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A INUTILIDADE DA NOÇÃO DE ‘SIGNO ICÓNICO’, A PARTIR DE ECO

No documento Para uma definição de maqueta (páginas 85-89)

II DA MAQUETA COMO REPRESENTAÇÃO

A INUTILIDADE DA NOÇÃO DE ‘SIGNO ICÓNICO’, A PARTIR DE ECO

A difusão da definição de ‘signo icónico’ deve-se a Charles Morris, que partiu de uma definição antes proposta por Charles Peirce (Eco, 1997: 100) – para Morris, era icónico um signo que tivesse propriedades do seu objecto, isto é, “propriedades dos seus denotata” (Morris citado por Eco, 1997: 100); Peirce considerara icónicos “aqueles signos que têm certa nativa semelhança com o objecto a que se reportam” (Peirce citado por Eco, 1997: 99). A retoma por parte de Morris da definição proposta por Peirce ter-se-á justificado pelo facto de se tratar de “uma das tentativas mais

cômodas e aparentemente satisfatórias para definir-se semanticamente uma imagem” (Eco, 1997: 100) – e como a maqueta parece confirmar essa comodidade...

A contestação da noção de ‘signo icónico’ é desenvolvida por Eco, que retoma e reajusta em ‘Tratado Geral de Semiótica’ (2005) reflexões anteriores, propostas, em particular, em ‘A Estrutura Ausente’ (1997). Essa contestação inscreve-se contudo numa contestação mais ampla e radical – verificada a inutilidade da noção de ‘signo icónico’, “[é] a própria noção de ‘signo’ que resulta inoperante” (Eco, 2005: 189). Eco radica a sua contestação à noção de ‘signo icónico’ na insustentabilidade da trilogia proposta por Peirce – a mais conhecida classificação de signos, segundo Eco (2005: 157) –, que discrimina os signos como “SÍMBOLOS (arbitrariamente relacionados com seu objeto), ÍCONES (semelhantes ao seu objeto) e ÍNDICES (fisicamente relacionados com o seu objeto)” (Eco, 2005: 157). Ao definir o objecto do signo como parâmetro de classificação, a trilogia ignora que aquilo que é manipulado na produção de um signo é distinto desse objecto, devendo por isso ser pensado num plano outro que não aquele onde são discriminadas as relações que os signos estabelecem com os seus objectos – “[u]m signo é sempre constituído por um (ou mais) elementos de um PLANO DE EXPRESSÃO convencionalmente correlatos a um (ou mais) elementos de um PLANO DE CONTEÚDO” (Eco, 2005: 39). Além disso, a trilogia de Peirce ignora ainda a falácia – é esse o termo utilizado por Eco (2005: 49) – da própria noção de ‘referente’ em função da qual é organizada – “mesmo podendo o referente ser o objecto nomeado ou designado por uma expressão quando a linguagem é usada para mencionar os estados do mundo, deve-se assumir que, em princípio, uma expressão não designa um objecto, mas veicula um CONTEÚDO CULTURAL” (Eco, 2005: 51). A noção de ‘tipos de signos’ parece pois ter de dar lugar à noção de ‘tipos de produção sígnica’, devendo estes ser pensados a partir de um “aparato categorial unificado” (Eco, 2005: 153) e por isso independente da diversidade e da precariedade das relações que se estabelecem entre signos e conteúdos. “[C]onquanto exista uma indubitável diferença entre a palavra |cão| e a imagem de um cão, essa diferença não é tão clara como o quer a divisão dos signos em arbitrários (e convencionais) e icónicos. Trata-se sobretudo de uma progressão contínua e complexa de MODOS DE PRODUÇÃO, de forma que toda a função sígnica resulta do entrelaçamento de mais de um desses modos” (Eco, 2005: 169).

