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tanto, utilizo o conceito de ‘ritmanálise’, como pensado por Gaston Bachelard.

Um dos principais métodos utilizados para a seleção das casas é o contato com pessoas desconhecidas, através de uma deriva virtual, adotando recursos como o Google Maps, Facebook, Couchsurfing, dentre outros.

O acesso a espaços privados e o convívio com estranhos no enlace entre real e ficcional é uma estratégia utilizada por artistas como Sophie Calle (KARRASS, 2015) e Miranda July (New Museum, 2014). Em seus primeiros trabalhos, Calle busca a construção de identidade e, adotando a fotografia como um registro, questiona a posição de observador. Miranda July utiliza os meios de comunicação digitais e a reciprocidade das relações humanas na construção de muitos de seus trabalhos. A artista criou um aplicativo de mensagens, o Somebody, através do qual ela propicia encontros inusitados inserindo a presença atuante do corpo em nossa relação com a tecnologia. Ela descreve a utilização do aplicativo:

“quando você envia uma mensagem a um amigo através do Somebody, ela vai – não para o seu amigo, mas para o usuário d o Somebody mais próximo de seu amigo. Essa pessoa, (provavelmente um estranho) entrega a mensagem verbalmente, agindo como um dublê.” (New Museum, 2014). The movement of an object, projeto da artista Marysa Dowling (TOWNSEND, 2007), mapeia uma comunidade através do deslocamento de uma simples bolsa plástica que passa de uma pessoa a outra em várias cidades no mundo. Não existe necessariamente algo que una os indivíduos que recebem o objeto, apenas a própria bolsa, que é fotografada em diversas circunstâncias partindo de uma série de instruções da artista. Os três processos de criação mencionados se familiarizam com as derivas que utilizo na investigação do papel transformador do ritmo, do movimento e da relação com o outro.

O trabalho que proponho explora a conectividade como potência de interrupção de uma vida convencionada, como troca e constituição de uma nova duração e espacialização, onde os modelos de intimidade e identidade vinculados unicamente às matrizes locais não são os únicos possíveis. Outros modelos estão sendo construídos e, embora por vezes pareçam utópicos, ou distantes dos padrões naturalizados pelo senso comum, acabam viabilizando novas formas de existência.

À medida que nos aproximamos e refletimos sobre o que julgamos como mais natural, percebemos que a nossa imersão na natureza cria, muitas vezes, leituras que são recortes, interpretações movidas por nossas abordagens funcionais – estamos assim, no território da linguagem. Dois ensaios de Vilém Flusser, Vales e Ventos, publicados em Natural:mente (2011) são motores para pensar essa permeabilidade entre natureza e cultura. Flusser (2011, p.24) considera a topografia dos vales como imprópria à circulação da cultura de massa:

Resumo

A constante inversão mapa e paisagem é pensada por Vilém Flusser em seu livro Natural:mente (2011), com foco na permeabilidade e no caráter cíclico entre natureza e cultura. A partir dele, dois ensaios: Vales e Ventos são refletidos numa imersão artística e na consecutiva geração de imagens. Como parte de meu projeto de pesquisa, o processo de criação se utiliza da conectividade operando como estratégia de possíveis encontros com pessoas de diversas localidades e suas habitações. Estratégia na qual a espessura dos vales e a sacralidade dos ventos surgem como potencial poético e de articulação de informação. O mapeamento constitui-se do início da viagem até o final do processo. É a costura de um trajeto, num jogo entre o visível e o invisível, pois o mapa é afetivo e rearticulável - processo que acontece nos espelhamentos e na construção de identidade(s) a partir de relações de alteridade. Soma- se ao referencial teórico, entre outros, a fenomenologia da imaginação poética de Gaston Bachelard e a noção de ritmo refletida por ele a partir do conceito de ‘ritmanálise’.

Palavras-chave: processo de criação; imaginação poética;

ritmanálise

Este artigo aborda processo de investigação em poéticas O presente artigo visa refletir sobre a criação artística de cartografias, tomando a conectividade como um propulsor na construção de identidade(s). A mesma compressão espaço-temporal dada pela velocidade de comunicação e locomoção que nos leva a diversos lugares no mundo, pode construir a experiência de um espaço outro, criando a possibilidade de identificação com algo ou alguém que parece-nos afastado apenas geograficamente. Gera a oportunidade do estranho tornar-se, por afinidade, íntimo. Os limites entre o eu e o outro parecem cada vez mais borrados. Ainda que esses limites, em relações interpessoais dentro de nossa comunidade de origem, não possam ser considerados totalmente definíveis, a criação de identidade soma-se ao espaço fluído da rede na ampliação de nossas interações para comunidades diversas (Playful Identities..., 2015). Reflexões que participam de meu projeto de pesquisa, no qual adoto essas transformações como método no processo de criação. Investigação, dentro da esfera da arte, conduzida pelo que chamei de dispositivos mediadores de temporalidade, sendo estes a rede, a viagem e o retrato.

