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A MAQUETA COMO SISTEMA DE REPRESENTAÇÃO PROJECTUAL

No documento Para uma definição de maqueta (páginas 168-172)

IV O PROJECTO DE OBJECTOS ARQUITECTÓNICOS, A PARTIR DA MAQUETA

A MAQUETA COMO SISTEMA DE REPRESENTAÇÃO PROJECTUAL

Na Europa setentrional, pelo menos a partir do século XIII, a prática projectual teve no desenho o seu meio de representação. A adopção da maqueta foi aí residual, se não mesmo nula – “[f]alar do modelo arquitectónico na região do nascimento e da primeira emergência da arquitectura gótica é falar de uma quimera: modelos arquitectónicos desse período e dessa região são desconhecidos não porque infelizmente se tenham perdido, mas porque nunca existiram” 181 (Klein in S. Frommel, 2015: 37). As múltiplas representações escultóricas de elementos arquitectónicos então correntes revelam a capacidade de elaborar reproduções tridimensionais reduzidas desses elementos, mas não a efectiva adopção de maquetas no processo de projecto (Klein in S. Frommel, 2015: 37). Foi distinta a realidade em Itália. Embora assentasse também no desenho, a presença da maqueta na prática projectual aí desenvolvida é verificável pelo menos desde o século XIII, como observa Gentil Baldrich (1998: 30) ao percorrer as ‘Vite’ de Vasari. Aos exemplos do século XIII e, sobretudo, do século XIV que Vasari refere, há que adicionar diversos outros que ignora em virtude do seu desapreço pelas obras góticas, como foram o caso, por exemplo, das maquetas elaboradas para a construção da Catedral de Milão (Gentil Baldrich, 1998: 32). Este uso corrente da maqueta em Itália a partir sobretudo do século XIV é confirmado, entre outros, por Pacciani (in Gregotti, 1987: 9), por Millon (in Millon e Lampugnani, 1997: 19), por Sardo (2004: 28) e por C. Frommel (in S. Frommel, 2015: 55). Não são claras as razões que terão desencadeado esta apetência – ou aquele alheamento, no caso transalpino – pela maqueta, isto reiterando que mesmo antes do século XIII o projecto necessariamente contava com meios de antecipação. Mas é aceitável considerar para Itália, como o faz Gentil Baldrich (1998: 30), uma persistência de uma tradição de representações tridimensionais de arquitectura. Foi manifesta a sua importância na cultura etrusca,

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Tradução do autor. No original: “Parlare del modello architettonico della nascita e della prima emergenza dell’architettura gotica è parlare di una chimera: modelli architettonici di questo periodo e di questa regione sono ignoti non perché siano andati sfortunadamente perduti, ma perché non sono mai esistiti” (Klein in S. Frommel, 2015: 37).

reflexo da importância que tiveram nas culturas mediterrânicas (Azara, 1997; Úbeda Blanco, 2005). Embora lhes seja atribuído um valor votivo, e mesmo que não tivessem sido elaboradas como representação de edifícios concretos, nada impediria que essas representações pudessem vir a ser interpretadas depois como representações de eventuais edifícios a construir.

Esta permanência da maqueta não deixaria de marcar a prática projectual no início do século XV, verificando-se até, a partir de então, uma intensificação do seu uso. “Desde o despontar da Renascença, a maqueta constituiu um instrumento indispensável para o aperfeiçoamento do projecto arquitectónico e assumiu um papel fundamental nos estaleiros, onde lhe foi conferido um valor jurídico. Essa prática, em vigor desde a primeira metade do trecento, foi sendo continuamente aperfeiçoada e diversificada” 182 (S. Frommel, in S. Frommel, 2015 : 75). Foi este o quadro de práticas de projecto onde Brunelleschi necessariamente se inseriu e ao qual naturalmente deu continuidade. É certo que a sua experiência como ourives e como escultor o familiarizara com o uso de modelos e portanto com a representação tridimensional de vocabulário arquitectónico adoptado nessas artes, mas o uso de maquetas enquanto arquitecto não parece poder ser apenas aí assacada. Embora as suas propostas, desde logo e em particular para Santa Maria del Fiore, rompessem com as tradições construtivas medievais, era afinal com operários formados nessas tradições e com os sistemas de representação aí correntes que Brunelleschi operava. A continuidade na adopção desses sistemas, por serem já conhecidos, constituiria até o modo de assegurar a comunicação com os patrocinadores da obra e com o estaleiro, sobretudo quando mais se revelava radical a inovação das suas propostas, como acontecia com o fecho da cúpula de Florença. E foi ampla a utilização da maqueta por Brunelleschi 183. Nenhum arquitecto anterior –

