à mente e, em consequência, as suas necessária e progressiva clarificação por meio dos desenhos e, por fim, da maqueta confirmam a maqueta como instância na qual a ideia adquire a sua concretização.

Talvez se deva por isso ajustar a interpretação do desejo de Alberti de que fossem realizadas maquetas “despojadas e simples, não concluídas com esmero excessivo, polidas e luzidias” (Alberti, 2011: 189). Embora pareça reduzi-las a uma condição sobretudo esquemática, que teria no uso corrente da maqueta um exemplo – “[o]s modelos [de Brunelleschi e dos seus contemporâneos] não faziam mais do que dar uma ideia geral da aparência e da escala de um edifício, e pareciam carecer de detalhes” 195 (Ettlinger in Kostof, 2000: 109) –, importa reiterar a necessidade expressa por Alberti de que as maquetas comportassem também os pormenores do seu objecto (Alberti, 2011: 189). Sintomaticamente, Alberti formula aquele desejo acerca do modo de elaborar uma maqueta logo após enumerar todos esses pormenores. Não parece pois ser uma simplificação que Alberti advoga. Constituindo-se como a síntese do projecto, só permitindo apreciar a configuração da obra na sua completude a maqueta poderia constituir-se como a inequívoca evidência do delineamento. E o valor do delineamento deveria superar a vaidade daquele que o concebera. É a apreciação do delineamento que o excesso de ‘esmero’ ofuscaria, ludibriando a justa avaliação do projecto, em particular por quem o encomendara. Para Alberti, “[a] […] simplicidade [da maqueta] não resulta do não dito, como em Brunelleschi, mas é em simultâneo ontológica e deontológica” 196 (Scolari, 2012: 142). Daí a convicção de Alberti de que,

detendo a maqueta essa evidência, com o seu auxílio, ao se planear a obra, “tendo uma visão de conjunto de todo o plano, com uma espécie de explicação breve e circunspecta, seja suficiente tudo aquilo que é adequado e útil, uma vez procurado, reunido e preparado. É portanto destas coisas que o arquitecto deve tratar, usando a sua faculdade de planear e ajuizar” (Alberti, 2011: 615).

Deve então ser retomado o registo da ausência de sistemas de desenho técnico nas propostas de Alberti. Registar apenas a ausência desses sistemas – e esse é um registo recorrente que a observação de Tavares (2004b: 93) apenas reitera – parece afinal desencontrar, pelo menos em parte, o horizonte dessas propostas naquilo que à

195 Tradução do autor. No original: “Models did no more than give a general idea of the appearance and

scale of a building, and they seem to have lacked details” (Ettlinger in Kostof, 2000: 109).

196

Tradução do autor. No original: “Its simplicity is not a function of the unsaid, as in Brunelleschi, but is both ontological and deontological at the same time” (Scolari, 2012: 142).

relação entre projecto e representação concerne. Parece desencontrar esse horizonte, desde logo, porque registar essa ausência significa considerar que o projecto teria de contar com esse sistema, quando é o próprio Alberti que pretere o desenho como síntese do projecto. Mas parece desencontrar esse horizonte, também, porque, ao se registar essa ausência, se avalia as propostas e a prática de Alberti, bem como a prática dos seus contemporâneos, a partir de uma sistematização que o desenho só posteriormente viria a ter definida e difundida. “A utilização preferencial do desenho como instrumento de concepção e transmissão do projecto não seria iniciada até que Rafaello Sanzio modificasse o sistema projectual” 197 (Muñoz Cosme, 2008: 34), o que ocorreu já no século XVI. Só assim, tendo como referência essa prática posterior, poderão parecer menos seguras as práticas desses arquitectos. Porém, no seu tempo, essas eram práticas consolidadas e operativas. As arquitecturas então delineadas e construídas não parecem pôr em causa essa avaliação. A segurança de uma prática projectual resultará não da capacidade intrínseca de um sistema de representação, mas do hábito e, portanto, do controlo com que esse sistema é manipulado. Sob o registo da ausência de um sistema de desenho técnico capaz de assegurar a representação completa da obra projectada, parece afinal ter de ser verificada uma convicção, porventura pouco questionada, na hegemonia do desenho na invenção do arquitecto. De facto, e retomando os arquitectos referidos por Tavares (2004b: 93), é difícil encontrar em Filarete, Martini e Leonardo um sistema ‘global, coerente e eficaz’ de representação desenhada de objectos arquitectónicos. E essa é uma dificuldade que se torna mais evidente estando em causa, como acontece nos dois primeiros, a ilustração de teorizações escritas. Contudo, é significativo que Filarete, mesmo sem descurar o desenho, confira à maqueta a síntese do projecto (Filarete 1972, tom. I: 40) – será ainda observado –, como o fizera Alberti cujo trabalho admirava (Filarete 1972, tom. I: 10), e que Martini (1964), embora a não refira, tenha feito maquetas de alguns dos seus projectos (Millon in Millon e Lampugnani, 1997: 32). E são afinal maquetas que os desenhos de Martini (img. 5; 179) e de Leonardo (img. 6; 179) sugerem ter tido como base (Scolari, 2012: 146), ao surgirem como vistas tomadas de um ponto superior.

No documento Para uma definição de maqueta (páginas 174-178)