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Conforme comentado anteriormente, ao realizar a operação de hibridização e de tradução intersemiótica entre gêneros e linguagem (a poesia japonesa haiku - haikai, anteriormente em sua origem – e a videoarte e videopoema), algumas regras do suporte de partida foram aplicadas ao suporte de chegada. O uso da palavra-código (Kigo) é uma dentre essas regras. “Há de se pensar, além da métrica, na obrigatoriedade do uso da palavra-código (kigo, em japonês), que é uma referência à estação do ano e à natureza.” (ROSA, 2000B, p. 49). Na concepção de “O apanhar do sonho-tempo”. a linha mestra da narrativa é o poema elaborado por Almir Almas em 1994, no Japão. O kigo desse poema é hatsuyume, que quer dizer, literalmente, o primeiro sonho do ano. Então, toda a narrativa do espetáculo se baseia na construção onírica de um personagem/poeta, que fala de seu sonho e das imagens que ele – o sonho - lhe suscita. O kigo, - ou a palavra que enuncia o tempo - é também o que leva o poeta à sua terra natal, pois no seu primeiro sonho do ano, o poeta sonha com as ladeiras que se fazem presente s em sua cidade e com sua mãe, o que traz, assim, marcas de sua infância. Cria-se, assim, a relação entre a condição geral, do tempo e do espaço - da imutabilidade - à percepção do instantâneo, ao momento Para o pensador Russo, gênero é uma força aglutinadora

e estabilizadora dentro de uma determinada linguagem, um certo modo de organizar ideias, meios e recursos expressivos, suficientemente estratificado numa cultura, de modo a garantir a comunicabilidade dos produtos e a continuidade dessa forma junto às comunidades futuras. Num certo sentido, é o gênero que orienta todo o uso da linguagem no âmbito de um determinado meio, pois é nele que se manifestam as tendências expressivas mais estáveis e mais organizadas da evolução de um meio, acumuladas ao longo de várias gerações de comunicadores (MACHADO, 2000, p. 68).

Ao inserir o trabalho da série de Videohaiku como inscrito no gênero videopoema, adentra-se a esfera de gêneros televisuais, tratados por Arlindo Machado, nesse livro. Arlindo enumera os gêneros televisuais mais exemplares, tais como: “as formas fundadas no diálogo, as narrativas seriadas, o telejornal, as transmissões ao vivo, a poesia televisual, o videoclipe e outras formas musicais” (MACHADO, 2000, p. 71). Por outro lado, essa classificação não é estanque e não diz tudo sobre a obra.

Tanto na aplicação ao Videohaiku, quanto no desenvolvimento posterior, de haiku ao vivo (Namahaiku) – a ser tratado posteriormente - e haiku expandido, o conceito de gênero é pensado sem a preocupação quanto ao fechamento da obra em uma categorização estática. Gênero é entendido aqui no contexto de sua diversidade, e, principalmente, diante do hibridismo em que as obras contemporâneas se apresentam. Dessa forma, o espetáculo de cinema expandido/live-image e haiku expandido “O apanhar do sonho- tempo” pode ser percebido como um processo de hibridização e de transcriação intersemiótica, na mesma linha evolutiva apontada pelo trabalho Videohaiku, que se iniciou em 1990. No artigo Videohaiku, publicado no livro/anais do XI ENPULLCJ e I EEJ, em 2000, Desde o primeiro instante, isto é, desde o momento em que optamos por experimentar uma forma poética casada ao vídeo, nossa intenção era fazer determinadas escolhas que nos levassem às experimentações radicais em videoarte com leis e parâmetros da poesia escrita. Ou seja, buscávamos um processo de experimentação e pesquisa em forma de transposição de linguagens, ou recriação, ou ‘transcriação’ (ROSA, 2000A. p.193).

O que se realiza é um processo de hibridização e de tradução intersemiótica, que se reconfiguram, em contaminações mútuas, as sintaxes; e se misturam os gêneros audiovisuais e literários.