Para Eco, a contestação da noção de ‘signo icónico’ é inevitável face à noção que dá de ‘signo’ (Eco, 2005: 40). Se a constituição de um signo exige uma correlação convencionalmente estabelecida, então deve ser recusada a possibilidade de existirem

signos cujo desempenho assente na posse de propriedades do ou numa semelhança ‘natural’ com o seu objecto. Ainda assim, a conclusão de que os signos ditos icónicos mantêm uma relação arbitrária com os seus objectos, à imagem da generalidade dos signos verbais, deve, para Eco, ser prudente, evitando assim uma postura dogmática de sentido oposto àquele que marca a definição constante da trilogia de Peirce. “O âmago do problema é dado aqui, obviamente, pela noção de ‘convenção’, que não é co-extensiva à de ‘liame arbitrário’, mas é de qualquer maneira co-extensiva à de liame CULTURAL” (Eco, 2005: 169). Eco (1997; 2005) questionará a noção de ‘iconismo’ de modo progressivo, partindo dos argumentos da posse de propriedades e de semelhança até ao reajustamento do significado da representação icónica.

A possibilidade de um signo deter propriedades do seu objecto é contestada por Eco a partir dos limites que Morris parece desde logo reconhecer na sua definição de signo icónico. Perante a evidência da diferença existente entre um retrato e o seu retratado, Morris ressalvaria que “o retrato de uma pessoa é icónico até certo ponto, mas não o é completamente, porque a tela pintada não tem a estrutura da pele, nem a faculdade de falar e de mexer-se que tem a pessoa retratada” (Morris citado por Eco, 1997: 100). Comparativamente, uma película cinematográfica seria mais icónica, ainda que nunca na totalidade. Morris faria ainda uma outra ressalva, substituindo agora a exigência de posse de propriedades pelo reconhecimento de semelhanças, aproximando-se nisso da definição de Peirce. “Um signo icónico, não esqueçamos, é um signo semelhante, em alguns aspectos, ao que denota. Consequëntemente, a iconicidade é uma questão de grau” (Morris citado por Eco, 1997: 100, 101). Investidas de um aparente esforço de rigor, estas concessões “absolvia[m] a obrigação de prudência e verosimilhança” (Eco, 2005: 171) – ironiza Eco –, revelando afinal a dificuldade de Morris em sustentar a sua definição de signo icónico. De qualquer modo, independentemente das ressalvas de Morris, a posse de propriedades de um objecto por parte de um signo teria sempre de ser relativa. A menção feita por Massironi à “dialéctica entre enfatismo e exclusão” (Massironi, 1989: 70) implicada na representação tem aqui uma particular evidência. Se assim não fosse, se essa posse de propriedades não fosse relativa, esses signos seriam, na terminologia de Eco (2005: 159), ‘duplos exactos’, não tendo sequer sentido observar aí uma relação icónica – “[d]ois Fiat 124 da mesma cor devem ser considerados dois duplos e não a recíproca representação icónica” (Eco, 2005: 159). A possibilidade de um signo ser semelhante ao seu objecto é igualmente contestada por Eco. Trata-se, contudo, de uma contestação diversa da anterior – Eco põe em causa não o eventual reconhecimento de semelhanças, mas aquilo que está na base

