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AO ‘ARQUITECTO INVENTOR’

No documento Para uma definição de maqueta (páginas 155-166)

IV O PROJECTO DE OBJECTOS ARQUITECTÓNICOS, A PARTIR DA MAQUETA

AO ‘ARQUITECTO INVENTOR’

A afirmação da dimensão intelectual do trabalho do artista e, portanto, também do trabalho do arquitecto terá porventura no recrudescimento do interesse pelos autores clássicos – gregos e latinos – a sua origem. A escolástica medieval fora absorvendo os seus textos, procurando conciliações diversas com o pensamento cristão. É nessas conciliações, aliás, e face à ausência de uma teoria da arquitectura própria referida por Kruft (1990: 48), que é possível discernir o modo como o pensamento medieval via a criação arquitectónica. Mas essas eram apenas observações laterais, meras intuições, como se lhes refere Panofsky (1994: 41), que pretendiam não a compreensão da arte mas tão só beneficiar a exposição da natureza e do alcance do espírito divino. A partir do século XIV, contudo, seriam as versões originais desses textos clássicos, por meio de sucessivas cópias, e não as suas interpretações que começariam a ser preferidas (Kenny, 1999: 222). De um modo gradual, tomava-se assim consciência quer daquilo que logravam as obras da Antiguidade, quer da capacidade humana que lhes subjazia. Sem que isso significasse uma recusa do seu entendimento como obra de Deus,

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Tradução do autor. No original: “Nonetheless , what was intellectualized by the philosopher had its own humble reality in the lodge” (Kostof in Kostof, 2000: 79).

assumia-se que a vontade de realização do Homem era não só distinta da vontade divina, como marcada também por uma individualidade até então não considerada. Isto por um lado. Por outro lado, tomava-se consciência também de que o tempo dessas obras era já outro, distante e concluído, que não aquele a partir do qual se as perspectivava, contrariando desse modo uma então ainda prevalecente indistinção entre ambos. “Era isso [– esse movimento de recuperação dos ensinamentos antigos clássicos –] o «humanismo», não no sentido de uma preocupação com a humanidade, mas no sentido de uma dedicação às «letras humanas»” (Kenny, 1999: 222). Cientes das suas capacidades e assumindo essa vontade de realização, os eruditos, primeiro, e os artistas, depois, passariam a ter essas obras como referência para o seu trabalho. Mas, mais do que apenas igualá-las, o seu propósito seria agora superá-las. O texto de Vitrúvio, a única obra escrita acerca de arquitectura que subsistira da Antiguidade Clássica, constituiria necessariamente uma dessas referências 164. Esse processo de transformação, que ocorreria tanto na filosofia, quanto na arte, tornar-se-ia irreversível a partir do início do século XV. Florença viria ser o seu centro.

Na arquitectura, esse processo de transformação teria a sua primeira evidência numa nova atitude perante a obra e o projecto. Filippo Brunelleschi (1377-1446), florentino, seria o seu protagonista. Brunelleschi teve alguma formação de filosofia, de literatura, de matemática e de geometria, consentânea com o estatuto social da sua família. Seria também dotado para o desenho e para a mecânica. Iniciou-se profissionalmente no ofício de ourives, tendo, enquanto tal, e ainda aprendiz, realizado os seus primeiros trabalhos. Consolidou-lhe a fama a proposta para o concurso para as portas Nascente do Baptistério de San Giovanni, em Florença, em 1402, que venceu ex aequo com o escultor Lorenzo Ghiberti (1378-1455). Prescindiu do trabalho por perceber não serem conciliáveis as opções estéticas de ambos (Argan, 1981: 20) 165. E ficou como inventor da perspectiva, mesmo que as suas bases estivessem há muito definidas, ao encenar uma representação ‘realista’ e matematicamente formulada do baptistério florentino (Côrte-Real, 2001: 21-22). Brunelleschi não recebeu a formação corrente dos mestres

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Embora seja dado como tendo sido descoberto pelo humanista Poggio Bracciolini (1380-1459) em 1414, as cópias do texto de Vitrúvio circulavam nos meios eruditos medievais pelo menos desde o século IX (Maciel in Vitrúvio, 2006: 20), sendo o seu conhecimento discernível nalguma da respectiva produção escrita (Kruft, 1990).

