• Nenhum resultado encontrado

À maneira de uma breve contextualização, convém assinalar que, em par com a intensificação da presença ubíqua da indústria da vigilância (surveillance) e do controlo electrónico, mais poderosa a cada dia, diversos artistas têm se interessado em explorar aspectos contidos na dinámica do acto de ver e ser visto, investigando questões trazidas por novas práticas de monitoramento. Assimilando os intensos avanços tecnológicos, que geram equipamentos mais eficazes e compactos, as inovações digitais nas comunicações, entretenimento e marketing, assim como a incorporação de tecnologia de ponta, de padrão militar, o sector da vigilância tornou-se mais complexo e multifacetado. Os mecanismos de controlo aprimoram-se e se tornam onipresentes. E como não podia deixar de ser, tal desenvolvimento abre espaço para incursões culturais que investigam as implicações e levantam questionamentos acerca do acúmulo de imagens e informação em nossa sociedade. Artistas que abordam criticamente o modo como a tecnologia – no mais das vezes concebida para uso militar – e suas redes de monitoramento podem turvar ou obscurecer nossa compreensão da realidade política e social. Não é por acaso que já seja possível detectar inclusivamente um nicho de actuação artística a circular sob a terminologia específica – ainda que informal – de surveillance art, tendo inclusivamente tido a chancela de uma mostra temática na superlativa Tate Gallery1. Hasan Elahi, Josh Begley, os colectivos Institute for Applied Autonomy e Surveillance Camera Players são alguns nomes de destaque nesta cena. O artista estadunidense Jordan Crandall insere-se, ainda que de modo transversal, neste espectro de investigadores visuais, unidos na pulsão

* Crítico de arte e curador independente. Atualmente cursa Doutoramento em Arte Contemporânea pelo Colégio das Artes da Universidade de Coimbra, onde desenvolve investigação com o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia. apenasguy@yahoo.com.br

shows que proliferam desordenadamente mundo afora. A este propósito, cabe recordar que a sociedade de controle tal como formulada por Deleuze (1992) ganha corpo e toma forma como nova ordem social dominante baseada justamente no uso que fará das novas tecnologias para o controle social; e assim irá converter-se na mais incisiva expressão do exercício do poder na sociedade moderna. No modelo social de Deleuze, o controle se desloca da esfera do poder disciplinador local – como ocorria no modelo tão estudado por Foucault – para um âmbito expandido, estendendo-se para todos os espaços da vida pública, (Deleuze, 1992: p. 219 -26); é aperfeiçoado pelo emprego massivo da tecnologia e incorporado no cotidiano das sociedades, sendo interiorizado pelos indivíduos como instância necessária e mesmo vital. E tamanha naturalização na assimilação desta dinámica revela que falamos essencialmente de uma lógica da sedução: em sua versão contemporânea – e prescindindo de tácticas mais ostensivamente coercivas, tornadas obsoletas – o controle instala-se de maneira sutil e insidiosa, em uma operação movida pela activação de todo um imaginário do desejo, mediado pelo aparato tecnológico. Aspectos, como se verá, de importância central no corpo da obra de Jordan Crandall.

Jordan Crandall, Drive - Track 3. 1998-2000. Vista da instalação. Ainda em Track 3, o artista se vale de imagens que podem ser vistas, em suas próprias palavras, como metáforas tecnológicas, numa forma de falar de tecnologia de um jeito que nos seja familiar, como o telefone e o carro – coisas simples. Nas obsessões repetitivas e algo específicas perceptíveis no vídeo, como na cena em que a atriz encena uma coreografia de movimentos repetidos com o telefone, percebe-se uma compulsão a ser codificada, um certo padrão naqueles gestos. Este é um mote que interessa a Crandall: “...um modo de pensar em como sistemas visuais de alta tecnologia estão nos instilando certos hábitos, rotinas e formas de comportamento – coisas e situações às quais nos ajustamos4”. A sugestão da presença do corpo e seus sentidos, recorrentes nesta obra, parece trazer consigo uma dimensão de prazer associada. Um prazer de se ajustar ou se adequar a ou em algo, de ocupar e ser contido. De ser controlado por algo. O significado do título, em inglês - Drive - é, primordialmente, pôr algo em movimento (to set things going), além de diversas acepções possíveis; nesta peça, estaria em jogo não apenas um driving/ moving process, mas também um processo reverso, o de ser levado, conduzido pela tecnologia, ou pelo desejo. Um sistema às avessas passa a existir neste universo, onde o ato de ver torna-se o de ser visto, por meios de avançados combinações entre corpos, máquinas e imagens. Gosto de

