• Nenhum resultado encontrado

Difusão do sistema moda

No documento Future law (páginas 173-177)

FASHION LAW SOB UMA PERSPECTIVA SOCIOAMBIENTAL Mariele Cristina De Abreu Zoratto

2. Difusão do sistema moda

Teóricos dividem a modernidade em dois perídos ideologicamente opostos, sendo a distinção feita por Zygmunt Bauman, o grande sociólogo de contemporaneidade, a que reflete melhor as características de nosso tempo.

Ao situarnos na modernidade líquida, Bauman sustenta que deixamos para trás a modernidade sólida, em que o coletivo sobrepujava o individual, o controle era tangível e panóptico, a tendência da sociedade era homogeneizante. O objetivo dessa fase, em que vigorava a denominada sociedade de produtores, era a segurança e a durabilidade. O tema é recorrente em suas obras, e em especial em Vida para consumo:

“A sociedade de produtores, principal modelo societário da fase ‘sólida’da modernidade, foi basicamente orientada para a segurança. Nessa busca, apostou no desejo humano de um ambiente confiável, ordenado, regular, trasnparente e, como prova disso, duradouro, resistente ao tempo e seguro. Esse desejo era de fato uma matéria-prima bastante conveniente para que fossem construídos os tipos de estratégias de vida e padrões comportamentais indispensáveis para atender à era do ‘tamanho é poder’ e do ‘grande é lindo’: uma era de fábricas e exércitos de massa, de regras obrigatórias e conformidade às mesmas, assim como de estratégias burocráticas e panópticas de denominação que, em seu esforço para evocar disciplina e subordinação, basearam-se na padronização do comportamento individual.”2

Desde o século XX, mais precisamente a partir de sua segunda metade, o mundo

174

(ou grande parte dele) passou a caminhar em direção à modernidade líquida, aquela em que o individual subjuga o coletivo, o controle é difuso e intangível, e a tendência é uma sociedade cada vez mais pluralista, heterogênea, atomizada e individualista, em que eventos se sobrepõem numa velocidade inimaginável até então, e nada mantém sua forma por muito tempo:

“A história da humanidade é apresentada como uma longa marcha rumo à liberdade pessoal e à racionalidade. Seu último estágio, a passagem da sociedade de produtores para a de consumidores, em geral é apresentado como um processo gradual, a ser finalmente completado, de emancipação dos indivíduos das condições originais de ‘não escolha’ e depois de ‘escolha ilimitada’, de cenários estabelecidos e rotinas obrigatórias, de vínculos inegociáveis, preordenados e prescritos, e de padrões comportamentais compulsórios, ou pelo menos inquestionáveis. Em suma, essa passagem é apresentada como outro salto, possivelmente o salto conclusivo, do mundo das restrições e da falta de liberdade para a autonomia e o autodomínio individuais.”3

Tal movimento é em sua essência contraculturalista, se contraposto à ideologia da sociedade de produtores. A luta contra o “sistema” opressor e supressor da individualidade ganhou cada vez mais força no ideário social, até que hoje é possível afirmar que a contracultura venceu, e se tornou a cultura dominante.

Dentro da modernidade líquida, Bauman trabalha o conceito de sociedade de consumidores. As características do novo estágio da modernidade muito se dão em virtude do papel que o consumo passou a desempenhar. Se na modernidade sólida a sociedade era de produtores, na era líquido-moderna ela é de consumidores. Nunca se deixou de consumir ou produzir, a diferença está em qual papel é o principal.