Nessa transposição da estrutura do haiku para o suporte vídeo, a proposta foi de criar um conjunto de haiku imagético. Partindo de uma ideia simples de criar poesia em vídeo, chegamos à complexidade maior de tentar levar para o novo suporte os atributos e mecanismos do suporte de saída. (ROSA, Almir Antonio, 2000. p. 195).

Em “O apanhar do sonho-tempo”, a experimentação de transposição entre signos se torna ainda mais radical e a hibridização dos meios avança na direção de expansão de duas expressões de arte (ou, de mídia) essencialmente de linhas tênues entre os gêneros, o cinema e a televisão. Especificamente, esgarçam-se nessa expansão, os limites de linguagem, técnica, poética e de dispositivos do cinema e da televisão, através de procedimentos de montagem, de processos e sistemas digitais e do uso do tempo presente e do ao vivo.

requer obras inacabadas e uma abertura dialógica.

Figura 2 – O apanhar do sonho-tempo Haiku Expandido. Foto: Inês Correa

Figura 4 – explorando a materialidade de forma criativa.

Para Almir Almas, o espetáculo audiovisual “O apanhar do sonho-tempo” em seu formato de cinema expandido/ VJing/live-image e Haiku Expandido, se apresenta como uma evolução natural da pesquisa que aproxima a poesia japonesa e o vídeo e dá seguimento também à variação do videohaiku, chamada Namahaiku, desenvolvida por Almir Almas em parceria com Daniel Seda e Cheli Urban, a partir de 2006. Pode-se ver o Namahaiku (nama + haiku) como o poema haiku expandido, ao vivo, em um ambiente sensorial, na criação de experiência poética sensorial, em que o uso de meios audiovisuais e de interfaces tecnológicas, coloca-o na linha das experimentações e teorizações propositivas do cinema experimental, cinema de exposição e cinema expandido. Para Clélia Mello, a proposta foi impelida por projetos anteriores em poética audiovisual, com o processo de produzir instalações, intervenções, performances imagéticas e apresentações de arte e tecnologia diferenciadas, em locais inusitados. Trata-se de um processo longo, colaborativo, geopoético, impulsionado pelas redes digitais e outras tecnologias, e que pensa a arte e o processo de produzir como um lugar de encontros, de convívio, de parcerias, de colaborações, de trocas. Ou seja, como uma forma de sensibilidade compartilhada desde a preocupação com tradução/ apropriação dos conceitos envolvidos no fazer artístico, até a preocupação com o entorno (ecopoética) e com o público. Tal como em suas produções anteriores, o processo de arquitetar “O apanhar do sonho- tempo” teve como tônica o efêmero, a impermanência, a desterritorialização, a deriva, a errância, etc., através de cartografias alternativas afetivas que aproximam elementos em comum que percorrem as inesperado – da transformação -, e juntam-se o caráter

universal ao particular, e se constroem sentido e percepção poética. No espetáculo, essas marcas da infância e o que o sonho lhe provoca aparecem nas imagens e nos dispositivos aparadores das imagens projetadas. É como se esses dispositivos aparadores – as peneiras - apanhassem o sonho e o tempo que compõem o poema.

E, claro, as peneiras, ao mesmo tempo em que são dispositivos físicos que interferem na fisicalidade da imagem projetada (e o espelho d’água), atuam, metaforicamente, como elementos de métrica do poema (métrica audiovisual e espacial). No haiku, a métrica é tratada como a forma que o poema se inscreve, na divisão de seus dezessetes sons (ou sílabas) em arranjos de 5/7/5 (ou em um único verso ou em três versos), ou de como ele se distribui nos três momentos do haikai/haiku. “A métrica nos três versos obedece o metro 5/7/5, tendo 5 sons (ou sílabas japonesas) no primeiro verso, 7 sons no segundo e 5 no terceiro” (ROSA, 2000B. p. 34).