ver sempre a imagem em termos desse tipo de aglomerado corpo-máquina- imagem”.2

Com o advento das novas tecnologias digitais - incorporadas pela indústria bélica e sistemas militarizados globais -, os movimentos passariam, na concepção do artista e explicitado nesta obra, a não mais representar ações tanto quanto as rastrear, definindo uma mudança na representação do processamento do movimento. É o que vemos nas imagens de Drive: o artista não registra movimentos, mas os mapeia, rastreia. Onde antes o movimento era descrito por uma simples linha, progressivamente, agora configura- se multidimensional, em sincronia. E se avaliarmos que movimento não equivale sempre a ímpeto narrativo, podendo ser aqui compreendido como transmissão de um fluxo de informações que pode ser equacionado, calculado, não é difícil assimilar que, ao acionar de um comando, um homem ou mulher na rua ou em seu quarto subitamente se tornem um corpo mapeado – simultaneamente uma forma natural e um conjunto de coordenadas.

Jordan Crandall, Esq.: Drive - Track 3, 2000. Cortesia: Neue Galerie am Landesmuseum Joanneum

Transitando entre o paradigma cinemático e o da database visual, Drive enfatiza os complexos militarizados em que está imerso o imagético contemporâneo, seus novos formatos de regras e os modos particulares de condicionamento pelos quais passam a ‘armar’ nossa visão. Essa nova visão - uma visão armada3 - ativa formatos de regras e convenções que alteram profundamente nossos padrões de percepção e assimilação e seus desdobramentos. Um destes desdobramentos possíveis é a identificação de novos tipos de mundos eróticos que começam a aflorar, surgidos dentro deste universo de novas técnicas de controle e vigilância. Esta dimensão erótica congrega pares conformados entre homens e máquinas, novas percepções e sensações de prazeres íntimos e invasivos - que usurpam o espaço privado - e novas formas de ver e ser visto simultaneamente que conduzem a uma nova construção de sensações - exibicionistas, voyeurísticas ou sado-masoquistas - que estão ajudando a mudar os próprios contornos do corpo, seus desejos e seu senso de orientação no mundo. Na atmosfera intimista e estilizada em que transcorre a quase-narrativa de Track 3 – Compulsion/Registration, em que sensualidade e alguma perversão convivem nervosamente, constata-se a premência de uma reflexão acerca dos limites entre o voyeurismo e a vigilância, o espaço privado e a existência monitorada, instaurada pelos mecanismos de vigilância e controle que mais e mais povoam a existência na metrópole contemporânea. Onde termina um e começa o outro? É possível delinear ou identificar uma fronteira tangível, que possibilite uma discussão de contornos éticos, na vasta rede de ações que perpassa este território indefinido? A pertinência de discussões éticas neste campo parece ser reforçada numa sociedade de controle como se configura a de nossos dias, onde os mecanismos da vigilância são incorporados até pela indústria do entretenimento, nos duvidosos reality

demarcador territorial, mas uma divisão temporária; seus mecanismos reguladores possuem dimensões subjetivas e ajudam a [também] delinear o self e o corpo. Formatos de rastreio, targeting e identificação começam a se undir e a minar nosso modo de ver, comportar e desejar. Eles penetram a fundo em nossa estrutura perceptiva. A câmera indica o local da batalha.”