165 As portas elaboradas por Ghiberti seriam concluídas em 1424, encontrando-se, contudo, na entrada Norte do baptistério. Na entrada Nascente, viriam a ser colocadas as portas que Ghiberti concluiria em 1452, encomendadas em 1425 para a entrada Norte. A qualidade destas últimas justificaria a sua colocação na entrada Nascente, a entrada principal do baptistério. Estas portas são comummente identificadas como ‘Portas do Paraíso’ – Michelangelo Buonarroti terá referido que poderiam encontrar-se à sua entrada. As portas da entrada Sul foram elaboradas por Andrea Pisano (c. 1270-1348), que as completou em 1336 (Paolucci, 1994).

construtores medievais. Passou por alguns estaleiros, mas a sua efectiva aproximação à arquitectura terá ocorrido em Roma, na década de 1410, onde permaneceu na companhia do escultor Donato Donatello (c.1386-1466). Em Roma, estudou, mediu e desenhou as ruínas imperiais, num procedimento que era então inédito. Brunelleschi terá compreendido assim o quanto essa arquitectura se distinguia da arquitectura medieval, quer técnica, quer formalmente. “Filippo, se se acreditar em Manetti, soube aí ler um sistema estético, que interpretará do ponto de vista humanista próprio do pensamento renascente” 166 (Pauwels in Callebat, 1998: 64). E terá sido também assim que Brunelleschi formulou a sua abordagem ao projecto. Ao apenas ser possível o confronto com os respectivos resquícios, a compreensão da completude dessas obras implicava a sua reconstrução, e esta não só tinha de ser efectivada na mente – não se tratava afinal de, de facto, as reconstruir –, como tinha ainda de assentar já não na adopção de modelos existentes, por se revelarem inadequados, mas na invenção das suas hipotéticas configurações. Também as novas obras poderiam ser assim concebidas. “Antes de construir, o arquitecto deve forjar uma ideia global do edifício, na sua estrutura como na sua decoração: em conceber um disegno – um projecto – total” 167 (Pauwels in Callebat, 1998: 64). No processo projectual, a concepção de uma obra poderia assim distinguir-se, o que não significaria necessariamente cindir-se, da sua construção.

Brunelleschi terá procedido assim logo no seu primeiro trabalho como arquitecto: o fecho da cúpula da Catedral de Santa Maria del Fiore, em Florença 168. A condução dos trabalhos observou globalmente os procedimentos medievais, sendo os detalhes da obra resolvidos à medida que esta se concretizava. A completa definição prévia de

166 Tradução do autor. No original: “Filippo, si l’on en croit Manetti, sut y lire un système esthétique, qu’il

interpréta du point de vue humaniste propre à la pensée renaissante” (Pauwels in Callebat, 1998: 64). Antonio Manetti (1423-1497) redigiu uma biografia de Brunelleschi em 1482 (Manetti, 1970).

167 Tradução do autor. No original: “Avant de bâtir, l’architecte doit se forge une idée globale de l’édifice,

dans sa structure comme sa décoration : en concevoir un disegno – un dessein – total” (Pauwels in Callebat, 1998: 64).

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O fecho da cúpula constituía sobretudo um desafio técnico, que resultava quer da amplitude do vão a cobrir, que procurava emular o vão da cúpula do Panteão de Roma, quer da impossibilidade de erguer os cimbres de madeira de apoio à construção por falta de mão-de-obra especializada (Argan, 1981: 45), o que inviabilizava a adopção das técnicas medievais de abobadamento. A configuração da cúpula – oitavada e com panos de curvatura ogival – encontrava-se já estabelecida pelo menos desde 1360. Brunelleschi começou a ser consultado acerca de questões relacionadas com a catedral a partir de 1404, chegando a apresentar uma maqueta com uma proposta para o fecho da cúpula, mas só em 1418, no âmbito de um concurso, apresentaria uma nova maqueta com a proposta definitiva. A empresa ser-lhe-ia novamente atribuída em conjunto com Ghiberti, ainda que a intervenção deste nos trabalhos viesse a revelar-se tecnicamente falha. Brunelleschi concebeu e fez erguer a cúpula em muito reinterpretando as práticas de abobadamento romanas. A sua persuasão junto dos patronos da obra seria determinante para a persecução dos trabalhos. A cúpula seria fechada em 1434. Brunelleschi venceria ainda o concurso para a definição do respectivo lanternim, em 1436, do qual elaboraria também uma maqueta. Não viveria contudo até à sua conclusão.

