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O PROBLEMA DA NÃO ARBITRARIEDADE DOS SIGNOS ICÓNICOS

No documento Para uma definição de maqueta (páginas 98-101)

II DA MAQUETA COMO REPRESENTAÇÃO

O PROBLEMA DA NÃO ARBITRARIEDADE DOS SIGNOS ICÓNICOS

Deve por fim ser averiguada a suspeita de que a arbitrariedade permeará a relação que os signos ditos icónicos estabelecem com os respectivos objectos. Essa suspeita surgiu – recorde-se – a partir das reflexões de Goodman (1976: 5), que, a propósito da suposta pintura de Constable do Castelo de Marlborough, dissocia, precisamente, ‘representação’ de ‘semelhança’. A suspeita voltou a ser considerada – recorde-se também – ao precisar-se que o esclarecimento do significado da condição icónica da maqueta teria de passar já não pela averiguação daquilo que esta poderia partilhar com o seu objecto, mas pela averiguação antes do modo como são estabelecidas determinadas correspondências entre ambos, interpretadas depois como partilhas de propriedades. Tal como aquando da formulação dessa suspeita, a arbitrariedade volta aqui a ser entendida não como resultado de um gesto discricionário do sujeito, ainda que a compreensão de qualquer representação seja por ele e nele estabelecida, mas como consequência do facto de os signos ditos icónicos não deterem uma relação ‘natural’ com o seu objecto.

A arbitrariedade, com o significado agora considerado, foi identificada por Saussure (1978)como uma das características distintivas dos signos linguísticos – “[o] laço que une o significante ao significado é arbitrário, ou melhor, uma vez que entendemos por signo o total resultante da associação dum significante a um significado: o signo

linguístico é arbitrário. Assim, a ideia de «pé» não está ligada por nenhuma relação à

cadeia de sons [p] + [ε] que lhe serve de significante; podia ser tão bem representada por qualquer outra” (Saussure, 1978: 124). Sobre o significado da palavra ‘arbitrário’, Saussure esclarece: “[e]la não deve dar a ideia de que o significante depende da livre escolha do sujeito falante [...]; queremos dizer que ele é imotivado, isto é, arbitrário em relação ao significado, com o qual não tem, na realidade, qualquer ligação natural” (Saussure, 1978: 126). Só as onomatopeias contraditam essa arbitrariedade, ainda que mesmo nesses casos a imitação de sons seja igualmente convencionada, pelo

106 Tradução do autor. No original: “Once an architectural convention is established, it maintains an

menos parcialmente, como o comprovam as suas diversas formulações em línguas diversas (Saussure, 1978: 127). A outra característica distintiva dos signos linguísticos identificada por Saussure é a linearidade – “[o] significante, porque é de natureza auditiva, desenvolve-se no tempo e ao tempo vai buscar as suas características: a)

representa uma extensão, e b) essa extensão é mensurável numa só dimensão; é

uma linha” (Saussure, 1978: 128). Assim considerada, a noção de ‘arbitrariedade’ seria excluída da representação icónica já que esta assentava ou numa semelhança com, ou na posse de propriedades do seu objecto, isto é, na não arbitrariedade que advinha de uma aparente continuidade que estabelecia com esse objecto. Mesmo Eco, que refuta a existência de signos “’motivados por’, ‘semelhantes a’, ‘análogos a’, ‘naturalmente ligados’ ao seu objecto” (Eco, 2005: 169) quando reconhece a natureza convencionada de qualquer signo, é prudente quanto à eventualidade de considerar como arbitrária a relação que os signos ditos icónicos mantêm com os seus objectos – “pode-se admitir que os signos ditos icônicos são CULTURALMENTE CODIFICADOS sem necessariamente implicar que são ARBITRARIAMENTE CORRELATOS ao seu conteúdo” (Eco, 2005: 170). A discussão da arbitrariedade dos signos icónicos agora identificada não significa contudo que se pretenda sustentar uma sua equiparação aos signos linguísticos, ensaiando uma reaproximação ao modelo da ‘dupla articulação’ da linguagem ou a outro análogo – parece já claro que uns e outros são constituídos de modos distintos. O reconhecimento dessa arbitrariedade significa antes uma renovada oportunidade de perspectivar esses signos, em particular a maqueta, além do espectro da noção de ‘semelhança’ que sobre eles parece ainda permanecer – não denotará, afinal, o não reconhecimento da arbitrariedade dos signos icónicos uma assunção, ainda que involuntária, do seu carácter ‘motivado por’ ou ‘naturalmente ligado’ ao seu objecto?

A compreensão do juízo da arbitrariedade ou da não arbitrariedade de um dado signo, tal como a compreensão de qualquer outro juízo, remete para os critérios que subjazem à sua formulação – se a ‘arbitrariedade’ qualifica a relação entre um objecto e uma sua representação, então essa qualificação implicará uma referência, isto é, um critério. Uma qualificação é uma avaliação. E essa é, como será possível verificar a partir de Janeiro (2010), uma questão determinante para compreender por que razão os signos icónicos tendem a ser considerados não arbitrários. É preciso retomar quer o facto de os objectos serem para o sujeito uma imagem, isto é, uma formulação

significativa, quer a distinção que sempre existirá entre os objectos e as suas

representações – entre as imagens de ambos, portanto –, pois está em causa o modo como essa distinção é superada. Aparentemente, por não existir a priori uma ligação