Detendo-se sobretudo sobre as técnicas de controle, Heatseeking não se limita a discutir o poder: neste projecto – como em outros – Crandall convoca um fator de peso na dinâmica contida no do ato de vigiar e ser vigiado: a tensão erótica, explorando assim novos vetores do desejo que emergem numa cultura visual cada vez mais mediada por um olhar “militarizado”. O artista esclarece seu interesse e entendimento desta noção, que se mostra tão cara a seu processo investigativo: “Militarization is a way to confront issues of power. It is a potent combination of politico- territorial logic and market-driven logic and a way to deal with assemblages of enforcement and control, whether in terms of ideology, technology, territory or economy. [...]I’m interested in what happens to issues of representation, visuality and the body when you look through this lens; how military logic enters into the field of representation and the very structure of perception.”(Crandall, 2005: 18)

Jordan Crandall, still de Heatseeking, 2000. 6-channel videoinstallation. 6 min.

Conclusão

Em Drive e Heatseeking, Crandall incita a uma reconsideração atenta e minuciosa da imagem em movimento, em tempos de sistemas de monitoramento permanente. Traz à discussão como as imagens nos afetam hoje em dia, tanto fisicamente quanto psicologicamente, e como elas estão profundamente ligadas a mudanças de padrão em nossa percepção e assimilação. Seu trabalho nos impele a considerar as instituições e corporações por trás destes modos de visão, e o quanto somos por eles afectados. Em sua estética plural, os trabalhos de Crandall conjugam o fenômeno do movimento em termos cinematográficos – o conjunto de convenções a partir do qual toda uma noção de movimento passa a ser representada – ao vocabulário do videoclip, câmeras de vigilância e dos novos sistemas de rastreio militarizados. Deste apanhado de imagens pós-cinemático, como o artista gosta de sublinhar, emerge um espaço condensado e tecnologicamente híbrido, onde corpo e máquina entram em colapso, instaurando uma sedutora combinação de desejo e paranóia, sensualidade e esterilidade que mantém seu potencial reflexivo.

Poder-se-ia ainda identificar em sua obra uma algo improvável combinação de conceitos da crítica da visualidade pós-moderna e da simulação, como propostos por Jean Baudrillard (o espaço hiper-real e a cada vez mais sistemas de redes e bases de dados computadorizados.

Neste processo de investigação, Jordan examina outra trajetória do desenvolvimento da representação, que corre em paralelo e se entrelaça com nossas existências civis: “Ser rastreado e codificado é também um modo de ser alguém que importa, alguém a quem se presta atenção. É um processo de ‘vir a ser’ ”.

Heatseeking

Na escuridão da sala expositiva, gradualmente desenham- se imagens em seis écrãs postados à maneira de um videowall, em duas linhas horizontais. Num primeiro alternam-se imagens aludindo ao universo militar e uma figura feminina em registo enigmático e lascivo. Aos poucos, os demais são ocupados com cenas em que de modo geral prevalece a presença do corpo, a emergir em situações diversas. Dois homens jogam golfe em prática noturna e isolada. Uma mulher rasteja no deserto. Outra aguarda numa mesa de cirurgia. Um casal, nu, num sítio próximo à água. O corpo ora estetizado, ora fragilizado; o corpo libidinal, o corpo que é rastreado, o corpo que é veículo para a violência. Os registos alternam-se entre o documental – imagens de câmeras de vigilância e militares, de monitoramento à distância – e imagens encenadas. Sem ostentar qualquer aparente hierarquia visual e recusando- se a constituir uma narrativa integrada, estes microeventos adquirem alguma consonância à medida que o vídeo avança e o áudio se impõe de modo ambivalente, actuando como factor disruptivo mas, de alguma forma, também como elemento amalgamante. Também ambivalente é o pathos do erotismo que se instala, alternando-se com um registo de agressividade mais pontual. Heatseeking (2000, 6’) é uma video-instalação em seis canais concebida por Jordan Crandall a partir de convite para participar no InSITE2000, evento envolvendo instituições culturais nos EUA e México e sediado em cidades fronteiriças destes países, respectivamente San Diego e Tijuana.

