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Da sucessão legitimária – análise crítica

No documento Future law (páginas 126-134)

Cristina Dias 1 1 Introdução

2. Da sucessão legitimária – análise crítica

a) Noção, natureza jurídica e herdeiros legitimários

A sucessão legitimária é deferida por lei e não pode ser afastada pela vontade do autor da sucessão. Diz respeito à porção de bens de que o de cuius não pode dispor por estar destinada por lei aos herdeiros legitimários (artigo 2157.º). Podemos distinguir, no conjunto dos bens do de cuius, duas porções de bens: a quota indisponível ou legítima (a porção de bens, que varia nos termos dos artigos 2158.º a 2161.º, de que o autor da sucessão não pode dispor por estar destinada ao cônjuge, descendentes ou ascendentes, como herdeiros legitimários) e a quota disponível (a porção de bens que o autor da sucessão pode dispor a favor de quem entender). Havendo herdeiros legitimários, os poderes de disposição (mortis causa e até entre vivos, nos casos previstos no n.º 2 do artigo 242.º) do autor da sucessão estão limitados, dado que não pode afetar a porção de bens que caberá a tais herdeiros.

A natureza jurídica da legítima, da quota da herança legalmente destinada aos herdeiros legitimários, tem sido uma das matérias objeto de discussão. Apresentam-se duas conceções possíveis: uma que vê no direito à legítima um direito a uma parte dos bens da herança (pars hereditatis); e outra que o vê como um direito a uma parte do valor dos bens (pars bonorum)8.

Os argumentos utilizados pela nossa doutrina para a defesa da teoria da pars

hereditatis (legítima como parte dos bens da herança) resultam, desde logo, de o próprio

artigo 2156.º definir a legítima como “porção de bens”. Invoca-se também o princípio da intangibilidade da legítima (artigo 2163.º) e o facto de a redução das liberalidades inoficiosas se fazer em espécie, o que não se justificaria se o direito à legítima fosse simplesmente um direito a um valor abstrato (artigo 2174.º, n.º 1)9.

Dispõe o artigo 2157.º que são herdeiros legitimários o cônjuge, os descendentes e os ascendentes, pela ordem e segundo as regras estabelecidas para a sucessão legítima. Assim, há que respeitar, desde logo, os artigos 2134.º a 2136.º que estabelecem os princípios gerais da sucessão legítima, ou seja, o princípio da preferência de classes (artigo 2134.º), o princípio da preferência de graus de parentesco dentro de cada classe (artigo 2135.º), e o princípio da sucessão por cabeça (artigo 2136.º)10/11.

8 PINHEIRO (2017), p. 313, refere ainda uma outra conceção, que se verifica no direito alemão: a legítima como pars valoris. Isto é, a legítima será parte de um valor, não sendo os herdeiros legitimários sucessíveis em sentido estrito, mas apenas credores de um direito pecuniário a cuja satisfação estão obrigados os herdeiros legais ou instituídos.

9 V., COELHO (1992), pp. 314 e 315, Corte-REAL (1993), p. 336, e (2012), p. 335, PITÃO (2005), p. 30, BARBOSA (2008), p. 81, FERNANDES (2012), pp. 401 e 402, e DIAS (2017), p. 200.

10 Os parentes de cada classe sucedem por cabeça ou em partes iguais, salvas as exceções previstas no código. Uma das exceções opera no domínio do direito de representação, onde a partilha é feita por estirpes (artigos 2044.º e 2138.º). Outras exceções ocorrem no caso de concurso de cônjuge e descendentes (artigo 2139.º, n.º 1), de cônjuge e ascendentes (artigo 2142.º, n.º 1), e de irmãos germanos e unilaterais (artigo 2146.º). V., SOUSA (2000), p. 243.

11 Assim, de acordo com tal ordem e regras da sucessão legítima, se existir cônjuge e descendentes não são chamados como herdeiros legitimários os ascendentes. Por outro lado,

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Por outro lado, importa também ter em consideração as classes de sucessíveis do artigo 2133.º e as regras dos artigos 2139.º a 2144.º. Assim, e em caso de concurso do cônjuge com descendentes (ou adotados), a partilha entre o cônjuge e os filhos faz-se por cabeça, dividindo-se a quota indisponível do autor da sucessão em tantas partes quantos forem os herdeiros legitimários. Mas, a quota do cônjuge não pode ser inferior a uma quarta parte da legítima global (artigo 2139.º, n.º 1)12.

