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A ARBITRARIEDADE DA REPRESENTAÇÃO, A PARTIR DE GOODMAN

No documento Para uma definição de maqueta (páginas 101-108)

II DA MAQUETA COMO REPRESENTAÇÃO

A ARBITRARIEDADE DA REPRESENTAÇÃO, A PARTIR DE GOODMAN

A perspectiva de Goodman (1976) acerca da distinção entre uma descrição e uma representação é outra, pois é outra a sua perspectiva acerca daquilo que distingue os

diversos sistemas de significação. Radica-se aí o seu entendimento da arbitrariedade. Tendo na origem a suspeita – já referida – de que “quase tudo pode representar qualquer outra coisa” (Goodman, 1976: 5), Goodman irá averiguar sistemas de símbolos e não já tipos de símbolos – ‘símbolo’ tem para Goodman, recorde-se, um significado lato. Assim, considerando que “[q]ualquer esquema de símbolos consiste em caracteres, usualmente com modos de os combinar para formarem outros” 107 (Goodman, 1976: 131), um sistema de símbolos consiste por sua vez “[n]um esquema de símbolos correlacionado com um campo de referência” 108 (Goodman, 1976: 143). Cada carácter compreende todas as marcas – auditivas, visuais, etc. – que lhe correspondem. Uma letra do alfabeto latino, por exemplo, compreende todas as suas expressões orais e todas as suas inscrições gráficas. Os esquemas de símbolos são organizados a partir de regras sintácticas; os sistemas de símbolos a partir de regras semânticas.

Goodman irá distinguir os diversos sistemas de símbolos a partir das condições que garantem a existência dos sistemas de notação, por entender tratarem-se daqueles onde a correlação entre esquemas de símbolos e campos de referência é mais rígida. Uma partitura musical clássica constitui um sistema de notação – “[n]ão só uma partitura tem de determinar de modo exclusivo a classe de actuações pertencentes à obra, mas a partitura (enquanto classe de cópias ou de inscrições que assim definem a obra) tem de ser determinada em exclusivo considerados uma actuação e um sistema de notação” 109 (Goodman, 1976: 129-130). Assim, um esquema de notação é marcado pela ‘indiferença do carácter’ [character-indifference] e cada carácter tem de ser ‘finitamente diferenciável’ [finitely differentiable] ou articulado [articulated] – o alfabeto latino constitui um exemplo de um esquema de notação: enquanto caracteres, as letras são indiferentes às variações das suas marcas, já que as formas gráficas ‘A’, ‘a’ ou ‘a’, por exemplo, não comprometem o reconhecimento do carácter ‘a’, não são confundidas com a letra ‘b’ por exemplo, sendo assim possível diferenciar que marcas se articulam com que caracteres. Caso entre quaisquer dois caracteres possa existir um terceiro, o esquema será denso [dense] – uma gradação cromática contínua, por

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Tradução do autor. No original: “Any symbol scheme consist of characters, usually with modes of combining them to form others” (Goodman, 1976: 131).

108 Tradução do autor. No original: “a symbol scheme correlated with a field of reference” (Goodman, 1976: 143).

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Tradução do autor. No no original: “Not only must a score uniquely determine the class of performances belonging to the work, but the score (as a class of copies or inscriptions that so define the work) must be uniquely determined, given a performance and the notational system” (Goodman, 1978: 129-130).

exemplo, constituirá um esquema denso, pois existirá sempre um tom entre outros dois. Estando assim definido um esquema de notação, um sistema de notação terá de ser ‘não-ambíguo’ [unambiguous], ‘disjunto’ [disjoint] e ter uma ‘diferenciação finita’ [finite differentiation] – isto é, cada carácter pode apenas estar conforme com uma classe de elementos do campo de referência, as classes de conformidade [compliance

