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O ESTATUTO DA ‘REALIDADE’

No documento Para uma definição de maqueta (páginas 60-63)

II DA MAQUETA COMO REPRESENTAÇÃO

O ESTATUTO DA ‘REALIDADE’

Deve agora ser retomado o significado primeiro de ‘representar’ (Ferreira, 1983: 594). A partir desse significado, discernir a dimensão representacional de um modelo físico implicará discernir como é que um objecto – o modelo físico – torna presente outro objecto – o alvo desse modelo. Numa representação, faz-se sempre relacionar dois objectos, mesmo que o objecto da representação nunca venha a ser concretizado, quer porque não possa, quer porque não se pretenda. Assim acontece, por exemplo, com algumas utopias arquitectónicas.

Enquanto objectos, o modelo e o seu alvo poderão ser genericamente considerados como “aquilo que o sujeito distingue de si próprio, [...] quando, este, imerso no seu

mundo, os significa – os objectos, desde este prisma, são formulações significativas”

(Janeiro, 2010: 15-16). O reconhecimento de um modelo físico como um dos objectos assim definidos parece claro, mesmo que não seja ainda suficiente para esclarecer o modo como se garante a sua significação. Contudo, o mesmo parece não suceder já com o potencial alvo desse modelo – não está em causa o facto de se distinguir do sujeito que pretende compreendê-lo; está em causa, antes, o facto de se considerar que é por ele significado. A compreensão das relações de representação deverá, pois, passar pela observação tanto do objecto que representa, quanto do objecto que é representado. E essas são observações que implicam, por sua vez, a observação do papel que o sujeito terá nessas relações. Sem o sujeito, a representação não terá sequer sentido; não poderá sequer ser constituída.

A discussão deve temporariamente centrar-se no alvo de um modelo. Se o alvo de um modelo é constituído porque e na medida em que o sujeito o significa, então esse alvo

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Tradução do autor. No original: “almost anything may stand for almost anything else” (Goodman, 1978: 5).

não deverá deter significação própria, isto é, não deverá deter uma significação autónoma e, por isso, independente daquela com que o sujeito o significa, cada vez que o significa. A estruturação à qual qualquer entidade terá sempre de ser submetida quando é representada parece implicar uma dependência desta natureza. Mas essa estruturação será, pode ser contra argumentado, uma contingência do processo de representação, que decorre da necessidade de resolver a compacticidade do seu alvo. “Na maioria dos casos, enfrentamos uma ‘entidade compacta’ e temos de ‘cortá-la em pedaços’, de talhá-la, antes de as estruturas poderem ser discutidas” 55 (Frigg, 2002: 30). Em si, o alvo de um modelo não se esgotará numa significação; as significações apenas o adequam às exigências de uma determinada inquirição. Aliás, se assim não fosse, se cada significação não fosse apenas circunstancial e, portanto, distinta de uma constituição intrínseca do seu alvo, esse alvo não poderia porventura sustentar diversas outras significações, tantas quantas as exigidas pelas diferentes inquirições às quais for submetido. Afinal, “cada objecto é, para fins de representação, múltiplos objectos diferentes” (Massironi, 1989: 81). A dificuldade de tomar o alvo de um modelo como um objecto nos termos agora considerados acentua-se se se lhe conferir a amplitude e a complexidade da ‘realidade’, consistindo esta – foi já referido – “nos objectos ou sistemas que existem, tenham existido ou podem existir” (Echenique, 1975: 164). A compreensão da realidade poderá requerer esforço, ser sucessivamente revista e, portanto, tomada como sempre incompleta, mas isso não parece pôr em causa a noção de que permanecerá num plano outro que não o dessas contingências. Só permanecendo nesse plano outro, dotada de uma inteireza e de uma ordem própria que transcenderão a subjectividade e a parcialidade de uma significação, a realidade poderá constituir-se como o limite para o qual deverá tender a sua compreensão. Contudo, independentemente da contra argumentação agora apontada, a questão fica: poderá a realidade, tal como os objectos, ser uma formulação significativa?