182

Tradução do autor. No original: “Dès l’aube de la Renaissance, la maquette forma un instrument indispensable pour la mise au point di projet architectural et assuma un rôle fondamental sur les chantiers, où une valeur juridique lui était conférée. Cette pratique, en vigueur depuis la première moitié du trecento, s’était continuellement perfectionnée et diversifiée” (S. Frommel in S. Frommel, 2015: 75).

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De Brunelleschi, são sobretudo referidas as maquetas para a cúpula de Santa Maria del Fiore. Além das duas ainda existentes, embora devam tratar-se, pelo menos em parte, de cópias posteriores (Teodoro in Frommel, 2015: 65-74), como foi já notado, foram realizadas diversas outras, a várias escalas e de várias dimensões, incluindo algumas em tijolo, em madeira, em cera e esculpidas em nabos, por meio das quais Brunelleschi transmitia aos operários alguns pormenores da obra (Vasari, 1568, vol. I: 318). Mas a maqueta perpassou a globalidade da prática projectual de Brunelleschi. Vasari refere sucessivamente as suas maquetas da Capela Pazzi, adjacente à Basílica de Santa Croce, do Palácio Busini e do Hospital degli Innocenti, incluindo a respectiva loggia, todos em Florença, de uma fortaleza para Fillipo Visconti (1392-1447), Duque de Milão, da Abadia dos Canonici Regolari di Sant’Agostino, em Fiesole, da Fortaleza de Vicopisano (1569, vol. I: 318); da Fortaleza do Porto de Pesaro (1568, vol. I: 319); do presbitério dos padres de San Lorenzo e do palácio para Cosimo di’ Medici, il vecchio (1389-1464), da Capela Scolari, adjacente ao Mosteiro de Santa Maria degli Angeli, todos em Florença (1568, vol. I: 320); e da Basílica de Santo Spirito, ainda em Florença, incluindo a habitação dos monges (1568, vol. I: 324). Além das duas maquetas referidas no início, nenhuma destas outras maquetas existirá já.

não parece haver disso registo – fizera a uma utilização tão ampla e tão diversificada dessa representação.

O relevo da maqueta nesse período não é contudo avaliado de modo homogéneo. Em particular, é posta em causa a sua utilidade para a construção. Importa compreender a validade dos argumentos que são para isso aduzidos. Embora reconheça a adopção de uns e de outros, Saalman entende que “[a] principal característica dos desenhos e dos modelos é esta: a sua função primordial não era na construção, mas a persuadir os patronos a construir” 184 (Saalman, 1959: 103). Na base das suas dúvidas, está o

facto de, ao contrário dos actuais desenhos de comunicação à obra – a comparação é de Saalman –, os desenhos e as maquetas contemporâneos de Brunelleschi não deterem informação dimensional e não fixarem a totalidade do projecto, apresentando apenas uma sua configuração genérica. Seguindo a tradição medieval, o processo construtivo continuava em larga medida a assentar na manipulação de uma fórmula geométrica em função da qual era depois deduzida a totalidade da configuração da obra. E uma planta, mesmo que apenas esquemática, revelava-se para isso suficiente. “Esta é, portanto, a relação do modelo com a execução [da cúpula de Santa Maria del Fiore,] [u]ma das últimas grandes obras medievais: a forma geral era mostrada pelo modelo, a dimensão global e a curvatura da cúpula eram fixadas pela fórmula quinto

acuto, relacionada com o octógono [do tambor] já existente; os elementos principais

eram brevemente descritos e as tarefas iniciais definidas numa especificação escrita. A partir daí, tudo o que era ainda incerteza e escuridão deveria ser iluminado por “la

praticha””185 (Saalman, 1959: 105).

