• Nenhum resultado encontrado

A REPRESENTAÇÃO RECONSIDERADA

No documento Para uma definição de maqueta (páginas 69-73)

II DA MAQUETA COMO REPRESENTAÇÃO

A REPRESENTAÇÃO RECONSIDERADA

O problema do estabelecimento da representação pode ser precisado a partir de uma reflexão de Goodman (1976) acerca dos limites das relações de semelhança entre uma representação e o seu objecto. A reflexão considera uma suposta pintura de Constable, mas é a representação, em sentido lato, que está em causa. “Uma pintura de Constable do Castelo de Marlborough é mais parecida com qualquer outra imagem do que com o castelo, ainda que represente o castelo e não uma outra imagem – nem mesmo a cópia mais próxima” 60 (Goodman, 1976: 5). Ao dissociar as relações de semelhança das relações de representação, reiterando assim a insuficiência daquelas para explicar o estabelecimento destas, Goodman desvela afinal aquilo que parece ser a arbitrariedade que permeia a representação – não se trata de considerar que a representação assenta num mero gesto discricionário do sujeito, embora seja por ele e nele estabelecida; trata-se antes de considerar que não comporta uma ligação ‘natural’, por remota que seja, ao seu objecto. É a partir dessa arbitrariedade – nos termos agora referidos – que devem ser inquiridos os mecanismos da representação. A representação implica o confronto de dois objectos distintos: o modelo e o seu alvo. Só sendo distintos o modelo poderá tornar presente esse alvo. De outro modo, seria o

60 Tradução do autor. No original: “A Constable painting of Marlborough Castle is more like any other

picture than it is the Castle, yet it represents the Castle and not another picture – not even the closest copy” (Goodman, 1976: 5).

próprio alvo, esvaziando de sentido a representação. Há, contudo, que precisar aquilo que determina a distinção entre ambos, já que, sendo a realidade constituída como representação, a realidade e as suas subsequentes representações deverão deter naturezas próximas, se não mesmo uma mesma natureza. Assim, a distinção entre ambas assentará já não no facto de apenas essas representações serem entidades representacionais mas, antes, no facto de, sendo a realidade e essas representações entidades representacionais, serem ambas entidades diferentemente codificadas. E será também de modo convencionado que ambas deverão relacionar-se.

Aparentemente – foi já referido –, e apesar das dificuldades que essa possibilidade levanta, a representação ocorrerá porque se reconhece num objecto propriedades de outro objecto. Tratam-se – foi também já referido – de propriedades das respectivas imagens, já que será como imagem que os objectos têm significado e, portanto, existência. Mas poderá a imagem de uma representação conter propriedades da imagem do objecto que é representado? Não. E não porque essas propriedades não são transferíveis, já que é o sujeito quem as estabelece quando, caso a caso, constitui como imagem cada objecto. A ligação entre ambos dá-se porque, ao confrontar-se a apreensão das suas formas, faz-se afinal equivaler as respectivas propriedades – “estabelece[-se] uma equivalência perceptiva entre representação e representado através da qual a representação evoca as propriedades da coisa representada como

se ela lá estivesse, não estando de facto” (Janeiro, 2010: 218). Não se reconhecem as

coisas porque são semelhantes; as coisas são reconhecidas como semelhantes. “A semelhança é o resultado da percepção, não a sua mola” (Merleau-Ponty, 1992: 36). Mas o estabelecimento dessas equivalências não é um processo nem directo, nem garantido. Se, por um lado, para que se possa efectivar, esse processo requer um código que convencione a interpretação dos objectos – ou estes não poderiam ser significados –, por outro lado, ao depender precisamente de uma interpretação, dependerá, afinal, da observação de cada sujeito – do seu passado, do seu contexto, das suas expectativas. “Nada é visto a nu ou nu” 61 (Goodman, 1976: 8). Assim, é necessário considerar que “[a] forma de um objecto que vemos [...] não depende apenas da sua projeção retiniana num dado momento. Estritamente falando, a imagem é determinada pela totalidade das experiências visuais que tivemos com aquele objecto ou com aquele tipo de objecto durante a nossa vida” (Arnheim: 1994: 40). Além disso, essa “forma é determinada não apenas pelas propriedades físicas do material, mas também pelo estilo de representação de uma cultura ou de um artista

individual” (Arnheim, 1994: 130). O reconhecimento de algo numa representação – isto é: o estabelecimento de uma equivalência entre as respectivas propriedades –, que dependerá sempre da capacidade de interpretação de um dado código, será afinal determinado no quadro dos modelos de representação vigentes – que serão predominantemente ‘realistas’ na cultura ocidental (Gombrich, 1995) – e, portanto, aferido em função dos critérios de validação correntes nesses modelos – que serão de semelhança nos modelos ‘realistas’ (Goodman, 1976).