uma obra não era então requerida. A concepção desenvolvia-se ao se engendrar a construção, acompanhando o arquitecto em permanência os trabalhos. Assim, “[é] bastante claro que invariavelmente se esperava que Brunelleschi e outros dessem constantemente instruções no estaleiro” 169 (Ettlinger in Kostof, 2000: 109). Mas esta obra ficaria marcada também por novos procedimentos. Brunelleschi esteve ausente de Florença durante alguns períodos da construção para acompanhar outros trabalhos de arquitectura, confiando às instruções que deixava, acompanhadas sempre de desenhos e de maquetas, a concretização das suas intenções. Ressalta assim do procedimento projectual de Brunelleschi a importância da concepção prévia da obra, mesmo que a sua definição não fosse ainda completa, sem o que teria sido difícil quer engendrá-la fora das técnicas construtivas correntes, quer, por causa desse carácter inovador, garantir a suas necessárias apresentação e defesa públicas. Ressalta ainda do procedimento projectual de Brunelleschi aquilo que parece constituir o início da adopção da representação – do desenho e, sobretudo, da maqueta, isto convindo nos relatos de Vasari (1550), algumas das quais ainda subsistirão (img. 3: 159; img. 4, 160)170 quer como meio de sistematizar a concepção prévia, quer como meio de substituir o arquitecto e, portanto, de o isentar, pelo menos em parte, da presença permanente no estaleiro. E aí, nessa adopção, deverá ser observado ainda – será depois verificado – o início de um alcance outro da representação na conceptualização da arquitectura e na concepção dos objectos arquitectónicos. De qualquer modo, as representações de projecto não conseguiriam autonomamente garantir ainda um eficaz cumprimento das intenções do arquitecto, como o confirma o desagrado manifestado por Brunelleschi ao verificar os erros da obra do Hospital degli Innocenti, em Florença, cuja condução tivera de delegar ao ter temporariamente de deixar a cidade (Tavares, 2003: 85). Brunelleschi não passou a escrito os seus entendimentos acerca da arquitectura e do projecto. Nesse sentido, não se legitimou ainda como erudito, capaz de estruturar e de demonstrar um pensamento reflexivo acerca da própria prática. Contudo, a sua acção como criador individual capaz de, por via do estudo das obras antigas, antecipar e concretizar as suas propostas naquilo que de mais ousado tinham seria determinante para legitimar a afirmação da natureza intelectual do seu trabalho. Mais do que apenas

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Tradução do autor. No original: “It is quite clear that Brunelleschi and others were invariably expected to give instructions constantly on the building site” (Ettlinger in Kostof, 2000: 109).

170 Estão em causa uma maqueta da cúpula, que inclui a face exterior da cúpula, o tambor octogonal e parte da cabeceira prismática trifoliada da catedral, e uma outra do lanternim, que inclui um troço da cúpula. Embora sejam atribuídas a Brunelleschi, deverão tratar-se, pelo menos em parte, de cópias posteriores (Teodoro in S. Frommel, 2015: 65-74). Estas maquetas encontram-se no Museo dell’Opera del Duomo, em Florença.

Imagem 3 – Maqueta do projecto de Filippo Brunelleschi para o tambor e cúpula e para as tribunas da Catedral de Santa Maria del Fiore, Florença.

