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Desenvolvido a partir de referências no campo do cinema e da literatura, o projeto artístico intitulado O Observatório[1] (iniciado em 2011), resultou em um vídeo composto por fotografias realizadas em um antigo Observatório Meteorológico e Astronómico na Serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia, região Norte de Portugal. O romance La invención de Morel foi assumido como mote na construção do trabalho e La Jetée funcionou como plataforma de análise e reflexão sobre as questões que surgiam durante o seu processo de execução.

Algumas características encontradas no edifício da Serra do Pilar evocaram imediatamente o cenário da trama de Bioy Casares, aproximando a relação entre a obra do escritor argentino e o trabalho em curso. A semelhança entre as atmosferas misteriosas e nostálgicas marcadas pela presença (e rastros) das máquinas e aparelhos científicos funcionou como força motriz do trabalho, orientando e atravessando as etapas de execução do mesmo. No edifício que abrigava o antigo observatório ainda estão guardados alguns instrumentos de medição (bases, suportes, papéis e gráficos produzidos anos atrás em estado de abandono) que evocam certa “suspensão temporal”, característica de um local de produção científica e observação do mundo que ficou à margem por conta das novas tecnologias. O projeto futuro é que seja convertido em museu, mas enquanto não é colocado em execução mantém o local em uma condição de limbo, entre a função que exerceu no passado e a que será por ele assumida no futuro. Tal condição também activou a conexão com a “ilha de Morel” e suas projecções espectrais. Esta atmosfera nostálgica, bem como a presença de máquinas e seus rastros, possui semelhanças com alguns aspectos presentes trama do escritor argentino, nutrindo relações entre a obra de ficção e a realidade encontrada no edifício. O narrador de O Observatório, inspirado no protagonista de A invenção de Morel, descreve em seu diário o local em que se encontra impelido por fenómenos que desconhece. Ambos parecem condenados a observar e tentar compreender o estranho lugar que habitam; quando as tentativas de orientação no local se tornam caóticas e impossíveis, a desorientação ganha destaque na narrativa.

A trama inventada para O Observatório, como ocorre em La invención de Morel, foi construída à maneira de um diário — os relatos foram inseridos no vídeo sob a forma de legenda. Por meio de fotografias do local, sequenciadas, articuladas em função de uma narrativa pseudo- documental, o trabalho ganhou forma. Tais imagens foram supostamente encontradas junto ao diário do narrador após o seu desaparecimento. Este, identificado apenas pelas iniciais A.B.C.[2], teria retomado sua consciência em um observatório astronómico desabitado após uma experiência de naufrágio. Sozinho, passa a ali viver, um local aparentemente sem uso, na companhia de alguns aparelhos de medição que estranhamente mantém-se funcionando em determinadas situações.

insónia crónica. A privação do sono é também uma técnica militar de tortura, capaz de produzir estados alterados de consciência: “A negação do sono é uma desapropriação violenta do eu por forças externas, o estilhaçamento calculado de um indivíduo.” (Crary, 2014: 16)

Conclusão:

La invención de Morel propõe o exercício de imaginar a existência de um lugar povoado por imagens. Neste aspecto o romance de Casares parece antecipar o modo recorrente como se experienciam os lugares hoje. Estar presente torna-se cada vez mais relativo diante da oferta tecnológica crescente que exige constante atenção. Parece estar em curso um processo de aniquilamento parcial da presença (consciente, não apenas física) nos lugares e dos vínculos sociais e afetivos. Tal fenómeno aproxima-se da ideia de fantasmagoria presente na obra do escritor argentino. Se todo o tipo de experiência pode ser gravada e compartilhada a qualquer momento, nenhuma está imune a esta lógica de produção, conforme argumenta Jonathan Crary:

“A promoção e adoção de tecnologias wireless, que aniquilam a singularidade dos lugares e dos acontecimentos, é simplesmente um efeito colateral de novas exigências institucionais. A espoliação das tessituras complexas e das indeterminações da vida humana por 24/7 incita, simultaneamente, uma identificação insustentável e autodestrutiva com suas exigências fantasmagóricas; solicita um investimento sem prazo, mas sempre incompleto, nos diversos produtos que facilitam essa identificação. Não elimina experiências externas a ele ou independentes dele, mas as empobrece e diminui.” (2014: 40)

Nota-se que tanto em La invención de Morel como em La Jetée e Solaris — podendo aqui ser também incluído o projeto O Observatório — algum tipo de conflito é instalado na relação entre os seus respectivos protagonistas e o lugar onde se encontram. A experiência de desorientação é constante — tornando-se mais complexa quando leva-se em conta que tais lugares são paradoxalmente entendidos pelos narradores tanto como possibilidade de refúgio como razão do seu próprio tormento. Parece estar sempre em causa uma ideia de “pertencimento em conflito”, mediada por aparatos tecnológicos (ou seus rastros). Situações estas que podem ser evocadas pelo relato do náufrago no romance de Casares, e estendidas ao modo de vida contemporâneo: “o roçar das imagens me produz um pequeno mal-estar (sobretudo quando estou distraído); também isso passará, e próprio fato de poder me distrair pressupõe que eu viva com certa naturalidade” (Casares, 2006: 95) A ideia de refém também pode ser remetida, de modos diferentes, às personagens. Talvez pelas relações de poder a por aparatos tecnológicos (ou seus rastros). Situações estas que podem ser evocadas pelo relato do náufrago no romance de Casares, e estendidas ao modo de vida contemporâneo: “o roçar das imagens me produz um pequeno mal-estar (sobretudo quando estou distraído); também isso passará, e próprio fato de poder me distrair pressupõe que eu viva com certa naturalidade” (Casares, 2006: 95).