classes] assim estabelecidas não podem sobrepor-se, nem mesmo parcialmente, e

tem sempre de ser possível precisar que símbolo está conforme com que elemento de um campo de referência. Caso, numa gama contínua de caracteres, não seja possível confirmar que um elemento do campo de referência não está conforme com nenhum deles, o sistema em causa será semanticamente denso – uma régua, por exemplo, constituirá um sistema em parte denso se a sua unidade mínima de medição for superior à unidade mínima que se pretende medir, já que o valor exacto de algumas medidas não poderá assim ser confirmado; o problema desaparecerá se ambas as unidades mínimas coincidirem, voltando o sistema a ser finitamente diferenciado. A diferenciação ou a densidade de um esquema de símbolos não implica contudo que o sistema de símbolos que o integra seja necessariamente ou diferenciado ou denso. As linguagens verbais, por exemplo, sendo embora sintacticamente diferenciadas, são contudo semanticamente densas, já que as respectivas classes de conformidade podem ser ambíguas – a poesia, na pluralidade da sua significação, comprova-o. E nem todos os sistemas de símbolos assentam em esquemas diferenciados, advindo daí a sua densidade. Os elementos constituintes de um desenho, isto é, as suas linhas ou as suas manchas, serão à partida contínua e indefinidamente variados – um esboço na pintura ou um esquisso na arquitectura, por exemplo, testemunham-no. De qualquer modo, este reconhecimento da densidade e da ausência de articulação dos sistemas não linguísticos não denota uma sua secundarização face aos sistemas linguísticos, como se aqueles fossem menos capazes de precisar uma significação do que estes; denota antes uma compreensão síncrona dos vários sistemas, revelando afinal a relatividade de todos eles. À articulação sintáctica, Goodman faz opor não a desarticulação, mas a densidade, como é ainda a densidade, e não a indiferenciação infinita, que faz opor à diferenciação semântica finita. O cumprimento destas cinco condições é variável, podendo nalguns sistemas até ser nulo. Apenas os sistemas de notação as cumprirão na íntegra.

Goodman sintetizará as suas propostas convocando as noções de ‘análogo’ e de ‘digital’. Dissocia-as contudo das noções de ‘analogia’ e de ‘dígito’, preferindo antes distingui-las em termos de ‘densidade’ e de ‘diferenciação’, ainda que estes termos não sejam reciprocamente opostos. Assim, “[u]m esquema de símbolos é análogo se

sintacticamente denso; um sistema [de símbolos] é análogo se sintacticamente e semanticamente denso” 110 (Goodman, 1976: 160). Por sua vez, “[u]m esquema digital [...] é descontínuo em toda a sua extensão; e num sistema digital cada carácter de um esquema assim é correlacionado com uma e apenas uma classe de conformidade de um conjunto igualmente descontínuo” 111 (Goodman, 1976: 160). Só um sistema denso em toda a sua extensão poderá ser um sistema análogo e só um sistema diferenciado em toda a sua extensão poderá ser um sistema digital. Muitos sistemas não serão por isso nem exclusivamente análogos, nem exclusivamente digitais.

Definidas as condições necessárias para a constituição de um sistema de notação, Goodman precisa aquilo que distingue os sistemas linguísticos dos sistemas não linguísticos. “Os sistemas não linguísticos diferem das linguagens, a representação da descrição, o representacional do verbal, as pinturas de poemas, principalmente por falta de diferenciação – sem dúvida pela densidade (e consequente total ausência de articulação) – do sistema de símbolos” 112 (Goodman, 1976: 226). Ao contrário dos textos, que, sendo semanticamente densos, serão legíveis apesar das variações das respectivas formas gráficas, uma representação é, em simultâneo, sintáctica e semanticamente densa. Numa pintura, não só as variações de dimensão e de cor, por exemplo, implicarão o reconhecimento de manchas diferentes, como todas essas diferenças serão importantes na compreensão daquilo que a pintura representa. Por isso a afirmação da sua densidade ou total ausência de articulação. Assim, se aquilo que determina a dimensão ou linguística ou representacional de um sistema de símbolos é o seu grau de densidade ou de ausência de articulação, parece então ter de ser reconhecida quer, precisamente, a relatividade da dimensão denotativa de qualquer sistema de símbolos, quer, desse modo, a relatividade do valor denotativo de um símbolo se e quando individualmente considerado. “Nada é intrinsecamente uma representação; o estatuto enquanto representação é relativo a um sistema simbólico. Uma imagem num sistema pode ser uma descrição noutro; e se um símbolo denotativo é representacional isso depende não de se assemelhar àquilo que denota mas das suas relações com outros símbolos num determinado sistema. Um sistema é

110 Tradução do autor. No original: “A symbol scheme is analog if syntactically dense; a system is analog if

syntactically and semantically dense” (Goodman, 1978: 160).

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Tradução do autor. No original: “A digital scheme […] is discontinuous throughout; and in a digital system the characters of such a scheme are one-one correlated with compliance-classes of a similarly discontinuous set” (Goodman, 1978: 161).