Autor desconhecido, séculos XIV? - XV. Madeira, originalmente com pintura e aplicações de estuque. Tambor e cúpula 90 x 100 cm (Ø base x a); tribunas 55 x 35 x 63 cm (c x l x a). Escala aproximada 1:50. Firenze, Museo dell’Opera del Duomo, inv. 160 (tambor e cúpula) e inv. 163 (tribunas). (Millon in Millon e Lampugnani, 1997: 23).

Imagem 4 – Maqueta do projecto de Filippo Brunelleschi para o lanternim da cúpula da Catedral de Santa Maria del Fiore, Florença.

Autor desconhecido, século XV?. Madeira, originalmente com aplicações de gesso e de cera. 70 x 84 cm (Ø base x a). Firenze, Museo dell’Opera del Duomo, inv. 164. (Millon in Millon e Lampugnani, 1997: 22).

engendrar a construção de modelos predefinidos, o arquitecto inventava agora aquilo que construía. “Distinguir, como faz Brunelleschi pela primeira vez, o momento do projecto, ou da invenção, do momento da execução significa distinguir uma actividade «liberal» de uma actividade «mecânica», e reservar a primeira aos portadores de uma cultura «liberal», isto é histórica ou humanística” 171 (Argan, 1981: 54).

DE RE AEDIFICATORIA

Caberia a Leon Battista Alberti (1404-1472) a formulação definitiva do estatuto intelectual do trabalho do arquitecto. Genovês, embora de família florentina – a família fora banida de Florença em 1387 –, Alberti formou-se em direito canónico. Era um profundo conhecedor dos textos clássicos. Interessava-se ainda pela matemática e pela física. Escreveu poesia, teatro e ensaios em diversas áreas do saber. A partir de 1428 – foi nessa data levantado o banimento imposto à família –, as idas a Florença permitem-lhe inserir-se no ambiente cultural que se vivia na cidade. Permaneceu em Roma entre 1432 e 1434, ligado à cúria romana, tendo estudado, como já o haviam feito Brunelleschi e Donatello, as ruínas imperiais. Ligava assim os textos latinos antigos aos vestígios construídos da cultura que os redigira. E terá então estudado também o texto de Vitrúvio. Em 1434, retornará por dois anos a Florença, podendo assistir à conclusão do fecho da cúpula de Santa Maria del Fiore. É como humanista com interesses amplos que dá então início à sua produção artística na pintura e na escultura. Em 1435, concluiria o texto ‘De Pictura’, em volgare, que posteriormente traduziria e sucessivamente reveria em latim (Sinisgalli in Alberti, 2011b). Dedicá-lo-ia a Brunelleschi. Alberti sistematizaria aí as bases da perspectiva, conferindo ao pintor um instrumento matematicamente rigoroso para representar a realidade. O texto ‘De

Statua’, redigido em latim mas publicado em volgare só em 1568, poderá ter sido

então também preparado (Bätschmann in Alberti, 2011c). Alberti fixou-se em definitivo em Roma em 1443, ainda que continuasse a viajar em virtude das suas funções na cúria romana. Só em 1447 começaria a trabalhar ligado à arquitectura, primeiro como superintendente do Papa Nicolau V (Tomaso Parentucelli: 1397-1455) para o restauro de edifícios de Roma, depois, como autor de várias obras em várias cidades italianas. Em 1452, concluiria em Roma o manuscrito em latim de ’De Re Aedificatoria’ que dedicaria a Nicolau V. Continuaria porém a revê-lo. A sua primeira edição ocorreria em 1485, sendo dedicada a Lorenzo de’ Medici, il Magnifico (1449-1492), e só em 1546 o

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Tradução do autor. No original: “Distinguir, como hace Brunelleschi por primera vez, el momento del proyecto o de la invención del momento de la ejecución significa distinguir una actividad «liberal» de una actividad «mecánica», y reservar la primera a los portadores de una cultura «liberal», es decir histórica o humanística” (Argan, 1981: 45).

texto seria editado em volgare, sempre sem imagens. Alberti, o humanista, chegaria assim a prática como arquitecto enquanto elaborava ’De Re Aedificatoria’.