A permanência desta questão suscita uma ponderação mais precisa daquilo que está implicado na anterior noção de ‘objecto’ quando estendida à realidade. Tomar a realidade como uma formulação significativa não invalida nem a possibilidade de serem sustentadas múltiplas significações, nem a de a sua sustentação se alicerçar numa existência prévia, mais ampla e mais complexa; sublinha, antes, a necessidade de se considerar que essa existência, antes ainda de uma qualquer sua subsequente representação – de um modelo físico, por exemplo –, não poderá ser compreendida a não ser como uma formulação significativa. É a própria constituição da realidade que

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Tradução do autor. No original: “In most cases we face a ‘compact entity’ and we have to ‘cut it up’, to carve it, before structures can be discussed” (Frigg, 2002: 30).

está em causa. A questão anterior deve, por isso, ser ajustada – não se trata já de apenas identificar uma possibilidade; trata-se, antes, de testá-la e de discernir as suas consequências. Assim, como é que a realidade, a entidade a partir da qual e em função da qual as representações serão elaboradas e avaliadas, é, em si mesma, uma

formulação significativa?

A dificuldade de assim compreender a realidade fica clara na origem e no alcance da noção de ‘concepção física’ proposta por Frigg (2002: 24). A concepção física permite – recorde-se – articular a estrutura integrante de um modelo conceptual com o objecto que este representa, resolvendo, em simultâneo, a incapacidade representacional daquela e a indefinição estrutural deste. Por isso é tomada como “uma parte essencial de qualquer explicação praticável da representação” 56 (Frigg, 2002: 28). De facto, a concepção física permite trazer a realidade para o jogo da representação, que assim é viabilizado. Contudo, fora desse jogo, a noção não é considerada. O estatuto conferido à realidade parece não o requerer – a realidade será considerada como detendo uma existência própria, pelo que a sua constituição será mais profunda e, portanto, alheia e anterior à representação.

Sob as argumentações agora aduzidas, detectam-se entendimentos opostos acerca daquilo que será a natureza dos objectos, aos quais não serão alheios, por sua vez, os entendimentos da relação que se estabelece entre o sujeito e esses objectos. Será nessa relação que afinal se radica o conhecimento. “O problema da essência do conhecimento remete para a interrogação, que se coloca na relação entre o sujeito e o objecto, de se é o sujeito que é determinado pelo objecto, quando o objecto se deixa conhecer, já que o sujeito age de um modo receptivo e passivamente em relação ao objecto, ou se pelo contrário é o sujeito que determina o objecto, ao conhecê-lo, já que o sujeito age de uma forma activa e a priori. Para que esta distinção, quanto à essência do conhecimento, se possa dar, torna-se necessário que se considere [...] qual a essência própria, i.e., a ontologia, do objecto que se conhece através do conhecimento” (Lameiro, 1994: 87-88). Fundamentalmente, são identificadas duas posições: por um lado, o realismo, que “prescreve uma relação entre o sujeito e o objecto em que predomina a ideia de imposição do objecto ao sujeito” (Lameiro, 1994: 89); por outro lado, o idealismo, que prescreve uma relação de sentido oposto (Lameiro, 1994: 89). Embora antagónicas, a conciliação destas posições permitirá entender o objecto, “por um lado, como realidade exterior e posterior ao sujeito –

56 Tradução do autor. No original: “an essential part of a workable account of representation” (Frigg, 2002: 28).

observável, singular e diferenciada –, passível de ser conhecida, e, por outro lado, como conceptualização interior e anterior – pensável, universal e indiferenciada – passível de ser interpretante” (Lameiro, 1994: 95).

Fica contudo por identificar como se dá o encontro entre o sujeito e o objecto, isto é: como é que o objecto se torna presente ao sujeito.

No documento Para uma definição de maqueta (páginas 60-63)