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Impacto das teorias de Estado na definição do papel do Estado como agente de formulação de políticas públicas

No documento Future law (páginas 58-63)

Cácia Pimentel

3. Impacto das teorias de Estado na definição do papel do Estado como agente de formulação de políticas públicas

As teorias de Estado que residem na intersecção do Direito e da Ciência Política permitem uma análise do impacto econômico das várias formas de abordagem e aplicação de políticas públicas culturais. Para se perceber esse fenômeno, deve-se preliminarmente revisitar alguns conceitos teóricos e classificações do Estado.

Para a compreensão do Estado e suas relações, é necessário estudar suas instituições e suas complexidades, além de elementos como Povo, Território, Soberania, Legitimidade, Poder. O foco deste trabalho, no entanto, vai além dessas concepções axiológicas – já devidamente esclarecidas pelos cabedais teóricos - e procura compreender que a forma de intervenção do Estado na ordem social contemporânea – especialmente no que se refere às políticas culturais - pode trazer consequências econômicas benéficas ou malévolas, em consideração às constrições orçamentárias e às chamadas escolhas trágicas2. Para isso, revisam-se brevemente as teorias de Estado sob

a ótica da Ciência Política e do Direito.

2 Informativo STF 579 “Essa relação dilemática, que se instaura na presente causa, conduz os Juízes deste Supremo Tribunal a proferir decisão que se projeta no contexto das denominadas “escolhas trágicas” (GUIDO CALABRESI e PHILIP BOBBITT, “Tragic Choices”, 1978, W. W. Norton & Company), que nada mais exprimem senão o estado de tensão dialética entre a necessidade estatal de tornar concretas e reais as ações e prestações de saúde em favor das pessoas, de um lado, e as dificuldades governamentais de viabilizar a alocação de recursos financeiros, sempre tão dramaticamente escassos, de outro”.

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A Ciência Política relaciona quatro teorias contemporâneas para o Estado: o Pluralismo, o Elitismo, o Marxismo e o Liberalismo3. O Pluralismo foca nas influências

múltiplas na tomada de decisão, inclusive de grupos organizados de interesses diversos. Assim, o Estado pluralista opera sob a interação de múltiplas forças, ou seja, o governo e as políticas públicas são organizados sob um ambiente de diversidade e dispersão de poder. O pensamento pluralista sustenta a noção de que a diversidade é um bem social que previne a dominância de uma ideologia particular. Para a teoria, o Poder deve ser difuso, e não acumulado pelo Estado4.

Os neopluralistas aceitam a ideia da predominância de certos grupos nas arenas políticas, por exemplo, do grupo de empresários sobre consumidores5. Lowi sustenta que

os grupos de interesse constituem estruturas de privilégio que excluem o público das arenas de policy-making6. Lindblom também reconhece que os empresários desfrutam

de recursos extras na esfera política.

Para os elitistas, o Estado é controlado por uma única elite unificada: a classe dominante. É de Schumpeter o duro argumento de que a incapacidade do homem comum de tomar decisões na área das políticas públicas faz com que seja necessária a atuação de uma elite minoritária. Gaetano Mosca argumenta que as elites são inevitáveis, considerando que em todas as sociedades se percebe a ditadura da maioria pela minoria7

Mosca e Pareto explicam o processo de circulação das elites. As elites não devem ficar ossificadas ou petrificadas, mas devem sofrer com a força da influência de grupos que chamam de “contraelites”, como, por exemplo, os movimentos trabalhistas e partidos socialistas que surgiram no início do Século XX. A força dos movimentos das contraelites pode ser sufocada, forçada ao exílio, cooptada ou, ainda, alçada ao Poder8.