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Tradução do autor. No original: “Nonlinguistic systems differ from languages, depiction from description, the representational from the verbal, paintings from poems, primarily through lack of differentiation – indeed through density (and consequent total absence of articulation) – of the symbol system” (Goodman, 1978: 226).

representacional apenas se for denso; e um símbolo é representacional apenas se pertencer a um sistema no seu todo denso ou a uma parte densa de um sistema parcialmente denso” 113 (Goodman, 1976: 226). Daí o abandono da noção de ‘tipos de símbolos’. Um símbolo é o símbolo que é não porque detenha um valor intrínseco, mas porque integra um determinado sistema de símbolos constituído a partir de um determinado esquema de símbolos, distinguindo-se de outros símbolos em função das regras sintácticas e das regras semânticas vigentes nesse sistema. Só integrando um sistema, os símbolos poderão denotar um objecto, descrevendo-o ou representando-o, por exemplo.

E é ao desvincular o significado dos símbolos de qualquer relação directa com os objectos que os vários sistemas de símbolos denotam – Goodman esclarece aliás que a definição das cinco condições necessárias para garantir a existência de um sistema de notação não visa “assegurar um vocabulário ou gramática adequados para um determinado assunto-matéria” 114 (Goodman, 1976: 154) –, é ao desvincular, portanto e de um modo definitivo, a ‘representação’ da ‘semelhança’, que Goodman recusa a arbitrariedade como qualidade intrínseca e, em consequência, distintiva dos sistemas linguísticos. Goodman não negligencia as distinções existentes entre os diversos sistemas de denotação. Pelo contrário, reitera-as. Por isso procurou compreender a diversidade das constituições desses sistemas. Entende contudo que o fulcro dessas distinções deve ser encontrado já não na relação que os sistemas de significação mantêm com os objectos que denotam, mas ou na ‘articulação’, ou na ‘densidade’ desses sistemas. A arbitrariedade permeia afinal todos os sistemas de denotação. Assim, “[a]s descrições distinguem-se das representações não por serem mais arbitrárias mas por pertencerem a esquemas articulados em vez de densos; e as palavras são mais convencionais do que as imagens apenas se o seu carácter convencional for interpretado em termos de diferenciação e não de artificialidade. Nada aqui depende da estrutura interna de um símbolo; aquilo que descreve nalguns sistemas pode representar noutros. A semelhança desaparece como critério de representação e a similitude estrutural como um requisito para a notação ou para quaisquer outras linguagens. A distinção frequentemente apontada entre signos

113 Tradução do autor. No original: “Nothing is intrinsically a representation. Status as representation is

relative to symbol system. A picture in one system may be a description in another; and whether a denoting symbol is representational depends not upon whether it resembles what it denotes but upon its own relationships to other symbols in a given system. A system is representational only insofar as it is dense; and a symbol is a representation only if it belongs to a system dense throughout or to a dense part of a partially dense system” (Goodman, 1978: 226).

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Tradução do autor. No original: “to ensure a vocabulary or grammar adequate for a given subject- matter” (Goodman, 1978: 154).

icónicos e outros signos torna-se transitória e trivial; por isso a heresia cria iconoclastia” 115 (Goodman, 1976: 230-231).

Os argumentos de Goodman (1968) suscitam um retorno aos argumentos de Eco (2005) – está em causa o modo como o reconhecimento da arbitrariedade ou da não arbitrariedade da representação reflecte o modo como um e outro perspectivam e distinguem os sistemas linguísticos dos sistemas não linguísticos. Ambos assumem a transitoriedade de qualquer signo, recusando por isso a noção de ‘tipos de signos’, mas isso não implica que considerem igualmente arbitrários todos os sistemas de significação. Na origem da prudência de Eco em relação à arbitrariedade dos signos ditos icónicos encontra-se a ‘fraqueza’ dos respectivos códigos, que impede, ao contrário da ‘força’ dos códigos linguísticos, uma fixação estabilizada de significados – “[f]ora do contexto, as unidades icónicas não têm estatuto e por isso não pertencem a um código; fora do contexto, os ‘signos icônicos’ não são realmente signos; não sendo nem codificados nem (como vimos) semelhantes ao que quer que seja, é difícil entender por que significam. E, não obstante, eles significam” (Eco, 2005: 189). Goodman vê antes na falta de fixação de significados a densidade desses signos. Assim, à arbitrariedade dos signos linguísticos, Eco pode apenas contrapor o carácter culturalmente codificado dos signos icónicos. E mesmo esse é relativo. Os sistemas icónicos não são arbitrários porque não é sequer possível reconhecer aquilo que são; apenas é possível reconhecer que são culturalmente codificados. Considerando que a arbitrariedade é, a partir de Saussure (1978), tomada como característica distintiva dos signos linguísticos, a prudência de Eco em relação aos signos icónicos poderia sugerir que estes não são considerados ‘arbitrários’ na medida em que aqueles o são – os termos ‘naturalmente ligados’ ou ‘motivados por’ cujo significado Eco contesta se tomados como explicação dos signos icónicos são afinal simétricos dos termos sem ‘qualquer ligação natural’ e ‘imotivado’ com os quais Sussure refere a arbitrariedade dos signos linguísticos. A apreciação dos signos linguísticos determina a apreciação dos signos icónicos, até porque ambos integram – foi já referido – “uma progressão contínua e complexa de MODOS DE PRODUÇÃO” (Eco, 2005: 169). Mas o impacto daqueles nestes não é tão linear. Ao hierarquizar os códigos em função da sua ‘força’