Essa modalidade de organizção social é viabilizada pela cultura consumista, aquela que sem distinções de idade, raça, gênero etc., se destina a todos. A vocação consumista se baseia em desempenho individual. A partir da concessão de liberdade de escolha, o peso do sucesso e do fracasso recai exclusivamente sobre o indivíduo. Os consumidores falhos, aqueles que não conseguem acompanhar o ritmo da sociedade de consumo, são excluídos. Excesso é a palavra de ordem, e o descarte promete uma incrível sensação de alívio. O movimento, em busca do novo, é o comportamento esperado:

“A síndrome cultural consumista consiste, acima de tudo, na negação enfática da virtude da procrastinação e da possível vantagem de se retardar a satisfação – esses dois pilares axiológicos da sociedade de produtores governada pela sídrome produtivista. [...] Ela ergue o valor da novidade acima do valor da permanência. [...] A ‘síndrome consumista’ envolve velocidade, excesso e

desperdício.”4

Acontece que as ideias de velocidade, mudança, tirania do novo e contracultura sempre pertenceram à Moda. Aqui entendida como fenômeno que extrapola vestuário, e

3 BAUMAN, p. 81

Fashion Law sob uma perspectiva socioambiental

175

se estende pelas mais diversas áreas, é possível afirmar que estamos vivendo sua ideologia. O princípio da moda é criar uma velocidade cada vez maior, tornar um objeto supérfluo o mais rapidamente possível, para que um novo tenha chance5. Essa é

justamente a lógica da sociedade de consumidores.

Tal ideia foi tratada já em 1987 pelo filósofo francês Gilles Lipovetsky. Em sua obra O império do efêmero afirma que, muito embora empiricamente esse tipo de organização social possa ser caracterizada pela elevação dos níveis de vida, abundância de mercadorias e serviços, culto dos objetos e dos lazeres, moral hedonista e materialista etc., estruturalmente é a generalização do processo de moda que a define: “a sociedade centrada na expansão das necessidades é, antes de tudo, aquela que reordena a produção e o consumo de massa sob a lei da obsolescência, da sedução e da diversificação, aquela que faz passar o econômico para a órbita da forma moda.”6

O autor continua sua argumentação ao afirmar que é a ordem burocrático- estética que comanda a economia de consumo, agora reorganizada com base na sedução e no desuso acelerado, em que “a lógica econômica realmente varreu todo ideal de permanência, é a regra do efêmero que governa a produção e o consumo dos objetos”.7

Embora criticada ao longo da história por sua superficialidade, pela necessidade irracional de mudança, ou até mesmo por qualidades estéticas, foi a Moda que tornou habitual às pessoas a transitoriedade, a distinção aliada ao pertencimento, a representação visual do indivíduo. Vem dela a substituição do velho pelo novo (ou até mesmo a própria ideia de novo), de uma tendência por outra, ou de uma teoria dominante por outra mais atualizada. No plano ideológico, conta com o combate à tradição, ao conformismo, à homogenização.

Acontece que nem a Moda, indutora do comportamento da sociedade de consumo, restou imune a seu ritmo. As maneiras de viver, produzir e consumir aceleraram vertiginosa-mente, e a Moda seguiu esse mesmo rumo. Nesse panorama surge um novo método de produção de bens e satisfação dos consumidores: o fast

fashion.

Fast fashion – em tradução livre, moda rápida - é um modelo de produção da

indústria da moda, que opera em escala global, é pautado na renovação rápida dos estoques e no baixo preço das peças. A moda rápida, mais conhecida como fast fashion, é uma prática de grandes empresas internacionais de moda e redes de distribuição que conseguiram seduzir sua clientela graças à atualização constante do design de suas peças e aos baixos preços de seus produtos.8

Num ambiente tão dinâmico, a novidade nem sempre significa inovação. O que realmente opera são as “microdiferenças”9, e o foco no consumo, pois “com o sistema de

5 SVENDSEN (2010), p. 30. 6 LIPOVETSKY (2009), p. 184. 7 Ibid., p. 185. 8 SALCEDO (2014), p. 26. 9 LIPOVETSKY (2009).

176

fast fashion há uma redução das pesquisas de tendências de comportamento, focando

mais na pesquisa de consumo, ou seja, observa-se o que as pessoas realmente estão consumindo”.10

Longe de ser uma imposição aos consumidores, o que movimenta a engrenagem do sistema moda é exatamente a demanda cada vez mais crescente por novidades, e uma busca incessante por satisfação, identidade, pertencimento, segurança e liberdade, tudo a um preço acessível.

