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A perspectiva socioambiental do Fashion Law

No documento Future law (páginas 179-182)

FASHION LAW SOB UMA PERSPECTIVA SOCIOAMBIENTAL Mariele Cristina De Abreu Zoratto

4. A perspectiva socioambiental do Fashion Law

A Moda é um instrumento vital na manutenção da cultura consumista e, consequentemente, da perpetuação do modelo da sociedade de consumidores. Como visto, seu sistema se expandiu para outros nichos de mercado e os modos de produção seguem os ditames da velocidade, obsolescência, descarte; os produtos prometem satisfação, identidade, diferenciação e pertencimento. Esse modelo de sociedade e de economia tem ocasionado impactos socioambientais muito profundos.

O primeiro deles a ser destacado é consumismo. Questão estrutural do modelo de sociedade vigente bem como do atual estágio do sistema capitalista, conforme já enfrentado no capítulo 2 deste artigo, é em torno dele que o sistema opera.

Baudrillard destaca que o consumo é um fenômeno social e socialmente valorado19, ao passo que Bauman o entende como elemento de coesão social20. Isso

demonstra o caráter intrínseco do consumo, e de sua versão mais agravada – o consumismo, na perpetuação do modelo de sociedade estabelecido.

O consumismo ocasiona séria crise ambiental. Produção e consumo excessivos invariavelmente geram resíduos abundantes, seja ao longo do processo de produção ou no descarte pós-consumo. Na indústria da moda, além dos riscos de contaminação na criação de matérias-primas e, posteriormente, tecidos, há geração abundante de resíduos sólidos.

Anicet e Ruthschilling explicam que a não sustentabilidade na indústria da moda começa desde as matérias-primas, sendo que hoje não é mais possível afirmar que as fibras naturais causam menos impactos ambientais que as sintéticas ou aritificiais:

“Atualmente as matérias-primas naturais, assim como as sintéticas, têm intervenção direta no homem, seja através de químicos durante o processo, seja através da dispersão de água ao longo do processo. É difícil classificaar qual das fibras, aritificiais, sintéticas e naturais, causam menor impacto na natureza. Em relação às fibras naturais, existem os agrotóxicos, o desmatamente para plantação ou a criação de animais cujo pelo ou secreção fornecem fibra. A

19 BAUDRILLARD (2010). 20 BAUMAN (2008).

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sintética origina-se de uma matéria-prima não renovável, o petróleo, e demora muito tempo para se decompor. As fibras aritificiais, apesar de serem de origem natural, passam por um processo de transformação que utiliza muitos químicos.”21

Nessa linha, Alencar et al relatam a situação do Brasil: “no que se refere à produção de fios e fibras de origem natural e, em especial ao cultivo algodoeiro, o Brasil é autossuficiente, mas em decorrência dessa grande produção é intensa a utilização de pesticidas, inseticidas e fertilizantes para obtenção da eficiência produtiva coloca em risco a salubridade dos trabalhadores além de potencializar danos ambientais pela contaminação dos recursos naturais.”22

Por tanto, para se obter a fibra que dá início à cadeia produtiva das peças de vestuário, os impactos ambientais passam por contaminação de recursos naturais e dos trabalhadores, e desperdício de água.

A questão da água continua sendo preocupante nas próximas etapas do processo. A produção de tecidos consome uma grande quantidade de água, mas os problemas não param por ai. Além disso, substâncias químicas são utilizadas no beneficiamento e tingimento, o que gera volumes significativos de efluentes, que se não forem adequadamente tratados e destinados, podem comprometer o equilíbro e a salubridade dos cursos d’água.23

Ao chegar na etapa de confecção, o problema são os resíduos sólidos. Aparas, retalhos, papelão, plástico e subprodutos químicos indevidamente descartados comprometem a qualidade de vida da população urbana, ao se tornarem volumes imensos de lixo.

Nas cidades, nem sempre esses resíduos tem uma destinação adequada, e vão parar em lixões comuns. “O meio urbano sofre intensa e constantemente com os impactos gerados por seus habitantes, principalmente com a industrialização das cidades que, embora ocasione benefícios com a geração de emprego e renda, comprometem e impactam profundamente o meio ambiente e a população nela inserida.”24

Acerca da etapa de corte, maior geradora de resíduos, Alencar et al apontam que os principais motivos de tamanho volume são falta de conhecimento prévio das dimensões do tecido, enfesto inadequado, mau planejamento de criação, modelagem, corte e encaixe, falta de padronização das máterias-primas, mão-de-obra desqualificada, maquinário impróprio e corte manual.25

Os impactos ambientais não se limitam ao processo produtivo: na fase de pós- consumo a produção de resíduos também é altíssima. Conforme já destacado anteriormente, o descarte é parte fundamental na lógica do capitalismo e da sociedade

21 ALICET; RUTHSCHILLING (2013), p. 3. 22 ALENCAR et al (2015), p. 480. 23 Ibid. 24 ALENCAR et al. (2015), p. 481. 25 Ibid.