Sob essa ótica, um novo grupo que consegue ser alçado ao poder torna-se a nova elite. A teoria Marxista apoia-se na ideia de que a política se reduz à economia, de modo que a classe econômica dominante é também a classe política dominante. Por isso, o Estado é estruturado e operado pelos controladores da economia, de modo a servir aos seus próprios interesses. Essa dinâmica só poderia ser alterada com a superação do capitalismo. Para Engels, a revolução proletária permitiria a conversão dos meios de produção em propriedade do Estado. À serviço do proletariado, o controle das estruturas permitiria uma harmonização da sociedade. E, ao final, o Estado perderia sua finalidade e desapareceria9.

Nicos Poulantzas assinala que toda teoria política de Estado, desde Max Weber, ou é diálogo com o Marxismo ou prende-se a ele. Entende que não se pode negar a relação

3 Dryzek e Dunleavy (2009). 4 Hay (2006). 5 Dunleavy e O’Leary (1987). 6 Lowi (1969) 7 Hay (2006), p. 43. 8 Dryzek e Dunleavy (2009), p. 6. 9 Bonavides (2015).

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entre o poder e as classes dominantes. Segundo Engels, para que as diferentes classes não consumam a si mesmas nos seus conflitos econômicos, é necessário que haja um Poder acima da sociedade para moderar os conflitos e mantê-los nos limites da ordem. Esse Poder que emerge da sociedade, mas mantém-se acima dela e que dela se afasta cada vez mais, é o próprio Estado10.

O autor apresenta uma indagação importante para esse estudo: no caso de uma ascensão da esquerda ao poder, quais seriam os limites da intervenção do Estado na Economia? Pela teoria socialista, explica Poulantzas, a tarefa indispensável seria a da transformação radical do aparelho econômico para que se permita cercar os dispositivos de resistência do poder burguês no seio do Estado, de modo que essas intervenções guardem um caráter socialista11. Nesse sentido, as medidas econômico-sociais para uma

transição para o socialismo não devem se apoiar exclusivamente no Estado, mas “conclamar, no espaço econômico, igualmente a iniciativa das massas populares, pelas formas de democracia direta na base e pelos núcleos autogestores”. E conclui:

“A modificação da relação de forças no seio do Estado diz respeito ao conjunto de seus aparelhos e seus dispositivos: não diz respeito apenas ao parlamento ou, como exaustivamente se repete hoje em dia, aos aparelhos ideológicos do Estado, considerados detentores doravante do papel determinante no Estado atual. Esse processo se amplia igualmente e em primeiro lugar, aos aparelhos repressivos de Estado, aqueles que detêm o monopólio da violência física legítima: o exército e particularmente a polícia”.

Por fim, o Liberalismo, sob o prisma Político, representa o papel do Estado Liberal de garantir os direitos do indivíduo contra o poder político e, para atingir esta finalidade, exige formas de representação política. Para que o empreendedorismo de Schumpeter possa prosperar, permitindo o desenvolvimento econômico, é necessário que o Estado propicie as necessárias condições de dinamismo e criatividade.

A teoria Liberal pode ser dividida em quatro momentos importantes. Primeiro, sob os ensinamentos de Adam Smith até o início do Século XIX, com a ideia de que cabe ao Estado apenas facilitar o crescimento do comércio e da indústria, com respeito à liberdade econômica e à propriedade privada. Em seguida, até o fim da Primeira Guerra Mundial, o liberalismo se preocupa em conter as manifestações socialistas, por meio da provisão de educação, pensões e regulação trabalhista.

O terceiro momento do Liberalismo compreende as décadas de 1930 a 1970 e é marcado pelo “New Deal” de Roosevelt e a teoria intervencionista de John Maynard Keynes, para quem a melhor forma de combate à recessão econômica é o planejamento do Estado pelo controle da economia, do emprego e do aumento do gasto público.