Entendido como o avesso de um instantâneo, o retrato que abordo é realizado na conjunção de vários encontros, na temporalidade que vai sendo constituída através de uma relação de alteridade. Como dispositivo, a experiência da viagem visa criar um distanciamento do “automatismo insidioso da linguagem” (Bachelard, 1988, p.18); a viagem é a proposta de uma pausa e de um estranhamento que antecede a composição de uma nova rotina. O deslocamento geográfico explora a potencialidade do rompimento de um ritmo estabelecido, visando a construção de um outro. Para

1 Artista pesquisadora, doutoranda em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, linha de pesquisa Poéticas

Interdisciplinares. Contato:decarvalho.angelica@yahoo.com

delinearam a construção dos trabalhos aqui apresentados. Flusser nos diz que a força dos ventos é decodificada pela cultura mas, apesar disso, “quando o vento cerca minha casa com fúria desesperada, posso ainda ouvir a voz da ‘sacralidade’” (2011, p.117). Contudo, a parede da casa é uma couraça rígida em demasia. Remete-me à experiência que tive ao ser acordada pela voz do vento inundando o vale, som pesado e crescente, como se estivesse a acontecer a presentificação de uma entidade que me retirou do sono, protegido apenas pela pele fina e permeável de uma barraca. Foi o som dos rodopios que atravessavam as passagens do vale que imprimiram o chamado pois, ao abrir a barraca, o movimento nas árvores era ínfimo. Enquanto a visão direta, ocular, nada conseguia que justificasse o som, retornei à paisagem interior e fechei a barraca, mantendo- me apenas com as imagens de manchas e perfurações no nylon azul. Retirada a visão do ambiente externo, retornei à sacralidade sonora do vento. Os sentidos se misturam e, posteriormente, ao editar as fotografias, a pai sagem do interior da barraca me devolvia à potência sonora daquele instante.

O processo imersivo se desdobra em outro ponto do vale, em experiência realizada no espaço de uma casa demolida. Uma pessoa recém-contratada pelo dono da casa atual foi encarregada de me guiar até o local. Andamos por um longo tempo submersos entre samambaias muito altas que não nos permitiam encontrar o caminho. Meu guia, preocupado em não perder o emprego, pediu-me que não contasse a história ao seu patrão e eu o tranquilizei - simples gesto que estabeleceu uma relação de confiança. Acabamos encontrando a área onde antes havia a construção do antigo morador. A aguada abaixo, inspirada no gesto concentrado do sumi-ê, é feita com fungos encontrados no local. A fotografia foi feita no mesmo local - espaço que sugeria uma presença-ausente e que me pareceu delicadamente arquitetado por teias e filamentos, ervas e fungos, por altas árvores que ladeavam e davam ao espaço um tempo sutil.

Como elaborar a vibração de uma temporalidade sutil, de um tempo aumentado ou ainda, de uma duração bem construída?

Penso, com Bachelard, que a duração ou “o microfenômeno só se produz num nó de coincidências” (1988, p. 33). O tipo e a quantidade de fungos que encontrei lá e que me permitiram fazer aquela única aguada, ainda que eu os tenha buscado no dia seguinte, não se repetiram em nenhum outro lugar da propriedade. Assim, também se uniram nesse nó de coincidências a deriva pelas samambaias, a cumplicidade e, nessa construção, o fundamental papel da espera. Espera que fabrica, “escavando o tempo” (ibid. p.50) localizações temporais que irão receber um acontecimento que não é mais nada, supremo paradoxo, daquilo que esperávamos (ibid. p.49).

A própria viagem constitui-se como um tempo de espera que nos separa do desconhecido e que, segundo Gilles “[...] a vivência do vale é de grandiosidade. Não por serem

‘pequenos’ os vales, mas por serem articulados, não servem eles a culturas de ‘massa’. Portanto, o progresso massificador da planície se destina a ser articulado (‘humanizado’) nos vales.”

Afirmação que pode ser tomada como metáfora de conectividade. O vale reflete as bifurcações que caracterizam os seus caminhos e, sendo uma imagem contrária à uniformidade da planície, é ambiente que (in) forma, que dá forma, criando condições para a circulação multidirecional. Os vales são também, segundo o autor, abrigos, “não por isolarem do resto do mundo, mas por comunicarem indiretamente e por grandes voltas [...] lugares nos quais a informação é constantemente reagrupada e reestruturada.” (ibid., p.24). As grandes voltas no espaço da rede possibilitam a criação de comunidades como o couchsurfing, serviço de hospitalidade baseado na internet. Na cidade de Aveiro, Portugal, são mais de 1400 inscritos que aceitam compartilhar gratuitamente suas casas com estranhos. A abordagem que tomamos pode, contudo, não ser apenas funcional, mas poética.

