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Introdução: o regime dos auxílios de Estado na União Europeia

No documento Future law (páginas 97-101)

A OBRIGAÇÃO DE RECUPERAÇÃO DOS AUXÍLIOS DE ESTADO DE NATUREZA FISCAL DECLARADOS ILEGAIS NA UNIÃO EUROPEIA

1. Introdução: o regime dos auxílios de Estado na União Europeia

Num contexto internacional de forte globalização das relações económicas e consequente transformação do comércio mundial, o desenvolvimento de novas políticas económicas e fiscais por parte dos Estados e das organizações internacionais assume um lugar de destaque, colocando a prioridade em desafios que se iniciam com a preocupação em reduzir obstáculos aduaneiros e evoluem para a criação de uniões económicas e políticas, como no caso da União Europeia (UE).

Aceitar pertencer a uma organização internacional significa aceitar desafios e submeter-se a uma nova ordem jurídica que passa a ser determinante nas escolhas adotadas pelos Estados-membros. Assim acontece com Portugal e Espanha desde 1986, altura em que se tornaram membros de pleno direito da UE. Pertencer à UE condiciona de alguma maneira o poder dos Estados-membros que cedem parte da sua soberania, em alguns domínios mais do que noutros.

A intervenção dos Estados na economia tem sido, ao longo dos anos, uma realidade incontornável, e continua a sê-lo nos dias de hoje, principalmente marcada pela crise económica e financeira que tem afetado a UE e grande parte dos seus Estados-membros. Mas esta competência para intervir na economia tem, para os Estados-membros, fortes limitações, na medida em que está sujeita aos princípios e normas do quadro jurídico da UE e, desse modo, submetida ao controlo por parte das instituições desta organização internacional.

Um dos objetivos da integração europeia é o estabelecimento de um mercado interno regido pelo princípio da livre concorrência, consagrado como um dos princípios básicos do funcionamento da UE. Esta situação ideal de concorrência pode, contudo, ser distorcida pelas práticas adotadas pelas empresas participantes no mercado ou pelas condutas dos Estados-membros. Nesse sentido, a atuação dos Estados-membros assume uma importância particularmente elevada na medida em que pode traduzir-se em medidas de auxílios a determinadas empresas, colocando-as numa situação mais favorável que os seus concorrentes, libertando-as da sujeição às regras do mercado e à pressão da concorrência. Por isso, as normas da UE relativas ao Direito da concorrência pretendem evitar que as ações dos Estados-membros se traduzam em auxílios públicos que podem afetar o bom funcionamento do mercado interno.

Os auxílios estatais constituem um dos únicos meios de protecionismo a que os Estados-membros poderão ser tentados a recorrer para auxiliarem as suas empresas e produções, tentação intensificada em alturas de crise, muitas vezes protegendo empresas

1 Professora-adjunta da Escola Superior de Gestão do Instituto Politécnico do Cávado e do Ave.

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ineficientes e promovendo artificialmente a sobrevivência de empresas em rutura, procurando que estas adquiram uma posição dominante no alargado mercado europeu.

Os Estados-membros revelam-se cada vez mais criativos na hora de levar a cabo a sua intervenção na economia, recorrendo a diversos tipos de auxílios, desde os mais clássicos e diretos (como os subsídios) a formas mais inovadoras e indiretas (por via de privatizações, garantias, compras ou vendas através de empresas públicas,…).

Uma das mais tradicionais formas de intervenção e que continua a ter destaque atualmente é o recurso a políticas de incentivos fiscais.

Dentro do mercado interno, cada um dos Estados-membros da UE continua a ser em larga medida soberano no que diz respeito à Fiscalidade. Neste contexto, não pode haver dúvida de que cabe aos Estados-membros tomar decisões sobre o aumento ou diminuição da carga fiscal global dentro da sua jurisdição.

No entanto, o Direito Financeiro e Fiscal hoje não pode ser analisado sem ser no contexto da integração na UE, condicionado pelas quatro liberdades de circulação fundamentais que configuram o mercado interno e pelas decisões jurídicas e políticas das instituições da União que estreitam a margem de autonomia dos Estados na hora de configurar o seu próprio sistema fiscal.