Em oposição à Keynes, o austríaco Hayek é o principal representante do quarto período. Ele pregava que a liberdade é garantida por meio de leis justas e cortes imparciais. Hayek assinalava que o mercado – e não governos – provê o melhor ambiente

10 Hay (2006), p. 62.

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para gerar e disseminar conhecimento, inovação e investimentos. Friedman, outro economista antikeynesiano, ressaltava que os governos deveriam gerenciar a economia apenas no que se refere à emissão de moeda. Bobbio explica que o Liberalismo deixa com o Estado apenas a tarefa de garantir a lei comum para todos, bem como a função de órgão equilibrador e incentivador de iniciativas autônomas da sociedade civil.

Em resposta aos modelos Socialista e Liberal, o Estado do Bem-Estar (Estado Providência, Welfare State ou Estado Assistencial) surge durante o segundo período do Liberalismo, especialmente após a crise econômica do período entre guerras. O americano Franklin Roosevelt apresenta uma inovadora forma de intervenção estatal por meio de políticas públicas que fomentassem o emprego e o mínimo de renda para aprimorar as condições de vida das famílias americanas. Esse modelo de Estado garante tipos mínimos de renda, com impactos econômicos já descritos na teoria de Maynard Keynes. Os economistas que abraçaram essa visão têm, em geral, um diálogo com as ciências sociais. Como exemplo, pode-se citar Keynes e Myrdal. Outros, como Claus Offe, Esping-Andersen, e Richard Titmuss, partem primariamente da Sociologia.

Historicamente, Norberto Bobbio apresenta como exemplo de Estado do Bem- Estar a política posta em prática na Inglaterra após a Segunda Guerra Mundial pelo relatório do britânico Beveridge (1942), que aprovou providências no campo da saúde e da instrução, garantindo serviços iguais para seus cidadãos, independente da renda. Para Bobbio, o que distingue o Estado assistencial de outros tipos de Estado não é tanto a intervenção direta das estruturas públicas na melhoria do nível de vida da população, mas também o fato de que tal ação é reivindicada pelos cidadãos como um direito (Bobbio, 2000)12. Ocorre, assim, uma quebra da separação entre o mercado e o Estado

(sociedade liberal), permitindo a comunicação entre ambas as esferas. Se o Estado de Bem-Estar Social é de fato um Estado Liberal, Bobbio responde:

“O pensamento político liberal, atualmente, tem consciência de que, para responder ao desafio do socialismo, tem que optar entre o Estado assistencial, forma modificada do velho ‘Estado policial’, que atribui a tarefa de concretizar o bem-estar ou as finalidades sociais a máquinas burocráticas, assumindo, de tal forma, em relação aos cidadãos, uma atitude paternalista, e o Estado reduzido, que responsabiliza os indivíduos — singular e coletivamente — mediante o livre mercado. O Estado assistencial leva irremediavelmente a uma sociedade inteiramente administrada, onde não haveria mais lugar para o Liberalismo. Tal fato determinaria o fim do Estado liberal e o começo do Estado autoritário. Em outras palavras, a tendência do Liberalismo contemporâneo é evidenciar a incapacidade dos Estados burocráticos para resolver a questão social, pelo fatal desvio das organizações das funções prefixadas (formação de uma nova classe agindo em função de seu próprio interesse) e por haver uma contradição intrínseca entre a lógica das máquinas burocráticas e a lógica da participação”13.

12 Bobbio, Dicionário de Política, verbete Estado de Bem-Estar 13 Bobbio, Dicionário de Política, verbete Liberalismo

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Em 1960, Gunnar Myrdal, um dos arquitetos do Estado de Bem-Estar Social sueco, afirmou que os Estados democráticos estavam se movendo em direção à política do welfare state, mas que essa planificação pelo Estado contribuiria para uma desintegração econômica no âmbito internacional. Isso porque o sistema traria falhas na estabilização de preços internacionais e de commodities (em razão de práticas protecionistas), o que poderia ser superado se houvesse cooperação internacional.