O Observatório (2011). Still do vídeo.

As fotografias que integram o trabalho foram estrategicamente capturadas com a exposição luminosa incorreta (superexpostas) para sugerir, no registo da ficção, que a zona do observatório estaria sob o efeito de um “fenómeno luminoso” capaz de impedir a observação do céu pelo excesso de luz — uma justificativa sugerida na narrativa para a suspensão das atividades científicas do edifício. Para além das referências comentadas, o projeto aborda uma questão do ponto de vista constitutivo da imagem: é composto por fotografias que se apresentam em processo de “desaparecimento” justamente pelo excesso da matéria que as constitui, a luz. Necessária para o surgimento da imagem fotográfica, a luminosidade é também “o que pode fazê-la desaparecer, apagá-la, eliminá-la por inteiro: é preciso se proteger dela tanto quanto procurá-la. Em suma, o corpo fotográfico nasce e morre pela luz.” (Dubois, 1993: 221) A superexposição luminosa também contribui para tornar o local pouco reconhecível nas fotografias, dificultando a sua identificação e abrindo caminho para dúvidas a respeito da sua existência real. O Observatório busca evocar rastros de um lugar perdido, com localização indefinida e remota, conforme assinalado no texto que encerra o vídeo: “Após encontrar o diário de A.B.C. tentei por muito tempo localizar o Observatório. No entanto, as coordenadas geográficas que constam nos apontamentos correspondem a pontos esparsos no Oceano Atlântico, possivelmente são todas forjadas. Interrompi a busca ao perceber que A.B.C. desejava que o Observatório não fosse encontrado.” A presença de grandes áreas brancas nas imagens assinalam o excesso de luminosidade, que no registo da ficção procuram indicar como este efeito perturba o sentido de orientação do narrador, interferindo na forma com que este se percebe e se relaciona com o local em que se encontra. A atmosfera luminosa que rodeia o observatório parece impedir que seu habitante se arrisque a deixar o local, como se pode observar em uma passagem do vídeo: “No terraço procuro onde este lugar acaba. Mas a luz cega e desisto”.

A luminosidade constante atormenta a personagem: “daqui nunca vejo a noite.” A dimensão temporal sofre uma espécie de apagamento, abalando a relação entre sono e vigília. Nenhuma atividade pode ser realizada sem a presença invasiva da massa luminosa. “Quando suporto a luz, escrevo ou fotografo” — escreve em seu suposto diário o narrador. Neste sentido é possível tecer algumas aproximações com a atmosfera branca que invade a nave em Solaris, perturbando a consciência dos cientistas e gerando a

A ideia de refém também pode ser remetida, de modos diferentes, às personagens. Talvez pelas relações de poder a que estão submetidas — sejam elas institucionais, geográficas, psicológicas. Na escuridão dos subterrâneos de Paris onde são vasculhados sonhos e memórias (La Jetée), na luminosidade opressiva que oblitera o sono e a conexão com o presente em uma nave espacial (Solaris) ou em um observatório desativado (O Observatório) estão presentes tentativas de combater ausências de si diante de alguma força maior. Porém, durante o combate, acabam flertando com a fantasmagoria. O epílogo de La invención de Morel pode revelar uma metáfora cruel: após passar seus dias a tentar interlocução a imagem-fantasma de que enamora, o protagonista decide deixar de viver, para assim estar sempre a seu lado — em forma de projeção.

Notas:

[1] Para a visualização do trabalho aceder: https://vimeo. com/32201153

[2] As iniciais do suposto náufrago são uma referência-homenagem a Adolfo Bioy Casares.

Bibliografia:

CASARES, Adolfo Bioy. (2006) A Invenção de Morel. 3 Ed. – São Paulo: Cosac Naify.

CRARY, Jonathan. (2014) 24/7 — Capitalismo tardio e os fins do sono — São Paulo: Cosac Naify.

DUBOIS, Philippe. (1993) O Ato Fotográfico — Campinas: Papirus. GERHEIM, Fernando. (2008) Linguagens inventadas: palavras, imagens, objeto: formas de contágio — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.

HARBORD, Janet. (2009) Chris Marker: La Jetée — London: Afterall Books.

RIVERA, Tania (2013) A imagem e o escuro — Revista Carbono #03: Rio de Janeiro. http://revistacarbono.com/artigos/a-imagem-e-o- escuro/ (acedido em 21/12/2014)

O intervalo da Invenção: a duração como potência e singularidade