entre ambos, a relação de substituição que as palavras estabelecem com os seus objectos é arbitrária; com as representações ditas icónicas, embora se reconheça o seu carácter convencionado, já não será assim. “Porém, somente podemos falar aqui em arbitrariedade porque a análise comparativa das palavras e das imagens que elas suscitam é realizada mediante um critério baseado na semelhança visual entre elas – só assim podemos dizer, com confiança, que a relação entre uma palavra e a coisa

que essa palavra substitui é arbitrária, se compráramos, portanto, sob o ponto de vista

da semelhança, a palavra e aquilo que essa palavra representa” (Janeiro, 2010: 222). De facto, será a presença, mesmo que tácita, de um critério de semelhança visual que permitirá pensar que uma representação – um desenho, uma fotografia ou uma maqueta – não está arbitrariamente ligada ao seu objecto, ao contrário de uma sua nomeação – oral ou escrita – que com ele se relacionará com base em convenções arbitrárias, tal como será ainda a presença de um critério de semelhança auditivo que permitirá reconhecer algumas dessas nomeações – as onomatopeias – como detendo também uma ligação não arbitrária aos objectos que referem. Assim, embora se reconheça que a dimensão representacional de um objecto assenta num sistema de códigos, os códigos considerados “serão os da iconicidade, baseados na pretensa semelhança, que evoca as propriedades do fenómeno, ou seja, para explicar a iconicidade evoca-se a iconicidade” (Janeiro, 2010: 225). Contudo – foi já observado, sobretudo a partir de Gombrich (1995), mas também a partir de Arnheim (1994) –, a semelhança é sempre uma elaboração cultural. O reconhecimento da semelhança é, nesse sentido, viabilizado por um sistema de códigos e não algo que se processa independentemente desse sistema – “quem estabelece essa relação de iconicidade é o código e não a Natureza, qualquer que seja o significado que se dê a este nome” (Janeiro, 2010: 316). E se se toma a representação como manifestamente semelhante ao seu objecto é porque, ao substituí-lo, se tomam como sendo daquela alguns dos conteúdos atribuídos a este, como se a percepção daquela fosse igual à percepção deste, num processo de aparente coincidência cuja artificialidade, no quotidiano, acaba por se tornar imperceptível.

Mas essa artificialidade deve ser desvelada. “Ainda uma vez, o critério de similaridade se baseia em REGRAS precisas que tornam pertinentes certos aspectos, relegando outros à irrelevância. Porém, uma vez que a regra foi aceita, julga-se certa uma motivação que ligue entre si dois lados equivalentes [de duas figuras geométricas], já que sua semelhança não está baseada numa relação puramente arbitrária; mas, para tornar a motivação aceitável, era necessária uma regra” (Eco, 2005: 173) – estas observações são feitas no contexto da crítica ao iconismo, quando Eco verifica que

também a noção geométrica de ‘semelhança’ é convencionada; não é em relação ao reconhecimento da ‘semelhança’ que Eco manifesta prudência sobre a arbitrariedade. Aceitando o jogo de semelhanças que a iconicidade insinua, parece de facto fazer sentido ajuizar como não arbitrária a representação icónica. Porém, porque é de um jogo que de facto se trata, o fundamento das suas regras – isto é, a não arbitrariedade dos seus critérios – não pode ser entendido a não ser como circunstancial. Se, antes, a partir de Janeiro (2010: 225), se verificou que para se explicar a iconicidade se recorria à iconicidade, agora, a partir de Eco (2005: 173), confirma-se que para sustentar a não arbitrariedade da semelhança se ignora a arbitrariedade que subjaz à instituição da regra que permite reconhecê-la – arbitrariedade no sentido que tem vindo a ser considerado, isto é, como qualidade daquilo que não é nem ‘natural’, nem ‘motivado por’. Os sistemas de códigos que permitem atribuir significados às coisas não são intrínsecos às coisas. São modos de as ordenar, adquirindo as coisas nessa ordem, e apenas aí, os seus significados. Esses sistemas são elaborações arbitrárias. Só uma convenção permitirá relacionar entre si objectos distintos. A aceitabilidade de uma regra não deve escamotear a arbitrariedade da sua instituição.

O juízo da arbitrariedade ou da não arbitrariedade de um dado signo pressupõe pois um critério – em função de um critério de semelhança visual, os signos linguísticos parecem ser na sua maioria arbitrários e os signos ditos icónicos não arbitrários. Mas se assim é, um hipotético ajustamento de critérios conduziria a outros resultados. No caso das onomatopeias isso é claro: a sua arbitrariedade será ou não sublinhada se se considerar, respectivamente, ou um critério de semelhança visual em relação às suas nomeações escritas, ou um critério de semelhança auditiva em relação às suas nomeações orais. Aparentemente, o conteúdo de umas e de outras não é alterado. Mas se a arbitrariedade de um signo resulta de um critério circunstancial – mesmo que tácita, a presença desse critério não deixa de ser circunstancial –, em que medida é aceitável afirmar como intrínsecas a arbitrariedade dos signos linguísticos e a não arbitrariedade dos signos ditos icónicos? Além disso, que pertinência terá avaliar a relação que as palavras estabelecem com os objectos adoptando um critério de semelhança visual? Comportarão sempre esses objectos uma existência visual? E, comportando, poderá o seu entendimento ser reduzido a essa dimensão? A anterior discussão acerca da abstracção parece pôr em causa essa possibilidade.

No documento Para uma definição de maqueta (páginas 98-101)