Considerando que o projecto se desenvolvia então à medida que a obra avançava, é compreensível que a informação presente numa maqueta pudesse ser genérica, mas aquilo que deve ser observado, precisamente por causa de o projecto ser assim desenvolvido, deve ser não o facto de a maqueta apresentar apenas essa informação, mas o facto, antes, de ser na maqueta que se proporcionava uma apresentação global da informação conhecida. E essa era uma capacidade relevante não apenas para a

184

Tradução do autor. No original: “The main feature of the drawings and models is this: their primary function was not in building, but in persuading the patrons to build” (Saalman, 1959: 103).

185

Tradução do autor. No original: “This, then, is the relationship of model to execution in one of the Great late medieval constructions: the general form was shown by the model, the over-all dimension and the curve of the cupola was fixed by the formula quinto acuto, related to the already existing octagon; the main elements were briefly described and the initial tasks defined in a written specification. Thereafter all was as yet uncertainty and darkness, to be lighted by “la praticha”” (Saalman, 1959: 103).

De acordo com a fórmula quinto acuto, o raio de curvatura das superfícies cilíndricas da cúpula teria a dimensão de 4/5 do diâmetro da circunferência inscrita no tambor octogonal que lhe servia de base (Scolari, 2012: 196).

persuasão dos patronos, mas também para a construção. As relações geométricas com base nas quais se estabelecia a configuração da obra encontravam na concisão da maqueta a sua evidência. É assim que pode ser compreendido o modo como Brunelleschi concebia as suas maquetas, mesmo que se aceite que se preocupava também com o secretismo das suas propostas. “De um modo claro, os modelos de Brunelleschi serviam um propósito básico: indicavam a disposição das partes como um todo e a sua estrutura, mas davam muito pouca ideia da totalidade do projecto, de modo a que “o autor do modelo não fosse capaz de entender todos os seus segredos”. Instruções importantes eram dadas pessoalmente, por palavra de boca, deixando assim uma ampla margem de liberdade para a alteração daquilo que ainda não tinha sido dito” 186 (Scolari, 2012: 140). E nem sempre as suas maquetas tinham essa estrita

concisão, como o confirma, por exemplo, uma detalhada maqueta, referida por Vasari

(1568, vol. I: 317) e entretanto já perdida, com elementos destacáveis realizada para explicar a configuração das escadas de acesso ao lanternim de Santa Maria del Fiore. Independentemente da sua importância para persuadir os patronos, é pois necessário reconhecer que “os modelos também serviam os construtores quando chegava a execução de um edifício. Aqui, como em tantas outras coisas, o Renascimento continuou um uso medieval e mesmo anterior” 187 (Ettlinger in Kostof, 2000: 109).

Assim, avaliar a importância da maqueta a partir da importância e da sistematização hoje tida pelos desenhos de comunicação à obra – e essa é a base das observações de Saalman (1959) – e concluir, desse modo, que essa importância se manifestava não no processo construtivo, mas sobretudo na persuasão dos patronos, significa exigir à maqueta um grau de definição que o projecto medieval não comportava, como não viria a comportar também nas fases iniciais do Renascimento. Mas não só. Ao concluir-se que era essa a importância dos desenhos e das maquetas, insiste-se afinal na noção de que o projecto medieval, ao se resolver com o recurso a fórmulas de geometria decantadas pela tradição, dispensaria outras representações que não as solicitadas ao longo da obra. O projecto medieval, aceitando essa noção, não exigiria representações anteriores à construção. E esta é uma noção que, tendo em conta a complexidade de algumas das suas realizações, dificilmente parece ser sustentável.

186 Tradução do autor. No original: “Clearly, Brunelleschi’s models served a very basic purpose: they

indicated the layout of the parts as a whole and their structure, but gave very little idea of the overall design, so that “the model maker was unable to understand all of its secrets”. Important instructions were given in person, by word of mouth, thus leaving a wide margin of freedom for alterations to what had not been said” (Scolari, 2012: 140).

Scolari cita Antonio Manetti, biógrafo de Brunelleschi, ao referir que Brunelleschi pretendia que o autor da maqueta não conhecesse os segredos da obra.

187

Tradução do autor. No original: “models also served the builders when it came to the execution of a building. Here, as in so much else, the Renaissance continued a medieval and even earlier usage” (Ettlinger in Kostof, 2000: 109).

No documento Para uma definição de maqueta (páginas 168-172)