Se os filhos não puderem ou não quiserem aceitar a sua legítima, o cônjuge concorre com os descendentes deles (artigo 2140.º), ou seja, os descendentes de segundo grau e seguintes sucedem por direito de representação, cabendo a cada estirpe aquilo em que sucederia o ascendente respetivo.

Por outro lado, se algum ou alguns dos descendentes, e não existindo direito de representação (artigos 2138.º, 2140.º e 2042.º), não quiserem ou não puderem aceitar, o cônjuge tem, juntamente com os descendentes que aceitaram, direito de acrescer (artigo 2137.º, n.º 2)13.

Se o autor da sucessão não deixar cônjuge sobrevivo, a quota indisponível divide- se pelos filhos em partes iguais (artigo 2139.º, n.º 2).

Também aqui se os filhos não puderem ou não quiserem aceitar são chamados à sucessão, por direito de representação, os respetivos descendentes (artigo 2140.º).

Na falta de descendentes e ascendentes o cônjuge é chamado à totalidade da legítima global (artigos 2141.º e 2144.º).

Se existirem ascendentes o cônjuge concorre com eles, integrando a segunda classe de sucessíveis (artigo 2133.º, n.º 1, al. b), e n.º 2). Nesta situação, ao cônjuge pertencerão duas terças partes e aos ascendentes uma terça parte da legítima global (artigo 2142.º, n.º 1).

Na falta de cônjuge, os ascendentes são chamados à totalidade da quota indisponível (artigo 2142.º, n.º 2).

dentro de cada classe, os parentes de grau mais próximo excluem os de grau mais afastado, sem prejuízo do direito de representação: se existir um filho não será chamado o neto.

12 Esta regra só tem relevo quando o cônjuge concorra à sucessão legitimária com quatro ou mais filhos. Como escreve COELHO (1992), p. 306, “a lei terá querido evitar que a quota hereditária do cônjuge fosse excessivamente pequena, justamente nos casos em que, por a família ser muito numerosa, lhe tivessem sido pedidos maiores sacrifícios; e terá acreditado que, normalmente, os filhos sempre virão a receber a totalidade dos bens à morte do segundo progenitor”. Manifestando-se contra este tratamento preferencial do cônjuge previsto no artigo 2139.º, n.º 1, v., NOGUEIRA (1980), pp. 684 e 685. Refere este autor que se “a prole é numerosa, tanta razão há para pensar que o cônjuge sobrevivo está carecido de meios económicos de subsistência como para pensar que os filhos do de cujus também não vivem desafogadamente. O que parece justo é que o cônjuge seja tratado de forma rigorosamente igual a qualquer dos filhos do autor da sucessão e não mais do que isso”.

13 O artigo 2137.º, n.º 2, apenas exceciona o previsto no artigo 2143.º, no caso de sucessão do cônjuge e ascendentes. Não há motivos para aplicar o mesmo no caso da sucessão do cônjuge com descendentes, pelo que, neste caso, o cônjuge também beneficia do direito de acrescer com os restantes descendentes. Neste sentido também se pronuncia SOUSA (2000), p. 247 e nota 621, e ASCENSÃO (2000), pp. 345 e 346. Contra, v., NOGUEIRA (1980), pp. 685-687.

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Quer no caso de concorreram com o cônjuge quer no caso de receberem a totalidade da quota indisponível, a partilha entre os ascendentes faz-se de acordo com os princípios da preferência de graus de parentesco dentro de cada classe (artigo 2135.º) e da sucessão por cabeça (artigo 2136.º), conforme dispõe o artigo 2142.º, n.º 3, não existindo direito de representação.

Na falta de descendentes e ascendentes, o cônjuge é chamado à totalidade da quota indisponível, como já referimos (artigo 2144.º).

Repare-se ainda no artigo 2143.º. Se os ascendentes forem chamados à quota indisponível em concurso com o cônjuge, e algum ou alguns dos ascendentes não puderem ou não quiserem aceitar, a sua parte acresce à dos outros ascendentes que concorram à sucessão. Só se estes não existirem é que acrescerá à parte do cônjuge sobrevivo.

Ora, os referidos herdeiros legitimários têm direito a uma porção de bens (a legítima objetiva ou global). O apuramento da legítima varia em função da classe e tipo de herdeiro legitimário e do número de herdeiros legitimários. Só depois de determinada a legítima global (2/3, ½…)14 é que será possível apurar a legítima que cabe a cada um

dos herdeiros legitimários, o seu quinhão legitimário (legítima subjetiva). Há várias hipóteses a ponderar.