Adoto a deriva no espaço multidirecional da rede e construo através dela, uma cartografia a partir das respostas recebidas aos contatos realizados. Estabeleço assim, a comunicação por bifurcações num espaço intrincado, atenta às falhas e a possibilidade de perda, de ausência de retorno, perda de tempo e ampliação de expectativa. Perda entendida aqui como desorganização fundamental. Bachelard, em seu estudo sobre a ‘ritmanálise’, método criado pelo filósofo português Lúcio Pinheiro dos Santos, fala-nos da necessidade de se “desembaraçar a alma [...] das durações mal feitas, desorganizando-a temporalmente” (1988, p. 9). Contrário à ideia de continuidade temporal de Bergson, Bachelard defende a duração feita por instantes descontínuos onde, para melhor durarmos, para possuirmos a sensação de duração, nosso tempo deve ser construído por ritmos. A desorganização seria, com efeito, uma pausa, intervalo onde nada acontece. Não pretendo neste artigo trazer os inúmeros exemplos que fundamentam a proposição de Bachelard, contudo, encontro na ideia de desorganização temporal a potência de interrupção do familiar, do ritmo já estabelecido, ponto fundamental em meu processo de trabalho. Essa potência de interrupção é a abertura para o contato com o outro e a possibilidade de constituição não só de uma nova duração, mas também de uma outra espacialização.

Que espaço se cria a partir da desorganização temporal? Estendendo os efeitos desse estado do tecido temporal ao espacial, considero a criação do espaço em que vivemos como uma organização afetiva, como refletido por Henri Wallon (2008). Para ele a concepção de espaço se define pelas relações que estabelecemos e que vão sendo constantemente remodeladas a partir da afetividade. O mapeamento funciona como uma estratégia de ação que é moldada e reelaborada a partir das respostas afetivas - um meio de construção do espaço.

O mapeamento e a viagem se entrelaçam criando diversas experiências e suas consequentes materializações artísticas. Com o projeto ainda em estágio inicial, trago as reflexões dos deslocamentos realizados até o momento de escrita deste artigo.

Ao abordar a vivência nos vales em imagem poética, trago um estado de escuta para a dimensão grandiosa que neles se manifesta. Durante uma imersão artística, dois eventos

Tiberghien (2008, p. 196), “permite-nos pensar nos intervalos, nas pausas do discurso, entre dois lugares, entre dois tempos, entre si mesmo e o outro”. É uma pausa antes da mudança de ritmo. Nessa pausa sutil que começa com o mapeamento e a preparação da viagem, crio um desenho e, dele, desço sobre o mundo. As relações que teço com os habitantes e lugares vão constituindo um ser na experiência, ser abismado, em estado de espera, em estado de encontro. Fotografei a pintura feita com o fungo pois meu guia quis ficar com ela. São os pequenos gestos de troca, os pequenos encontros e instantes de identidade e simultânea alteridade, as diferenças que nos unem e nos separam, o toque sutil da relação com o outro, o que construo com os lugares e pessoas.

Referências

BACHELARD, Gaston. A dialética da duração; trad. Marcelo Coelho. São Paulo: Editora Ática, 1988.

__________________. A poética do espaço; trad. Antonio de Pádua Danesi. 1a edição. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

FLUSSER, Vilém. Natural:mente. Vários acessos ao significado de natureza. São Paulo: Annablume, 2011.

HUYSSEN, Andreas. Other cities, other worlds: urban imaginaries in a globalizing age. Durham and London, Duke University Press: 2008 KARRASS, Googie. “FOR THE PLEASURE OF FOLLOWING”: DISTANCE AND NEARNESS IN SUITE VÉNITIENNE, maio, 2015. Disponível em: <http://sigliopress.com> Acesso em: 9/09/2015. NEW MUSEUM. Somebody: An evening with Miranda July, set, 2014. Disponível em: <http://www.newmuseum.org/calendar/view/ somebody-an-evening-with-miranda- july.> Acesso em: 7/03/2015 Playful Identities. The Ludification of Digital Media Cultures. Amsterdam University Press, Amsterdam, 2015.

TIBERGHIEN, Gilles.( ); trad. Inês de Araujo. Revista USP, São Paulo, n.77, p. 195- 199, março/maio 2008.

TOWNSEND, Chris. The Movement of an Object, 2007. Disponível em: <http://www.marysadowling.co.uk/>Acesso em: 9/09/2015.

Mediações digitais na obra do artista: dialogo e interação