Figura 2 – O apanhar do sonho-tempo Haiku Expandido. Foto: Inês Correa

A performance, conforme aponta Glusberg, “procura transformar o corpo em um signo, em um veículo significante” (GLUSBERG, 1987, p. 76), como um operador de modificação de códigos. E é em sua condição distendida, deslizante e dinâmica que adotamos o termo (performance imagética, performance audiovisual, live cinema) o que inclui todos os executantes (performers) e o público, que pode observar ou interagir. Arlindo Machado (MACHADO, 2007, p.172) lembra que “no cinema, a tridimensionalidade do espaço representado é algo que o espectador pode apenas presumir, mas não experimentar”, ou seja, o espectador não consegue alterar a imagem com os seus movimentos. Além disso, autor afirma que a hegemonia da câmera obscura separou o ato de ver do corpo físico do observador e assim, o dispositivo acaba impedindo “pela sua própria arquitetura, que a posição física do observador possa fazer parte da representação” (MACHADO, 2007, p.176). No espetáculo “O apanhar do sonho-tempo” um tipo de realidade virtual de novas potencialidades aponta possibilidades para que o espectador adentre a cena em imersão sensorial como um “sujeito agenciador” que move e desloca a imagem como, por exemplo, no momento em que os dançarinos interagem com seus corpos em movimentos e ações resignificando as imagens projetadas no espelho d’água. A tecnologia do ponto de vista coletivo procura aproximar o sensível e o inteligível para conquistar a indeterminação da máquina. Os artistas desejam realizar obras que explorem a percepção e a dimensão espaço-temporal, estabelecendo como condição de intertextualidade o inacabamento da obra, a multiplicidade pela interferência do outro. A intertextualidade

Bibliografia

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Youngblood, Gene. 1970. Expanded Cinema. New York/USA: P. Dutton & Co., Inc.

culturas ameríndia, africana e japonesa e que hoje estão presentes na cultura brasileira. Com a apresentação instaurando um jogo perpétuo entre mostrar/esconder para possibilitar a explosão de sentidos, à medida em que o público se envolve sensorialmente, atua em cena e/ou se submete à uma prática de decifrar os signos envolvidos.

Conclusão

Conforme dito, na concepção do espetáculo “O apanhar do sonho-tempo”, os conceitos de uso de linguagens, gêneros e dos dispositivos e aparatos técnicos referencias de cinema e televisão são a base para a criação de uma nova semiose estética e poética. Características da televisão, como a inscrição do tempo presente, a edição em tempo real, os cortes a partir de diversas fontes de imagens e sons, o registro do acontecimento e sua exibição simultaneamente, são assimiladas e fazem parte da condição para a existência do espetáculo da forma como ele é concebido. Ou seja, trazendo para conceitos atuais do fazer cinematográfico, pelas características de transposição entre signos e de hibridização artística de linguagem e gêneros, pelo uso do vídeo, da videoarte, das interfaces computacionais e de sistemas cibernéticos, essa pesquisa aponta para a expansão do cinema, tanto em seus dispositivos, quanto nos procedimentos de linguagem e estética. Essa visão de um cinema em expansão aparece no estudo seminal de Gene Youngblood, “Expanded Cinema”, de 1970 (YOUNGBLOOD, 1970). Nele, o autor identifica que as fronteiras tradicionais do cinema e de sua tela estariam sendo rompidas e estendidas no sentido da criação de um todo orgânico na absorção das imagens. Pode-se dizer que o conceito de cinema expandido identifica aquilo que leva o cineasta a extrapolar os códigos e as linguagens cinematográficas de suas concepções originais, para fazer um cinema que não é mais cinema, no sentido tradicional do termo, e que leva o espectador a vivenciar situações em que todos os seus sentidos são envolvidos para a fruição de um efeito estético.

O Human Connect Project, idealizado pela Profa. Dra. Cecilia Noriko Ito Saito, coloca a si a missão de continuidade na rede formada a partir das duas edições realizadas, em 2013 e 2014. A constituição de rede é de fundamental importância para a metodologia pedagógica de geração de conhecimento, e a continuidade dela é um desafio, não só para a idealizadora, como também para os demais envolvidos nesse processo.

Estudo de caso de cinema expandido/vjing/live-image e tecnologia