Jordan Crandall, still de Heatseeking, 2000. 6-channel videoinstallation. 6 min.

Instados a produzir um trabalho que comentasse ou se reportasse ao contexto sócio-político local, os artistas desenvolviam assim propostas tendo em conta a situação de permanente tensão naquela zona territorial limítrofe. Para a realização de Heatseeking, o artista – que frequentou esta área por um ano e meio, no processo de recolha e captação de material visual para sua proposta – recorre a uma diversidade de tecnologias, incluindo dispositivos de vigilância usados pela polícia americana de fronteiras para perseguir imigrantes ilegais provenientes do México. A partir deste material o artista então procede a uma edição, fazendo os necessários retoques e ajustes digitais a posteriori. O tema da fronteira interessa grandemente a Crandall, sobretudo pelas possibilidades de ser trabalhado em acepção expandida: “A ‘fronteira’ é não apenas um

difusa distinção entre real e virtual5), transpostos para uma atmosfera que se aproxima do universo cyberspace6 e enclausurado anunciado por William Gibson – muito próximo de nossa actual condição de existência nas metrópoles. O resultado pode ser lido como um diagnóstico pertinente do nosso presente estado de tecno-cultura, um estilo de vida em que a urgência pela necessidade de discussão crítica da real ameaça às liberdades civis materializada nos onipresentes sistemas de controle e vigilância mais e mais se cristaliza. A produção de Crandall incita à reflexão e a reavaliar as relações enre arte e tecnologia. Enquanto eventualmente se possa considerar datadas obras como Drive e Heatseeking, criadas há cerca de 15 anos, uma vez postas em contexto revelam que seus postulados nunca estarão totalmente superados; apenas deslocados “mais para trás”, de onde serão certamente reconvocados para actualizar o debate, já que a marcha das conquistas tecnológicas só faz avançar.

Referências Bibliográficas

CRANDALL, Jordan. “Anything that moves: Armed vision”(1999). Disponível em http://www.ctheory.net/articles.aspx?id=115. Acessado a 8 de agosto de 2015

____________ (2005). “Envisioning the Homefront: Militarization, Tracking and Security Culture”. Entrevista a John Armitage. In Journal of Visual Culture. SAGE Publications, Thousand Oaks, California. vol. 4: 1, 17-38

DELEUZE, Gilles (1992). “Postscriptum sobre as sociedades de controle”. In Deleuze, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: 34 Letras, p. 219-26

FOUCAULT, Michel (1985) Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado, Rio de Janeiro, Graal, p. 80

(2004). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, p. 150 NEGRI, Antonio; HARDT, Michael (2001). Império. Trad. Berilo Vargas. 4. ed. São Paulo: Record,

p. 42–3.

1 Trata-se da mostra Exposed – Voyeurism, Surveillance & the Camera. Tate Modern, Londres, maio-outubro de 2010. 2 Depoimento ao autor aquando de exposição sua no Paço das

Artes, em São Paulo, em julho de 2002.

3 Armed vision no original, conceito sobre o qual Crandall discorre em ensaios de sua autoria (veja mais em www.jordancrandall.com). 4 Depoimento a Lawrence Rinder – curador para arte contem- porânea do Whitney Museum -, em apresentação na The Kitchen,

New York, 20-01-2001

5 Conceitos e noções recorrentes no pensamento de Baudrillard, marcadamente em Simulacro e simulação (Lisboa: Relógio d’Água,

1991). Como leitura complementar em conteúdos especificamente associados a aspectos do trabalho de Crandall, sugere-se, do mesmo autor, The Gulf War Did Not Take Place (Trad.Paul Patton,

Indiana University Press, 1995)

6 Conceito introduzido no seminal romance sci-fi de William Gibson, Neuromancer (Ace Books, 1995)

Performer artesão e operário: relato de uma experiência