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Mestranda em Artes Visuais, linha de Poéticas Interdisciplinares, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e graduada em Comunicação Visual – Design, pela mesma instituição, em 2014. Minhas investigações poéticas se situam no espaço que existe entre as coisas, espaço que não cessa de vibrar, que se apresenta como lugar de ressonância infinita. Meus trabalhos dizem dos gestos que evidenciam que tudo compartilha de uma mesma essência, no sentido de que as coisas estão sempre a influenciar umas às outras. Endereço eletrônico: beeatriz@gmail.com Telefone de contato: + 55 21 97926 6446

ouvidos, ouvir com todo o corpo. O murmúrio só se revela àqueles que lhe dedicam atenção, usando as mãos em forma de concha para lhe amplificar o volume, arqueando os músculos das costas, estirando pernas e pescoço, fechando os olhos. É preciso dobrar-se sobre o universo para ouvir sua respiração. Pois talvez não seja preciso crescer com os ouvidos para escutar os grandes murmúrios das estrelas. Supondo que se repetem e se refletem em cada corpo existente, pois que ressoam em tudo o que há no cosmos, então, quem sabe, seja justamente nesta vitrola com oito agulhas que ele se revela. O minúsculo, é certo, inaugura um universo. 2

A Pastoral de Beethoven, sinfonia que gira no aparelho perdeu-se no meio deste ruído eternamente circular. A música que cantava as alegrias do campo sugere um mapa celeste, evidenciando uma proximidade possível entre céu e Terra. Afinal, foi justamente nas cordas dos instrumentos musicais que Pitágoras encontrou a harmonia que julgou existir também nas órbitas dos planetas. Já não se pode dizer, portanto, de um microcosmos que existe dentro de um macrocosmos; da vitrola que existe dentro de um universo. A vitrola, neste caso, ou a lira de Pitágoras não são repetições em outra grandeza do macrocosmos que existe lá fora, mas inauguram uma afinação entre o pequeno e o grande, entre o cá e lá. Fazem transparecer, para as sensibilidades mais atentas, o que eles, o pequeno e o grande, têm em comum. Aqui, um senso de miniatura não deve ser entendido como reprodução em outra escala daquilo com que se parece, mas um cosmos inteiro, capaz, inclusive, de amplificar, aos olhos de quem vê, certos valores e aspectos que, no mundo em tamanho “real”, parecem mais desvanecidos. 3 Mais do que diminuir um objeto, o gesto de miniaturizar diz de aumentar quem vê. Então, mais do que dobrar-se sobre um universo minúsculo, se está, gigante, dobrando sobre o universo em tamanho real. Também o murmúrio, este lamento baixo que se escuta na vitrola, não é miniatura de um som que, em tamanho real, se ouviria alto, potente. Ele diz de, e se afina com, “todo um cosmos que fala baixo”. 4 Tão baixo que, por vezes, se julga que é silencioso. Na escala do ouvido humano, parece que todos os corpos, ressonantes, vibram sem se escutar. O som é, portanto, mais sentido do que ouvido: a audição se revela como um tato muitíssimo especial. E é, quem sabe, precisamente no limite do silêncio, neste que se faz sentir, se faz quase ouvir, que se percebe algo de extraordinário: a possibilidade de que todas as coisas compartilhem de uma mesma e só essência; de que exista um espaço entre olhar, ouvir, tocar, em que eles (quase) se encostam. Como se tudo fosse, primordialmente, constituído de ondas (tudo sendo potencialmente “ouvível”, potencialmente visível e sensível), como se fosse o som, sem lhe especificar uma natureza mais precisa, que informasse a matéria. 5

Na minúscula fricção circular entre agulha e vinil, existe algo que diz do som como energia. Energia no sentido de que nasce, tal como o calor, do movimento consonante de dois corpos, do contato entre eles, e se propaga. Energia de irradiação, o calor do Sol chega à Terra através do vácuo, como uma espécie de influência. Pois que, talvez, não se possa medir o tamanho do Sol pelo diâmetro de seu fogo, mas pela imensidão de sua luz. Ele alcança a Terra, a iluminando, e lhe acaricia com seu calor. Do mesmo modo, entre os planetas e a vitrola há também um espaço de toque, de influência; espaço que diz das ressonâncias entre todas as coisas, de como tudo se afina de modo muito sutil. Afinação que nasce não se sabe aonde, se na sensibilidade delicada que a percebe ou se no próprio fluido em que se