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de consumo. Tudo aquilo que não se quer mais, em uma primeira análise, vira lixo. Somente em etapa posterior será dado outro destino às peças, a exemplo de doação,

upcycling, reciclagem etc., mas a omissão de qualqur medida apenas faz agravar os

volumes de resíduos sólidos, principalmente nas cidades.

Com a globalização da cadeia produtiva de moda, especialmente de fast fashion, ainda que a produção dos bens de consumo se concentre mais em um país ou outro, os danos ambientais são sentidos globalmente, e o lixo doméstico abrange todos os cantos do planeta.

A partir da ideia de ubiquidade, que exige que a questão ambiental seja pensada em todas prática legiferante ou política, parte do pressuposto de que no meio ambiente, lesões locais podem se tornar problemas globais. “De fato, não há como pensar no meio ambiente dissociado dos demais aspectos da sociedade, de modo que ele exige uma atuação globalizada e solidária, até mesmo porque fenômenos como a poluição e da degradação ambiental não encontram fronteiras e não esbarram em limites territoriais.”26

Além disso, o mundo do consumo passa por uma crise ética. O consumismo depende de produtos a preço acessível. Dentre os elementos que garantem a acessibilidade, o baixo custo da mão de obra é um dos mais relevantes.

Alguns países em desenvolvmento, como China e Bangladesh, tornaram-se produtores de itens vendidos mundialmente, e as condições de trabalho não raro são subumanas. Longhi e Santos, em um interessante estudo histórico sobre as condições de trabalho na indústria têxtil, destacam a exploração do ser humano que ocorre na indústria do vestuário, geralmente em empresas terceirizadas ou subcontratadas, chamadas sweatshops.27

Existem várias características que rebaixam uma indústria a um sweatshop, que incluem violação de várias leis trabalhistas, remuneração abaixo do piso da categoria, jornada de trabalho excessivamente longa sem pagamento de horas extras, ambiente de trabalho insalubre, assédio moral e sexual, impossibilidade de negociação das condições de trabalho, emprego de imigrantes ilegais etc. “Atualmente, empresas ligadas à indústria da moda ainda operam nos moldes pré-industrial no que concerna às condições de trabalho. Nesses locais há trabalho infantil e até escravo, não são tomadas medidas para a segurança dos funcionários e do ambiente de trabalho e a remuneração é abaxio do praticado no setor.”28

O argumento de que tais indústrias geram emprego, como se isso fosse suficiente para justificar qualquer abuso, é extremamente questionável sob uma perspectiva de direitos humanos.

26 FIORILLO (2017), p. 97. 27 LONGHI; SANTOS (2016). 28 Ibid., p. 89.

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Imagens reais dos problemas discutidos podem ser vistas no documentário The

True Cost, dirigido por Andrew Morgan, que relata desde a produção agrícola dos

insumos até a chegada dos produtos aos centros comerciais, passando por questionamentos acerca do consumismo, contaminação ambiental, ofensa à dignidade dos trabalhadores etc.

Essas questões estão inseridas no contexto da sustentabilidade. De acordo com a muito difundida triple botton line, ou tripé da sustentabilidade, deve existir equilíbrio entre economia, meio ambiente e sociedade.29

Diante disso, muito embora economicamente a indústria da moda seja um sucesso inegável, é flagrante a falta de sustentabilidade ambiental e social.

Nesse sentido, diversas ações já estão sendo empreendidas para eliminar, ou ao menos minimizar, os problemas suscitados. Shulte e Lopes destacam as certificações ISO, tecido ecovogt, algodão orgânico, reciclagem de roupas e objetos, roupa orgânica etc30. Já Anicet e Rithschilling acrescentam o processo zero waste.31 Embora

implementados novos processos, a preocupação com a destinação dos resíduos eventualmente gerados deve continuar, e, antes de se pensar em descarte, eles podem ser reinseridos no ciclo produtivo:

“Os resíduos têxteis podem ser incorporados a outros ciclos produtivos, mas caso isso não seja possível, cabe ao empresário responsabilizar-se pela correta destinação deste material, evitando impactos ao meio ambiente. Os resíduos podem ser mais do que apenas rejeitos sem utilidade, podem apresentar um valor específico, principalmente quando são vistos como matéria-prima para outros produtos.”32

O Direito que estuda a Moda não pode negligenciar tais questões. O enfoque socioambiental apresentado carrega interesse público, seja do Estado, provedor de políticas públicas, ou da sociedade civil, diretamente interessada num futuro melhor e mais sustentável.

Portanto, essas questões, tão impregnadas no universo da moda, devem fazer parte do estudo do Fashion Law, que tem potencial para ser muito mais que um segmento de propriedade intelectual, a fim de que no bojo dessa disciplina soluções possam ser discutidas e implementadas, isso feito pelos atores privados, públicos, e também pela sociedade civil.

5. Considerações finais

O desenvolvimento de especialidades no Direito aponta a necessidade de compreensão aprofundada de determinados assuntos, a fim de que o jurista possa

29 SEBRAE, 2015.

No documento Future law (páginas 179-182)

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