desse reconhecimento. Confirmada a impossibilidade de assentar numa partilha de propriedades, Eco pondera a possibilidade de a semelhança advir de uma proximidade perceptiva. As observações de Arnheim acerca da efectivação de uma representação parecem confirmar essa possibilidade. “Com facilidade descobrimos e aceitamos o fato de um objeto no papel representar um completamente diferente na natureza, desde que nos seja apresentado em seu equivalente estrutural para o meio dado. [...] A razão psicológica deste fenômeno surpreendente é, primeiro, que, na percepção e pensamentos humanos, a semelhança baseia-se não numa identidade meticulosa, mas na correspondência das características estruturais essenciais; segundo, que uma mente pura entende espontaneamente qualquer objeto dado conforme as leis do seu contexto” (Arnheim, 1994: 131). De facto, a representação ocorre porque se reconhece num objecto um equivalente estrutural de outro objecto. Mas Eco aponta que isso não decorre de uma imediata equivalência perceptiva, como se as estruturas constituídas nas percepções do signo e do seu objecto naturalmente coincidissem. E não será assim desde logo por causa da distinção que sempre existirá entre os objectos e as suas representações. O processo comporta um outro grau de complexidade. Para que esse reconhecimento tenha lugar, terá de existir “uma CONVENÇÃO GRÁFICA [que] autoriza a TRANSFORMAR no papel os elementos esquemáticos de uma convenção perceptiva ou conceitual que motivou o signo” (Eco, 2005: 171) – Eco refere-se à linha que desenha o perfil de uma mão. É isso que está afinal implícito também nas observações de Arnheim (1994: 130), quando refere que a representação implicará uma recriação de propriedades. A transformação referida por Eco concretiza-se na recriação referida por Arnheim. Assim, ao invés de uma confirmação de semelhanças naturalmente dadas, “o juízo de semelhança é pronunciado com base em critérios de pertinência fixados por convenções culturais” (Eco, 2005: 172). Os exemplos a partir dos quais Gombrich (1995: 35-41) verifica a distinta capacidade de reconhecer como realistas algumas imagens demonstram, para Eco (1997: 108-110), a origem cultural da semelhança e, portanto, o carácter convencionado dos signos ditos icónicos.

Eco (2001) aborda ainda a possibilidade de ligar a iconicidade de um signo à noção geométrica de ‘semelhança’ 94 – a noção “possui um status mais preciso do que ‘ter as

94

No texto original, Eco refere ‘nozione di SIMILITUDINE’ (Eco, 1993: 260). Na versão consultada do texto (Eco, 2005), que foi traduzida segundo a norma brasileira da língua portuguesa, a noção é identificada como ‘noção de similaridade’. Em Portugal, a noção é identificada como ‘noção de semelhança’, sendo essa a designação agora adoptada. Estranhamente, a definição apresentada por Eco diverge da definição considerada pela geometria euclidiana – Eco apresenta-a “como a propriedade de duas figuras que são iguais em tudo salvo no formato” (Eco, 2005: 172); a geometria euclidiana define que “[t]riângulos semelhantes são aqueles que têm a mesma forma mas podem ter tamanhos diferentes” (Araújo, 1999: 47), podendo a definição ser generalizada a outras figuras geométricas pertencentes a espaços de iguais dimensões.

mesmas propriedades’ ou de ‘assemelhar-se a...’” (Eco, 2005: 172). Mas também esta noção assenta numa convenção, mesmo estando em causa a ‘congruência’ 95, o caso mais completo da semelhança. A congruência entre figuras simples pertencentes a espaços de iguais dimensões – entre quadrados, no espaço bidimensional, ou entre cubos, no espaço tridimensional, por exemplo – será clara, mas o mesmo parece já não acontecer quando se estende a noção à representação. Estão aí em causa figuras mais complexas e que normalmente pertencem a espaços de dimensões distintas. Assim, “uma máscara mortuária é congruente quanto à forma, mas faz abstração da matéria, da cor e de uma série de outros pormenores” (Eco, 2005: 173), e uma pintura ou uma fotografia não poderão de todo ser congruentes, ou sequer semelhantes, com um objecto tridimensional, o mesmo acontecendo com um gráfico em relação a um conteúdo abstracto. Nesses casos, mais uma vez, só uma convenção parece poder assegurar a transformação de uns nos outros, permitindo então o reconhecimento de semelhanças ou de congruências entre ambos. Assim, conclui Eco – ainda a propósito da linha que desenha o perfil de uma mão –, dá-se a “instituição de uma relação de similaridade através da correspondência, TRANSFORMADA PONTO POR PONTO, entre um modelo visual abstrato de mão humana e a imagem desenhada” (Eco, 2005: 176). De qualquer modo, para Eco (2005), a congruência comporta um baixo grau de convenção se comparada, por exemplo, com representações mais estilizadas.

A noção geométrica de ‘semelhança’ será retomada já que, estando associada a tridimensionalidade, parece poder justificar a eventualidade de a maqueta ser isenta de uma estrita condição codificada.

No documento Para uma definição de maqueta (páginas 85-89)