No entanto, os sinais de crise do Estado do Bem-Estar Social já foram notados quando se percebeu a dificuldade na alocação de recursos pelo Estado. O desequilíbrio fiscal do Estado é entendido como o resultado da incompatibilidade natural entre as duas funções do Estado assistencial: o apoio às reivindicações das grandes organizações de massa, e o apoio à acumulação capitalista que permite a arrecadação estatal e o sustento da despesa pública.

Segundo Bobbio, a explicação é apresentada por dois grupos de autores. Para Offe e Habermas, o Estado assistencial resulta na estatização da sociedade14.

“Trabalho, rendimento, chances de vida não são mais determinados pelo mercado, mas por mecanismos políticos que objetivam a prevenção dos conflitos, a estabilidade do sistema, o fortalecimento da legitimação do Estado. A vontade política não se forma já pelo livre jogo das agregações na sociedade civil, mas se solidifica através de mecanismos institucionais que operam como filtro na seleção das solicitações funcionais ao sistema”.15

Esse mecanismo estatal permite, pois, a propagação das ideologias eleitas pelos grupos de interesses infiltrados nas instituições. Continua o autor, afirmando que “partidos, sindicatos e Parlamento atuam como organismos dispensadores de serviços, trocando-os pelo apoio politicamente disponível. Os resultados deste processo são diversos, dependendo do fato de se prever ou não a total extinção da autonomia da sociedade em face de um despotismo administrativo que levaria à total dependência dos indivíduos e dos pequenos grupos dos mecanismos públicos”.

A segunda explicação para a crise refere-se à tese do processo de "socialização do Estado"16, para a qual a disposição do Estado assistencial de intervir nas relações sociais

provoca um enorme aumento nas solicitações dirigidas às instituições políticas, determinando a sua paralisia pela sobrecarga da procura; a competição entre as organizações políticas leva à impossibilidade de selecionar e aglutinar os interesses, causando a total permeabilidade das instituições às demandas mais fragmentadas e a burocratização da vida política. Bobbio conclui explicando que “o desenvolvimento e consolidação do Estado assistencial nos últimos cem anos constituem um processo tão profundo, distanciam tanto esta instituição das que a precederam que tornaram amplamente inadequado o esquema conceptual elaborado pelas teorias clássicas para definir o Estado e as suas funções”.

14 Offe (1977), Habermas (1975).

15 Bobbio, Dicionário de Política, verbete Estado de Bem-Estar. 16 Rose (1978), Huntington e Crozier (1975).

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Outra abordagem do Estado Liberal é a do Estado de Direito. Essa ideia emerge ainda no Século XIX como uma construção que limita o Estado a um arcabouço jurídico- legal. Bonavides expressa que o Estado de Direito não é uma forma de Estado em si, mas um status quo institucional. Hodiernamente, a doutrina subdivide o modelo em Estado Liberal de Direito, Estado Social de Direito e Estado Democrático de Direito17.

O Estado Liberal de Direito seria aquele com a função de estabelecer e manter direitos e limites de ação, mas sob um viés de limitação jurídico-legal negativa: garantia do cidadão frente à atuação do Estado, já que a este compete assegurar o livre desenvolvimento das pretensões individuais.

O Estado Social de Direito distingue-se do Liberalismo, pela autorização da intervenção do Estado e a planificação constante na busca pelo bem-estar social. Paulo Bonavides entende ser essa uma alternativa flexível, mas rodeada de obstáculos, como os meios e fins indispensáveis a sua efetiva implantação. Por sua vez, o Estado Democrático de Direito ultrapassa a concepção do Estado Liberal de Direito e objetiva a igualdade como garantia de condições mínimas de vida ao cidadão e à sociedade18.

A revisão desses marcos teóricos permite concluir que a forte intervenção econômica prevista nas concepções ancoradas no marxismo pode gerar para o Estado um grave impacto financeiro. O aparelho do Estado deve ser não apenas eficaz, mas sobretudo eficiente, em razão da limitação de recursos.

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