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Tradução do autor. No original: “Descriptions are distinguished from depictions not through being more arbitrary but through belonging to articulate rather than to dense schemes; and words are more conventional than pictures only if conventionality is construed in terms of differentiation rather than of artificiality. Nothing here depends upon the internal structure of a symbol; for what describes in some systems may depict in others. Resemblance disappears as a criterion of representation, and structural similarity as a requirement upon notational or any other languages. The often stressed distinction between iconic and other signs becomes transient and trivial; thus does heresy breed iconoclasm” (Goodman, 1976: 230-231).

ou da sua ‘fraqueza’ e ao concluir a arbitrariedade de uns e o carácter culturalmente codificado de outros, Eco efectua uma aproximação verbal à imagem, como se verifica quando refere precisamente as múltiplas interpretações verbais que, no caso, um desenho de um cavalo suscita (Eco, 2005: 189) – não só as constituições de ambos os sistemas de significação são diferenciadas de acordo com o modo como cada um alcança um mesmo conteúdo, como esse conteúdo tem uma definição linguística; sintomaticamente, como foi já referido, Eco considera os signos icónicos como textos visuais, e, sintomaticamente também, ignora que texto algum poderá alcançar tudo aquilo que qualquer um desses desenhos revela. Mas resistirá o estatuto das unidades linguísticas a uma alteração de contexto, ao contrário daquilo que parece acontecer com o estatuto das unidades icónicas, isto é, serão as unidades linguísticas ainda unidades linguísticas fora do contexto, mesmo que tácito, que as reconhece enquanto tal? É distinta a proposta de Goodman (1976). Goodman diferencia as constituições dos sistemas de significação sem pôr em confronto os seus possíveis conteúdos – a sua inquirição dirigir-se-á precisamente “à natureza das linguagens e às diferenças entre linguagens e sistemas não linguísticos de símbolos bem como às características que distinguem os sistemas de notação de outras linguagens” 116 (Goodman, 1976: 130). Por isso, porque todos são elaborações artificiais, Goodman reconheceu-os a todos como arbitrários. Eco assume também essa artificialidade ao referir que todos são culturalmente convencionados. Contudo, isso não é suficiente para reconhecer à representação a arbitrariedade que reconhece à linguagem. Não é pois claro qual o estatuto da representação. Fica por esclarecer como poderão ser compatibilizados o carácter convencionado dos signos icónicos, mesmo reconhecendo a sua volatilidade, com a sua não arbitrariedade.

A arbitrariedade da representação pode por fim ser confirmada recordando a própria identidade daquilo que é posto em confronto quando se procura representar alguma coisa. Se a representação e o seu objecto são entidades independentes – de outro modo, a representação não poderia ser compreendida autonomamente em relação à compreensão do seu objecto, como acontece, por exemplo, com a compreensão da representação de âmbito projectual cujo objecto não tem ainda existência fáctica –, então “a relação que [ambos] mantêm entre si é, como na palavra, arbitrária. [...] Por conseguinte, é arbitrária a relação entre representação e representado” (Janeiro, 2010: 388).

116 Tradução do autor. No original: “into the nature of languages and into the differences between

languages and nonlinguistic symbol systems, as well as into the features that distinguish notational systems from other languages” (Goodman, 1976: 130).

No documento Para uma definição de maqueta (páginas 101-108)