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A POSSIBILIDADE DA CONCEPÇÃO PRÉVIA DA OBRA

No documento Para uma definição de maqueta (páginas 166-168)

IV O PROJECTO DE OBJECTOS ARQUITECTÓNICOS, A PARTIR DA MAQUETA

A POSSIBILIDADE DA CONCEPÇÃO PRÉVIA DA OBRA

O acolhimento alcançado por ‘De Re Aedificatoria’ foi diferenciado, mais amplo junto dos humanistas e dos mecenas, que ao patrocinarem novas obras, por vezes até delineando-as, viam nesse exercício a natural afirmação da sua condição de homens cultos, menos evidente junto dos arquitectos, para quem o latim dificilmente seria acessível e a ausência de imagens impedia a existência de modelos que pudessem de imediato ser adoptados. Se de facto pretendia dirigir-se-lhes, Alberti parece considerar não os arquitectos seus contemporâneos, mas aqueles que idealizava. A primeira edição do texto em 1485, ainda em latim e desprovido de imagens, seria relativizada pela quase simultânea primeira edição do texto de Vitrúvio em 1486 ou 1487, esse sim um texto clássico há muito conhecido referencial tanto para eruditos, quanto para arquitectos, e quando, em 1550, o texto foi pela primeira vez editado com imagens e em volgare, o seu conteúdo prático tornara-se já obsoleto (Pauwels in Callebat, 1998: 67). A ausência de imagens reforçava o poder da palavra escrita, reafirmando assim a arquitectura como coisa mental (Krüger in Alberti, 2011: 76). É afinal essa reafirmação que parece também subjazer à importância que a palavra oral teria no processo de projecto, como foi já observado (Healy, 2008: 181). Mas ‘De Re Aedificatoria’ não deixou de ser absorvido mesmo antes de vir a ser editado. Ao serem gradualmente apreendidas pelos humanistas e pelos mecenas, e ao terem estes de contar com os arquitectos para concretizarem as suas obras – afinal, “[e]ra necessário que o projecto intelectual se tornasse realidade, e, com frequência, a ideia precisou de um braço” 178 (Pauwels in Callebat, 1998: 70) –, é possível considerar que as propostas de Alberti foram sendo gradualmente também partilhadas pelos arquitectos. Há nessa partilha de um mesmo universo de valores culturais uma proximidade – porventura insuspeita – entre a realidade renascentista italiana e a realidade medieval.

O reconhecimento do estatuto intelectual do trabalho do arquitecto formulado por Alberti não foi pois imediato – o facto de a sua afirmação continuar a constituir uma preocupação de autores posteriores atesta-o. E também não foi imediata a aquisição da competência que exigiu ao arquitecto, precisamente enquanto praticante de uma arte que se pretendia liberal, de conceber na sua totalidade a obra de arquitectura antes de a construir – confirma-o desde logo, como se verificou, a prática de Alberti.

178 Tradução do autor. No original: “Il était nécessaire que le projet intellectuel devienne réalité, et,

Mas se em relação às bases desse estatuto Alberti é claro, apontando o conhecimento amplo que o arquitecto deverá deter (Alberti, 2011: 138), em relação à definição de um sistema de representação capaz de viabilizar essa concepção prévia e completa da obra, pelo contrário, parece omisso. “Assim, o projecto como ideia é algo muito seguro na teoria de Alberti, sendo no entanto mais difícil encontrar o projecto consolidado como categoria instrumental já com um grau elevado de codificação” (Tavares, 2004b: 93). E não é apenas na sua teoria que essa dificuldade é verificável. “[À] intuição do processo metodológico não corresponde uma prática segura e não encontramos, nem em Alberti nem nos arquitectos do seu tempo, a notícia da utilização de sistemas de desenho técnico organizado capazes de constituir uma informação global, coerente e eficaz como no final do século XVI já era possível reconhecer. Nem em Filarete (Antonio Averlino 1400-1469), nem em Francesco di Giorgio Martini (1439-1502), nem em Leonardo da Vinci (1452-1519) poderemos reconhecer este método de representação das suas imaginadas arquitecturas” (Tavares, 2004b: 93). Não deixa de ser inquiridora essa aparente omissão de Alberti, já que uma sua eventual indiferença em relação aos sistemas de representação adequados para suportar a concepção prévia e completa da obra não parece coadunar-se com a importância que confere a essa mesma concepção. De qualquer modo, e independentemente desta verificação, a ausência de sistemas organizados de desenho técnico não impossibilitou a gradual implementação da concepção prévia, mesmo que esta não fosse ainda completa. Desde o início do Renascimento, “[a] actividade projectual foi recuperando o papel decisivo que tinha tido na cultura clássica, como estádio prévio orientador da criação arquitectónica” 179 (Muñoz Cosme, 2008: 32-33). A prática de Brunelheschi – foi já observado – marcará o início da sistematização desse procedimento. E mesmo antes, a complexidade atingida, por exemplo, por algumas catedrais românicas e góticas torna “impossível negar o extenso procedimento projectual por trás da construção sobretudo dos maiores monumentos a partir da Alta Idade Média” 180 (Pacciani in Gregotti, 1987: 9).

Importa pois compreender, observada esta relação entre a prática e a teorização do projecto, como se efectivou a transformação de uma prática que tinha na presença permanente do arquitecto no estaleiro e, portanto, na comunicação oral da informação

179 Tradução do autor. No original: “La actividad proyectual fue recuperando el papel decisivo que había

tenido en la cultura clásica, como estadio rector de la creación arquitectónica” (Muñoz Cosme, 2008: 32- 33).

180 Tradução do autor. No original: “impossibile negare un’estesa procedura progettuale alle spalle

dell’edificazione soprattutto dei maggiori monumenti a partire dall’alto Medievo” (Pacciani in Gregotti, 1987: 9).

o seu vértice numa outra prática que, ao pugnar pela afirmação do estatuto intelectual do trabalho do arquitecto e pela sua concomitante dissociação do trabalho do artífice e da construção, tinha de confiar à representação a fixação prévia, global e completa da informação necessária à realização da obra. Advirá dessa compreensão a clarificação daquela aparente omissão de Alberti. Ao corte epistemológico formulado em ‘De Re

Aedificatoria’, deve para isso contrapor-se, apesar do paradoxo porventura aí contido,

uma simultânea continuidade de práticas de projecto.

No documento Para uma definição de maqueta (páginas 166-168)