No caso de concurso do cônjuge com descendentes, a legítima do cônjuge e dos filhos, é de dois terços da herança (artigo 2159.º, n.º 1).

No caso de um filho não poder ou não querer aceitar a herança há direito de representação a favor dos seus descendentes que terão direito à legítima que caberia ao seu ascendente (artigo 2160.º).

Não havendo cônjuge sobrevivo, a legítima dos filhos é de metade ou dois terços da herança, conforme exista um só filho ou existam dois ou mais (artigo 2159.º, n.º 2).

Uma questão que pode colocar-se é a de saber se, neste caso em que a legítima varia consoante exista um ou mais filhos, os sucessíveis legitimários que repudiam a sua parte contam para efeitos do cálculo da porção da legítima global. Se existirem dois filhos e um repudia, se este contar para o referido cálculo a legítima será de dois terços; caso contrário, será de metade.

14 É interessante notar que, e seguindo COSTA (1997), pp. 19 e 20, a quota disponível do autor da sucessão manteve-se, durante séculos, limitada a um terço dos bens. A quota disponível (“terça”) surgiu da influência muçulmana na Península e transitou para a versão originária do Código Civil de 1867, no caso de o de cuius deixar descendentes. Só no caso de o autor da sucessão deixar ascendentes que não os pais é que a quota disponível era de metade (artigo 1787.º do Código Civil de 1867). Só com o Decreto de 31 de outubro de 1910, cujas normas foram integradas no Código Civil com a Reforma de 1930 (pelo Decreto n.º 19126, de 16 de dezembro de 1930), se alargou para metade a quota disponível, nas situações gerais, e para dois terços, se os sucessíveis fossem ascendentes de segundo grau ou superior. No Código Civil de 1966, a legítima e a quota disponível são variáveis tendo em conta o número e o grau de herdeiros legitimários, como resulta do texto.

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Ora, e em primeiro lugar, a solução que inclui o herdeiro legitimário repudiante para efeitos do cálculo da legítima releva em matéria do direito de representação, de transmissão do direito de aceitar e do direito de acrescer (onde a posição do designado sucessório com posição prevalente influencia a do que efetivamente sucede). Depois, tal entendimento é o que melhor se articula com a solução do n.º 2 do artigo 2114.º. Aí se determina que, em caso de repúdio do herdeiro legitimário descendente sem representantes mas sujeito à colação por doação em vida do autor da sucessão, o montante da legítima subjetiva desse repudiante deve preencher a respetiva doação, ou seja, imputa-se na quota indisponível o valor da doação. Isto significa que tal herdeiro repudiante tem de contar para efeitos do cálculo da legítima para que possa depois imputar-se no seu quinhão hereditário o valor da doação15.

Os descendentes de segundo grau e seguintes têm direito à legítima que caberia ao seu ascendente, sendo a parte de cada um fixada nos termos prescritos para a sucessão legítima (artigo 2160.º).

Na falta de descendentes, a legítima do cônjuge, se não concorrer com ascendentes, é de metade da herança (artigo 2158.º).

Não havendo descendentes, mas concorrendo o cônjuge com ascendentes, a legítima do cônjuge e dos ascendentes é de dois terços da herança (artigo 2161.º, n.º 1).

Se o autor da sucessão não deixar descendentes nem cônjuge sobrevivo, a legítima dos ascendentes é de metade ou de um terço da herança, conforme forem chamados os pais ou os ascendentes do segundo grau e seguintes (artigo 2161.º, n.º 2).

b) Cálculo da legítima

O cálculo da herança para efeitos do apuramento da legítima deve efetuar-se nos termos previstos no artigo 2162.º. Para o cálculo da legítima deve atender-se ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte, ao valor dos bens doados, às despesas sujeitas a colação e às dívidas da herança (n.º 1 do artigo 2162.º)16. Deve, assim, ter-se em consideração o património existente no momento da

morte (relictum), mas também os bens de que o de cuius dispôs em vida (as doações e despesas – donatum).

A principal questão que se coloca é a de saber a ordem das operações, isto é, o artigo 2162.º, n.º 1, apresenta os elementos para o cálculo da herança, mas não determina a sua ordem17.