Alguns desses anseios são contraditórios, como liberdade e segurança, e tal dicotomia vem sendo trabalhada por diversos pensadores consagrados, como Sigmund Freud e Georg Simmel, mas é justamente essa impossibilidade de conciliação que move o ser humano, e o mercado está repleto de “remédios”, consumíveis, para tais dilemas.

Bauman, que também trata dos irreconciliáveis anseios, sustenta que a sociedade de consumo baseia-se na promessa de satisfazer os desejos humanos como nunca antes feito por outras modalidades de sociedade. Entretanto, a promessa de satisfação só parece sedutora enquanto o desejo continua insatisfeito. “A sociedade de consumo prospera enquanto consegue tornar perpétua a não satisfação de seus membros”.11

Isso é feito de duas maneiras: a primeira delas é pela depreciação dos produtos logo após terem sido promovidos no universo de desejo dos consumidores, e a segunda é pela satisfação de necessidades/desejos/vontades de maneira que consigam geram novas necessidades/desejos/vontades, gerando uma compulsão ou vício.

Isso dá origem a um círculo vicioso de busca por uma satisfação anunciada, mas intangível, ou talvez inexistente, bem como de aquisição-uso-descarte de produtos que rapidamente perdem seu valor, e não raro sequer passam pela etapa de uso. Ou seja, a insatisfação é o motor do consumismo.

A economia consumista, portanto, é baseada no excesso e no desperdício. “É pela alta taxa de desperdício, e pela crescente distância temporal entre o brotar e o murchar do desejo, que o fetichismo da subjetividade se mantém vivo e digno de crédito, apesar da interminável série de desapontamentos que ele causa. A sociedade de consumidores é impensável sem uma florescente indústria de remoção do lixo”.12

Aqui já é possível vislumbrar uma questão que será melhor discutida nos tópicos seguintes: a alta produção de resíduos sólidos pela sociedade de consumidores, especialmete na indústria da moda.

A ideia do descarte já havia sido apresentada pelo autor francês Jean Baudrillard, que na década de 70 constatou a necessidade de destruição que acompanha o consumismo: “a sociedade de consumo precisa de seus objetos para existir e sente so- bretudo a necessidade de os destruir. [...] Por tal motivo, a destruição per-manece com alternativa fundamental da produção: o consumo não passa de termo intermediário

10 DELGADO(2008), p. 7. 11 BAUMAN (2008), p. 64. 12 Ibid., p. 31.

Fashion Law sob uma perspectiva socioambiental

177 entre as duas”.13

Isso justifica o fast fashion: produzir, distribuir, comprar e descartar de maneira rápida, sem remorsos e maiores dificuldades, tudo a fim de que o ciclo permaneça.

Fracassos a parte, a realização pessoal pelo consumo foi o projeto político- econômico adotado para levar os consumidores, em tese, à felicidade. “O consumo não nos dá o significado que buscamos – é um sugnificado ersatz, nem mais nem menos. Mas essa foi a meta do projeto moderno: todos nós deveriamos nos tornar consumidores em tempo integral. [...] Nossa utopia foi a sociedade de consumo – uma sociedade em que nós, como indivíduos, podemos nos realizar por meio do consumo de bens.”14

Hoje se discute aonde exatamente o consumismo vai culminar, e o panorama mundial já releva que esse lugar não passa perto da felicidade e muito menos da autorrealização.

Apesar disso, ele se mantém como prática de coesão social, pois está ancorado em um aspecto muito mais profundo que a ideia de felicidade ou de realização. Em uma sociedade onde nada é estável e garantido, nem mesmo a condição de sujeito, a construção/aquisição de identidade se realiza pelo consumo, mas essa é uma questão sociopsicológica complexa, que não se enquadra no objeto de estudo dessa pesquisa.

O sistema moda, portanto, estendeu sua soberania aos mais diversos seguimentos de mercado, e poder-se-ia pensar que isso motivou a criação de um novo ramo jurídico para seu estudo, o Fashion Law, ou não, como o estudo pretende demonstrar.

No documento Future law (páginas 173-177)

Outline

Documentos relacionados