Os auxílios de Estado, quer os que consistem em tratamentos mais favoráveis, designadamente de natureza fiscal (isenções, reduções, bonificações), quer os que se traduzem na atribuição de subsídios ou realização de transferências com diversos objetivos, a favor de empresas, são sinónimo de protecionismo do Estado e, como tal, colocam em causa a realização dos princípios da livre concorrência e da livre circulação de mercadorias, pessoas e capitais.

Os sistemas fiscais dos Estados-membros podem ser utilizados como instrumento de concorrência fiscal desleal com o objetivo de atrair e localizar investimentos nos seus territórios. O atual contexto de crise pode também ser propício à utilização dos sistemas fiscais com vista a captar investimentos e a auxiliar políticas de desenvolvimento económico e de combate aos défices nacionais, através da concessão de benefícios fiscais e do desenho de medidas fiscais que podem nem sempre assentar numa postura ética e de boa governação fiscal.

E nesse sentido, ao estabelecer no n.º 1 do artigo 107.º do Tratado sobre o Funcionamento da UE (TFUE) que «Salvo disposição em contrário dos Tratados, são incompatíveis com o mercado interno, na medida em que afetem as trocas comerciais entre os Estados-Membros, os auxílios concedidos pelos Estados ou provenientes de recursos estatais, independentemente da forma que assumam, que falseiem ou ameacem falsear a concorrência, favorecendo certas empresas ou certas produções», está a ser reconhecido no Direito da UE originário o papel fundamental do regime jurídico dos auxílios de Estado como forma de corrigir, pelo menos em certa medida, a intervenção dos Estados-membros, nomeadamente aquela que é levada a cabo através da concessão de benefícios e incentivos seletivos, de qualquer natureza, incluindo os de natureza fiscal. E a verdade é que o exercício

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da soberania fiscal que os Estados-membros conservam, essencialmente no âmbito da fiscalidade direta, pode ser incompatível com o mercado interno.

Nesse sentido, quando se coloca a questão da adequação dos auxílios de Estado ao Direito da UE, não podemos deixar de fazer referência à adequação das medidas de natureza fiscal, uma vez que tal natureza não impede que um auxílio possa ser afetado pela incompatibilidade prevista no artigo 107.º do TFUE.

Por isso, num espaço de integração como a UE, surge a necessidade de fiscalizar a intervenção dos Estados-membros na economia, nomeadamente a intervenção que resulta da aplicação de medidas de natureza fiscal. Desta forma, as medidas fiscais nacionais estão correntemente sob escrutínio da Comissão Europeia. A par do Código de Conduta sobre a Fiscalidade Direta das Empresas, as regras relativas aos auxílios de Estado refletem a preocupação da UE relativamente à possibilidade dos sistemas fiscais nacionais manterem regimes “encapotados” de auxílios às empresas que ponham em causa a construção do mercado interno, pilar fundamental da construção europeia.

No entanto, garantir que a configuração dos sistemas fiscais nacionais não cria distorções às condições de bom funcionamento do mercado interno e da livre concorrência não implica, nem pode implicar, uma incidência de tal maneira forte que conduza à ausência de qualquer intervenção pública dos Estados no seu ordenamento ou o desaparecimento da toda a atividade financeira própria de cada Estado. Trata-se de um instrumento que deve ser utilizado de forma equilibrada e articulado com os mecanismos previstos no próprio Tratado e tendo em vista o seu carácter instrumental.

As dificuldades para encontrar a correta eliminação das distorções fiscais mediante uma harmonização fiscal, têm conduzido a Comissão Europeia a procurar alcançar esse objetivo mediante o recurso ao regime dos auxílios de Estado na UE, aproveitando a competência exclusiva de que goza nesse domínio.