vive – que se movimenta, ondulando-se – e do qual as próprias sensibilidades individuais fazem parte. Em todo caso, o observador modifica o experimento. 6 A este sonho das ondulações, une-se o sonho das circularidades. Sabe- se que as órbitas dos planetas são elípticas, mas é no círculo que melhor se imagina o andar dos corpos celestes. Desde o sistema proposto por Ptolomeu aos primeiros esquemas das órbitas que os elétrons percorrem ao redor do núcleo do átomo, 7 é na forma circular que filósofos e cientistas parecem ter encontrado a perfeição. Estado final de tudo ou para onde tudo caminha. Pois que “a redondeza é fruto da paciência” 8 e, ao que parece, o cosmos é dotado de paciência infinita. Com o tempo, é possível que as agulhas deixem marcas circulares (e irreparáveis) no disco, apagando para sempre a música que, em ruído constante, dizia do som que não se consegue ouvir. O destino de Música das Esferas é o silêncio, este que se faz presente no universo, vácuo que engole qualquer música possível, ao menos aquelas possíveis para os ouvidos humanos. Muito lentamente, a redondeza das órbitas mudará o que se escuta; o trabalho estará irremediavelmente alterado, justamente por causa desta vontade de circularidade. No entanto, o ruído, a música e osilêncio são aspectos diferentes de uma mesma coisa, o “ouvível”. Ostais limites entre o ver, o ouvir, o tocar, que, lentamente, trataramde apagar-se, estão aqui também, de outro modo, apagando- se. Da mesma forma que há entre o tato e a audição, o tato e a visão, a visão e a audição, um espaço de influência, de ressonância, em que se tocam suavemente, também aqui, entre ruído, silêncio e música, percebe-se espaço semelhante. Porque os três dividem da mesma natureza e é, quem sabe, uma espécie de sorte – na medida em que se deseja encontrar algo naquilo onde se procura, e se encontra – que, irremediavelmente, os aproxima. 9 O espaço de influência nasce neste e deste corpo sonoro que se realiza no desejo de quem o escuta e imagina. Presente, aqui, tanto na origem quanto no fim, esta sorte imprescindível é achada justamente porque é fruto de uma busca. Afinal, da mesma forma que o ruído resultante era imprevisível até que, de fato, se construiu o objeto, também não se pode prever o que se dará com o disco e com a música. Não de pode prever, mas se imagina, se deseja. Quanto tempo até que a música se apague; se as agulhas se quebrarão ou se, antes, quebrará o disco, ou mesmo a vitrola. Quanto tempo até que os planetas saiam de suas órbitas; ou quanto tempo até que todos tivessem, há muitos milhões de anos, encontrado seus caminhos circulares ao redor do Sol.

Música das Esferas inaugura, através de sua música circular, outra relação com o cosmos. Se é bem verdade que se possui tanto melhor o mundo quanto mais hábil se for em miniaturiza-lo, 10 então o objeto sonoro é uma tentativa de possuir todo o universo e, ao possui- lo, entende-lo. Entende-lo, que fique claro, no sentido de ouvi-lo, na medida em que se escuta seus murmúrios, como um oráculo que escuta atentamente os murmúrios de um rio para desvendar o futuro. Oráculo cósmico, quem escuta o universo é impelido a imagina-lo, a sonha- lo. O objeto funciona como catalisador de todo o som que existe, incluindo o de quem o escuta. Nas vibrações pequeníssimas, voltam as frequências particulares das estrelas e planetas todos, como se, de algum modo, o disco não tocasse apenas a sinfonia de Beethoven que gira no aparelho, mas a sinfonia galáctica e a nossa própria, que é constantemente reproduzida através de todos os 300 mil milhões de anos luz que é a nossa galáxia e além.

Notas:

1 “Dizia-se que cada um dos planetas e estrelas fazia música enquanto viajava pelos céus. Pitágoras, que havia elaborado as razões entre as várias harmonias de cada corda sonante, descobriu que havia uma correspondência matemática perfeita entre eles e, como também estava interessado nos céus, notou que esses, do mesmo modo, se moviam de maneira ordenada, conjeturou que as duas coisas eram aspectos da mesma lei matemática perfeita, que governava o universo. Se fosse assim, então, obviamente os planetas e as estrelas deveriam fazer sons perfeitos ao se mover [a música das esferas], exatamente do mesmo modo que a vibração da corda produz harmônicos perfeitos.” In SCHAFER, R, Murray. O ouvido pensante. São Paulo: Unesp, 2011, p. 151.

2 “Assim, o minúsculo, porta estreita por excelência, abre um mundo. O pormenor de uma coisa pode ser o signo de um mundo novo, de um mundo que, como todos os mundos, contém os atributos da grandeza.” In BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 164.

3 “... é preciso compreender que na miniatura os valores se condensam e se enriquecem.” In ibid., p. 159.

4. ibid., p. 181.

5 Na teoria das supercordas, o que está no cerne de todas as coisas (dos quarks, dos elétrons, da luz, da gravidade, etc.) é uma pequeníssima corda vibrante. O padrão da vibração, ou seja, o padrão da onda, é o que determina sua natureza. Cf GREENE, Brian. O universo elegante: supercordas, dimensões ocultas e a busca da teoria definitiva. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

6. Cf GLEISER, Marcelo. A dança do universo: dos mitos de criação ao Big Bang. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

7 ibid.

8 JABÈS, Edmond, apud MALDONADO, Mauro. Raízes errantes. São Paulo: Edições SECS SP, 2014.

9 Quando, por exemplo, John Cage, insere em sua obra a “chance” ou o “acaso” ou a “sorte”, está dizendo que os ruídos são apenas outra fase ou estágio da música convencional. Está não somente abrindo a sala de espetáculos para ruídos imprevistos, como também afirmando-os como parte da obra. Tornam-se, ruído, música e silencio, parte da mesma coisa. Cf KAPROW, Allan. Essays on the blurring of art and life. Berkeley, Los Angeles, London: University of California, 1993.