Reconhece-se ‘De Re Aedificatoria’ como um texto fundador, como o precisa Pauwels (in Callebat, 1998: 67). Fundador, desde logo, porque proporcionou à arquitectura uma referência teórica que ombreava com as congéneres clássicas que existiam para a poesia e para a música, por exemplo, numa altura em que o texto de Vitrúvio não fora ainda publicado 172 e permanecia por isso marcado pelas lacunas e pelos erros resultantes das suas sucessivas cópias. Mesmo que esse fosse o propósito inicial de Alberti, a hipótese de proceder apenas à sua mera reconstituição ter-se-á revelado insatisfatória. Mas reconhece-se ‘De Re Aedificatoria’ como um texto fundador, ainda, pelo modo como proporcionou essa referência teórica, radicando-se não num retorno às obras do passado romano, mas numa reflexão acerca da contemporaneidade da arquitectura, capaz de responder à ambição de a compreender como uma, de pleno direito, arte liberal. Formula então Alberti: “[a] arte edificatória, no seu todo, compõe-se de delineamento e construção” 173 (Alberti, 2011: 145), e “[o] delineamento não depende intrinsecamente da matéria. […] E será legítimo projectar mentalmente todas as formas independentemente de qualquer matéria” (Alberti, 2011: 146). É, pois, por meio do delineamento, que lhe é não só anterior mas também autónomo, que a construção adquire ordem. A distinção entre concepção e construção que fora espoletada por Brunelleschi e alimentada pelo modo como manifestamente demarcou a sua prática da prática dos mestres construtores medievais era agora conceptualizada. Em ‘De Re Aedificatoria’, “[a] arquitectura, como as outras artes liberais, é objecto de uma reflexão escrita coerente, que não é uma recolha de receitas técnicas mas a teoria global de uma arte fundada sobre concepções intelectuais” 174 (Pauwels in Callebat, 1998: 67). Depois de ser conceptualizada à imagem das obras

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A Editio Princeps, a primeira do texto, dataria apenas de 1486 ou 1487, sendo realizada por Giovanni Sulpizio da Veroli (1440 - c. 1508) (Maciel in Vitrúvio, 2006: 20).

173 Face à dificuldade de encontrar uma tradução imediata para ‘lineamenta’, o termo adoptado por Alberti, Krüger opta por considerar não ‘lineamento’, mas ‘delineamento’. “Apesar de aquela primeira transposição [– lineamento –] ser etimologicamente mais precisa, contudo é mais redutora, pois refere-se, em vernáculo, quase exclusivamente ao traçado de linhas, enquanto delineamentos se reporta também à imaginação de quem as gerou. […] O termo delineamento evoca, assim e apesar da polissemia que apresenta, a representação por meio de linhas ou traços do objecto que se constrói […] bem como […] os mecanismos da imaginação ou da concepção que lhe estão associados” Krüger (in Alberti, 2011: 62-64). A oportunidade de ‘delineamento’ é corroborada pelas observações de Brawne (2003: 82), que verifica a insuficiência de ‘design’, o termo correntemente adoptado como tradução inglesa de ‘lineamenta’, e, sobretudo, de Frascari (2011: 97), que propõe ‘linhas indicativas’ [denoting lines] como sua tradução, relacionando assim os lineamenta com os traçados de implantação da construção. Brandão (1964) adopta ‘alineamento’, relativizando contudo a acepção gráfica do termo.

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Tradução do autor. No original: “L’architecture, comme les autres arts libéraux, est l’objet d’une réflexion écrite cohérente, qui n’est pas un recueil de recettes techniques, mais la théorie globale d’un art, fondée sur des conceptions intellectuelles” (Pauwels in Callebat, 1998: 67).

criadas por Deus, a arquitectura ‘humanizava-se’. É porém o modo como Alberti compreende o trabalho do arquitecto que importa agora discernir.