15 Neste sentido, v., COELHO (1992), p. 316.

16 Como diz COELHO (1992), p. 318, a legítima será de metade, de dois terços ou de um terço “de uma massa de cálculo assim obtida”.

17 Debatem-se duas doutrinas opostas nesta matéria. Para uma, os bens doados não respondem pelo passivo da herança. Assim, primeiro abate-se o passivo aos bens deixados no património do autor da sucessão e, de seguida, soma-se o donatum. Solução semelhante apresenta o artigo 818.º do Código Civil espanhol. Era esta também a ordem que o artigo 1790.º, 1.º, do nosso Código Civil de 1867, estabelecia para o cálculo da quota disponível (“somar-se-á o valor de todos os bens que o autor da herança houver deixado, feita a dedução das dívidas da herança; ajuntar-se-á à soma restante o valor dos bens que o falecido houver doado, e a quota

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Em primeiro lugar deve proceder-se à avaliação dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte.

Em segundo lugar proceder-se-á à dedução das dívidas. O pagamento do passivo deve ser à custa dos bens deixados e não à custa da soma dos bens deixados com os bens doados. Os credores não podem pagar-se à custa destes últimos.

Deve somar-se depois o valor dos bens doados e as despesas sujeitas a colação. Para efeitos do cálculo da legítima, a herança é, assim, composta não só pelos bens deixados no património do autor da sucessão mas também pelos bens doados18. Trata-se

de uma restituição fictícia de todos os bens doados (aos presumíveis herdeiros do autor da sucessão ou a outras pessoas).

Uma vez realizadas estas operações obtém-se o valor da herança a partir do qual se poderá calcular a quota da legítima global. Apurada esta, estaremos em condições de determinar a legítima subjetiva, ou seja, o quinhão legitimário que cabe a cada um dos herdeiros legitimários. Mas, para isso, e se o de cuius fez liberalidades a um ou mais herdeiros legitimários, teremos ainda de saber onde imputar o valor de tais doações (imputação na quota indisponível ou na quota disponível).

Podemos dizer que a imputação é a atribuição de uma liberalidade realizada pelo autor da sucessão a uma das duas quotas em que se divide a herança havendo herdeiros legitimários19. A abertura da sucessão legitimária implica sempre que se apurem as

quotas disponível e indisponível (a legítima) do autor da sucessão. É evidente que o problema da imputação coloca-se em geral em relação a quaisquer sucessíveis, mas, para efeitos de cálculo da legítima, importa ter em conta a imputação de liberalidades feitas aos herdeiros legitimários.

Uma vez realizadas as operações referidas para o cálculo da legítima (global) resta, assim, para determinar a legítima a que cada herdeiro legitimário tem direito (o seu quinhão legitimário), imputar na legítima de cada herdeiro as liberalidades que o autor da sucessão lhe tenha feito. Se existir excesso (a diferença entre o valor que se imputou na legítima e o montante desta) recebê-lo-á.

disponível será calculada em relação a esta soma total”).

Para a outra doutrina, os bens doados também respondem pelo passivo da herança. Assim, primeiro soma-se o donatum ao relictum e só depois se abatem as dívidas.

A diferença das teorias tem relevo prático sobretudo no caso de herança deficitária, em que, para esta última teoria, os herdeiros legitimários podem ficar sem legítima, mesmo que, ainda que o passivo da herança seja superior ao ativo, o de cuius tenha feito várias liberalidades.

18 Estes continuam a ser administrados pelos donatários, nos termos do artigo 2087.º, n.º 2.

19 Escreve CORTE-REAL (1989), pp. 90 e 91, que a imputação, no âmbito da sucessão legitimária, surge “como uma operação de enquadramento, “de encaixe” [Jorge Leite], na quota indisponível ou na quota disponível, de certa liberalidade em vida ou por morte; ou como operação de preenchimento da própria quota legitimária (…); ou, ainda, como operação de salvaguarda da quota disponível, ou mesmo das legítimas dos não beneficiados, através da dedução contabilística da liberalidade, mortis causa ou inter vivos, feita a um legitimário, no montante da respectiva legítima (imputação ex se)”.

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c) Razão de ser – justifica-se a sucessão legitimária?

Atendendo às modalidades de sucessão, o nosso sistema jurídico sucessório é um sistema misto, com caraterísticas do sistema capitalista ou individualista e do sistema familiar. É na sucessão legitimária que a preocupação de que os bens sejam atribuídos a certos familiares é mais marcada.