O regime de proibição dos auxílios de Estado é um dos pilares essenciais da política da concorrência da UE e um instrumento ao serviço do correto funcionamento do mercado interno, constituindo um dos campos do regime jurídico da UE que mais repercussão tem no Direito nacional dos Estados-membros, particularmente no âmbito do Direito Tributário nacional, traduzindo-se num instrumento importante para evitar as intervenções estatais que possam prejudicar a livre concorrência por impedirem a eficiente afetação de recursos2.

A solução comunitária definida no Tratado para adequar os auxílios de Estado à concorrência foi a adoção do princípio da proibição, nos termos do n.º 1 do artigo 107.º do TFUE.

Como características básicas dos auxílios de Estado nas quais há acordo doutrinal, e que decorrem do âmbito de aplicação da proibição prevista no n.º 1 do artigo 107.º do TFUE,

2 SANTOS (2003) conclui que a principal função do instituto dos auxílios de Estado é a de fiscalizar a intervenção do Estado, contendo os seus efeitos nefastos e incrementando os seus efeitos benéficos, permitindo o controlo da atribuição de vantagens específicas atribuídas pelos poderes públicos a certas empresas ou sectores e a definição de uma política comunitária de viabilização das medidas estaduais que sejam conformes com os interesses da União.

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são incompatíveis com o mercado interno aquelas medidas, independentemente da forma que assumam, que através de fundos públicos provoquem uma vantagem económica em determinadas empresas/produções (seletividade), cujo resultado falseie ou ameace falsear a concorrência e afete o comércio intracomunitário.

Esses requisitos devem reunir-se da mesma forma para verificarmos quando estamos perante um auxílio de Estado de natureza fiscal na medida em que resulta do próprio Tratado e também da jurisprudência um princípio de irrelevância conceptual da forma que o auxílio de Estado pode revestir, compreendendo «(…) não só prestações positivas tais como as próprias subvenções, mas igualmente intervenções que, sob formas diversas, atenuam os encargos que normalmente oneram o orçamento de uma empresa e que, por isso, sem serem subvenções no sentido estrito do termo, têm a mesma natureza e têm efeitos»3. Desta forma, a proibição dos auxílios de Estado converte-se num instrumento

através do qual se observam os sistemas tributários nacionais, de forma a impedir que os mesmos sejam utilizados para favorecer determinadas empresas, pondo em causa o equilíbrio concorrencial4.

Para que o princípio geral de proibição seja eficaz, a Comissão tem que garantir que nenhum auxílio de Estado contrário ao princípio geral de proibição seja aplicado. Caso tal se venha a verificar, é necessário atuar de forma a repor a situação de concorrência que se verificava antes da concessão do auxílio, o que apenas se conseguirá por via da obrigação do beneficiário restituir o auxílio recebido. Desta forma, consideramos que o regime dos auxílios de Estado na UE assenta em 3 pilares fundamentais: a proibição, como princípio geral; a notificação, a que estão obrigados os Estados-membros, antes de aplicarem qualquer auxílio de Estado; e a recuperação dos auxílios declarados ilegais e incompatíveis com o mercado interno.

Neste trabalho procuramos fazer um breve enquadramento da obrigação de recuperação dos auxílios de Estado declarados ilegais e dos principais problemas que se levantam em torno da sua execução. Para tal recorremos a uma metodologia que se baseia na análise da regulamentação da UE sobre a matéria, da jurisprudência mais relevante e da doutrina nacional e internacional. Em todo o trabalho daremos particular relevo à aplicação desta temática aos auxílios de Estado de natureza fiscal.

3 Ac. do TJUE de 23/02/1961, proc.30/59, §1.

4 Como refere SOLER ROCH (2006), p. 13 «el principio general de prohibición de las ayudas de Estado ilegítimas se proyecta sobre los ordenamientos tributarios de los Estados miembros, constituyendo de este modo, una importante limitación a tener en cuenta en el ejercicio del poder tributario y por ende, un elemento condicionante de las políticas fiscales (…)».

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2. A declaração de ilegalidade e a obrigação de recuperação dos auxílios

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