Deve, por fim, ser discernido o alcance do ‘realismo’ de uma representação, agora que se o associa mais a um modo de representar do que à fidelidade da representação. Esgotada a possibilidade de se tomar a representação como simples reflexo da realidade – quer porque a realidade é, desde logo, uma construção do sujeito, quer, por isso, porque as suas propriedades não poderão ser reproduzidas, poderão apenas ser reconhecidas por meio de equivalências –, o realismo deverá ser perspectivado a partir da capacidade de interpretação dos códigos que subjazem à representação. Assim, mais do que a informação que se consegue associar ao objecto representado, que depende dos sistemas de codificação empregados, importará antes considerar a prontidão com que essa informação será associada a esse objecto. E essa prontidão dependerá não de qualidades intrínsecas dos sistemas de representação, como se de uma sua apetência ‘natural’ se tratasse, mas da sua generalização e do controlo com que são adoptados. Foi essa verificação que permitiu a Goodman uma conclusão inicial sobre o realismo, na qual transparece o modo como Arnheim (1994: 130) já observara a apreensão das formas dos objectos e na qual se confirma a opinião de Bailer-Jones (2009: 178) acerca da sua dependência de uma argumentação: “[o] realismo é relativo, sendo determinado pelo sistema de representação padrão para uma dada cultura ou pessoa num dado tempo” 62 (Goodman, 1976: 37). Entende-se assim quer o modo diverso como o realismo é validado, quer aquilo que, apesar disso, significa: num sistema padrão, por ser corrente, a interpretação que subjaz à representação tenderá a ser imperceptível, fazendo surgir como evidente – isto é: como ‘realista’ – aquilo que afinal será sempre relativo; noutros sistemas que não o padrão, pela razão inversa, o esforço de interpretação tenderá a ser mais exigente, podendo tornar não tão compreensível – isto é: menos ‘realista’ ou mesmo ‘irrealista’ – aquilo que afinal é apenas diferente. O ‘realismo’ terá de ser pensado num horizonte de expectativas. É isso que Gombrich aponta ao alertar para as dificuldades surgidas “quando se discutem as relações entre arte e aquilo que chamamos de realidade. Não

62

Tradução do autor. No original: “Realism is relative, determined by the system of representation standard for a given culture or person at a given time” (Goodman, 1976: 37).

temos outra opção a não ser olhar para a arte do passado pelo lado errado do telescópio. Chegamos a Giotto pelo longo caminho que vai dos impressionistas para trás, via Michelangelo e Masaccio, e, conseqüentemente, o que vemos primeiro nele não é o “realismo”, mas um rígido comedimento e uma espécie de indiferença majestática” (Gombrich, 1995: 64). O realismo de uma representação distingue-se afinal da sua correcção: enquanto esta advém do rigor da informação sobre o objecto representado aferido de acordo com as regras do sistema de representação em causa, aquele resulta da amplitude da coincidência desse sistema de representação com o sistema de representação padrão vigente. É nesta distinção que se radica uma conclusão última de Goodman acerca do realismo e da sua relatividade: “[s]e a representação é uma questão de escolha e a correcção uma questão de informação, o realismo é uma questão de hábito” 63 (Goodman, 1976: 38).

Pode agora ser objectivado o significado dos juízos de semelhança com os quais se tende a apreciar e a validar a representação. Tal como se verificou que a relação entre a representação e o seu objecto assenta numa equivalência arbitrária de propriedades – não por ser discricionária, mas por ser não ‘natural’ –, deve agora verificar-se que somente em função dessas equivalências poderão ser reconhecidas semelhanças entre ambos. Por isso se afirmou que as semelhanças são não uma condição prévia para a representação mas antes uma sua consequência. Mas o reconhecimento de semelhanças não denota apenas uma equivalência de propriedades; denota também a permanência dos modelos e dos sistemas de representação que lhe subjazem. Assim, não se trata já de apenas verificar que uma pintura que representa a natureza é mais parecida com qualquer outra imagem do que com a natureza – era esse o sentido da já referida observação de Goodman (1976: 5) acerca de uma suposta pintura de Constable do Castelo de Marlborough; “[q]ue uma imagem se pareça com a natureza significa muitas vezes que se pareça com o modo como a natureza é habitualmente pintada” 64 (Goodman, 1976: 38). Ao validarem o reconhecimento de um objecto, conferindo-lhe assim existência, os juízos de semelhança fixam afinal um modo de formular as representações, num processo que tenderá a compaginar a constituição das suas imagens com o modelo de representação vigente. E é no confronto entre as imagens assim constituídas e esse modelo, é no acerto, pois, dessa compaginação, que será determinado o grau do ‘realismo’ da representação.

63 Tradução do autor. No original: “If representation is a matter of choice and correctness a matter of

information, realism is a matter of habit” (Goodman, 1976: 38).

64

Tradução do autor. No original: “That a picture looks like nature often means that it looks the way nature is usually painted” (Goodman, 1976: 38).

II - 3 MAQUETAS

No documento Para uma definição de maqueta (páginas 69-73)