Considerando a anterior formulação bipartida da arquitectura, caberia ao arquitecto o delineamento. A construção caberia ao artífice, tendo o seu trabalho uma importância apenas instrumental para a realização do trabalho do arquitecto. “[P]roclamarei que é arquitecto aquele que, com um método seguro e perfeito, saiba não apenas projectar em teoria, mas também realizar na prática todas as obras que […] se adaptam da forma mais bela às necessidades do homem. Para o conseguir, precisa de dominar e conhecer as melhores e mais importantes disciplinas” (Alberti, 2001: 138). Assim, seria por meio desse ‘método seguro e perfeito’ do arquitecto que se poderia cumprir “[t]oda a função e razão de ser do delineamento [que se] resum[e] em encontrar um processo, exacto e perfeito, de ajustar e unir linhas e ângulos, a fim de que, por meio daquelas e destes, se possa delimitar e definir a forma do edifício” (Alberti, 2011: 145). Seria também pelo facto de o arquitecto ‘saber projectar e realizar obras que se adaptam da forma mais bela às necessidades do homem’ que se tornaria possível concretizar a “função e objectivo do delineamento [que são] prescrever aos edifícios e às suas partes uma localização adequada e proporção exacta, uma escala conveniente e uma distribuição agradável, de tal modo que a conformação de todo o edifício assente unicamente no próprio delineamento” (Alberti, 2011: 145-146). E seria, por fim, pelo facto agora de ‘dominar e conhecer as melhores e mais importantes disciplinas’ que o arquitecto conseguiria assegurar o delineamento, definido como “um traçado exacto e uniforme, mentalmente concebido, constituído por linhas e ângulos, levado a cabo por uma imaginação e intelecto cultos” (Alberti, 2011: 146).

Esta compreensão do ‘arquitecto’ implicaria a necessária clarificação do seu processo de trabalho. Ao anteceder e ao se autonomizar da construção, o projecto 175 passa a ter de antecipar a futura obra em toda a sua completude. “Na verdade, é dever de um especialista conceber e definir antecipadamente todos os pormenores, não suceda que, estando a obra em fase de acabamento, ou já concluída, seja obrigado a confessar: não era isto que eu queria; preferia outra coisa” (Alberti, 2011: 188). É no projecto que o arquitecto concretizará a dimensão intelectual do seu trabalho, como é ainda por meio do projecto, agora à distância, que procurará continuar a assegurar o

175 Alberti não identifica, enquanto tal, a noção de ‘projecto’. Contudo, entendido como antecipação da obra de arquitectura, o ‘projecto’ está integrado na noção de ‘delineamento’ (Krüger in Alberti, 2011: 66- 67). Em Portugal, essa acepção de ‘projecto’ terá tido o seu primeiro registo com Rodrigues, que o define como “pensamento expresso em linhas, delineação de um edificio, de uma figura, ou composição de um quadro, de um grupo em barro ou cera” (Rodrigues: 1875: 310).

controlo do processo construtivo até então assegurado no estaleiro (Krüger in Alberti, 2001: 72). O projecto comportará assim uma configuração particular. Constitui-se como um processo de reflexão – “para mim é sempre de aprovar o antigo costume daqueles que melhor edificavam, de modo a que, antes de darmos início a seja o que for que exija despesa e canseira, ponderemos e examinemos, uma e outra vez, toda a obra e cada uma das dimensões de todas as partes, segundo as directivas dos mais entendidos” (Alberti, 2011: 188) –, suportado num confronto com a representação – “servindo-nos[, para essa ponderação e esse exame,] não só de um desenho e de um esboço, mas também de módulos e de modelos de madeira ou de qualquer material” (Alberti, 2011: 188) –, processo esse que se revela não-linear – “[e], sem correr riscos, será lícito acrescentar, tirar, mudar, inovar e alterar completamente, até que todas as coisas se ajustem e satisfaçam plenamente” (Alberti, 2011: 189) – e, por isso mesmo, progressivo, como o confirma o distinto grau de definição de informação proporcionado pelo desenho e pela maqueta, as representações referidas. A palavra oral, ao permear esse processo em toda a sua extensão – Alberti recomenda com frequência que o arquitecto troque impressões com os mais avisados nas questões da arquitectura,

No documento Para uma definição de maqueta (páginas 155-166)