Na verdade, a relevância dada à família na sucessão legítima, de caráter supletivo, não assegura que os bens permaneçam na mesma família, dado que o autor da sucessão pode dispor dos seus bens em sentido contrário (por testamento ou, nos casos admitidos, por pacto sucessório). Esta finalidade é atingida pela sucessão legitimária, cujo fundamento reside, assim, na proteção da família mais próxima: cônjuge, descendentes e ascendentes (artigo 2157.º). A estes sucessíveis é reservada uma parte dos bens do de

cuius sobre a qual não pode ele exercer a sua liberdade de disposição.

De facto, o autor da sucessão tem plena liberdade de testar e de deixar os seus bens a quem quiser, sejam ou não seus familiares. Mas não pode afetar a quota indisponível reservada por lei aos herdeiros legitimários, sob pena de redução por inoficiosidade das liberalidades em vida ou por morte que o autor da sucessão tenha feito que ofendam tal legítima.

A existência de uma quota indisponível do autor da sucessão corresponde a uma tradição profundamente enraizada nas nossas leis, mesmo desde tempos anteriores às Ordenações20. Tradicionalmente, e à luz do Código de Seabra, que contemplava como

herdeiros legitimários os descendentes e os ascendentes, entendia-se que a legítima dos descendentes resultava da obrigação natural que os pais têm de não deixar desamparados socialmente os seus filhos, e a legítima dos ascendentes assentava na compensação dos sacrifícios feitos com a educação dos descendentes. Era a exigência de um auxílio mútuo, como dever familiar, que justificava a sucessão legitimária21.

A existência da sucessão legitimária visa salvaguardar o interesse da família, reconhecendo a certos familiares mais próximos do autor da sucessão o direito de participarem do seu património, “ou porque ajudaram a produzi-lo, conservá-lo e desenvolvê-lo, ou por se entender que, mesmo após a sua morte, persiste um dever moral de prestar assistência a essas pessoas”22.

Visando a proteção de certos familiares (cônjuge, descendentes e ascendentes) e garantindo a manutenção do património dentro da família, justificar-se-á a existência da

20 Como refere FERREIRA (1898), p. 332, já nos antigos forais, onde o direito de testar era largamente admitido, se encontravam vestígios “das legítimas”.

Refere o autor, na mesma obra, p. 331, que em Roma chegou a ser consagrado o princípio absoluto da liberdade de testar. Começou, porém, a levantar-se forte reação contra a crueldade dos pais que privavam sem qualquer razão os seus filhos da herança. Tal originou, inicialmente, a existência de ações de inoficiosidade e de deserdação formal, e, numa outra fase, à introdução das legítimas. V., também, BASTOS (1982), p. 78, e CORTE-REAL (1989), pp. 99 e segs. Com uma resenha evolutiva do fenómeno sucessório, v., SOUSA (1999), pp. 26 e segs.

21 Ferreira, ibidem. 22 Leal (2004), p. 93.

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sucessão legitimária, ou seja, é legítimo limitar o poder de disposição do titular dos bens para acautelar que tais familiares recebam os mesmos, sem qualquer esforço, no momento da morte do seu titular?

Há autores que consideram, atendendo às suas consequências negativas, desaconselhável a existência da sucessão legitimária23. De facto, a sucessão legitimária

pode conduzir, atendendo à partilha entre os vários herdeiros legitimários, à divisão e pulverização de unidades produtivas, e pode levar a que os herdeiros legitimários, na expectativa de receber os bens da herança e de viver à custa da mesma, não tenham qualquer estímulo para o trabalho. Se o autor da sucessão puder dispor livremente dos seus bens poderá assegurar a continuidade das suas unidades produtivas e selecionar os mais aptos ao exercício de uma dada atividade24.

É verdade que a família e a proteção da família estão constitucionalmente consagradas (artigos 36.º e 67.º da Constituição da República Portuguesa), mas também a liberdade de disposição, enquanto tradução do direito à propriedade privada (artigo 62.º da Constituição). A existência de uma quota indisponível do autor da sucessão pode implicar uma limitação exagerada do direito de propriedade que deve abranger a liberdade de testar de todos os bens de que se é titular. “Por que razão uma pessoa está impedida de determinar, de forma relativamente incondicionada, o destino da generalidade dos bens que lhe pertencem? Por que motivo certas pessoas, em regra,

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