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Desenvolvi meu trabalho fotopoético em sucessivas e repetidas incursões em ruelas e caminhos de Pyrgos, Akrotiri, Megalochori, Messaria. Numa ilha que dorme escutando um vulcão adormecido e que desperta na maioria dos dias dessa primavera, com nuvens límpidas flamejando um azul profundo no céu. Diante dos nossos pés e olhos uma paisagem engendrada na explosão de milhares de pedras fumegantes atravessando o vento úmido do mar. Minhas imaginações conviveram com a fascinação destes tempos milenares que emanam da luminosidade mineral de sua topografia vulcânica, da fluidez de suas infinitas pedras cujo destino parece ser dissolver-se na imensidão azul do céu. No fundo ressentia nas pedras os sopros de silencios no vento e a metamorfose como uma certeira esperança de atravessar um além do tempo. Impregnado destas provocações, caminhei com minha camera em deriva devaneante na escuta dos tempos silenciosos destas paisagens longamente estereotipadas pelo olhar postal. Nesta aventura, o primeiro passo foi ficar cego as milhares de imagens que aprisionam usualmente Santorini nesta esterotipação turística. Estar atento ao encontro nas pequenas reentrâncias e cantos da paisagem dos potenciais poéticos que são a esperança de uma superação. E assim dar forma a essas silenciosidades pulsantes nos cantos e pedras, nestas testemunhas do aniquilamento e ressurgimento do drama vulcânico. Um vulcão que dorme silencioso nos fala de uma presença viva da morte, nos incita a prescutar cegamente em impessoais memórias. Neste fremir de tensões imemoriais o olhar se aniquila na busca dessa latente lucidez, aguardando as múltiplas conjunções da possibilidade de presenciar a irrupção de lugares ́fora do tempo ́. O artista caminha não apenas assolado pelas provocações cósmicas, mas também pelas falas de um pensamento instruído. A experiência intensiva de dissolver nos trajetos as ilusões, a retórica desviadora, colocar em suspenso as fantasias sem rumo, apreender sem prender, não pensar o pensando.

Meus olhos iludem-se em buscar a compreensão e cumplicidade da minha camera nesta poetisação de nuvens e ventos vaporizando o céu, numa mineralidade aérea. Na fabulação criadora do meu olhar a paisagem encontra a tessitura de algodão doce na ligeireza das nuvens e um céu azul querendo ser lápis lazuli.

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Também não posso esquecer de Bachelard4 cogitando os devaneios cósmicos no céu azul, na criação de sua filosofia poética, consonante com ele me deparo com a intensa evasão neste mínimo de matéria e onde realiza-se este estado de visão pura (de voyant pur). Em devaneios criadores dissolvemos lentamente esta matéria “azul”, uma desmaterialização gradativa dos sentidos da representação.... do céu azul. Superação que nos aporta puramente a lucidez da transparência.

Resumo

A lua brilha na pele da lagartixa, só a pedra recolhe o silencio e lamentos da noite. Os cachorros gritam diante da obscura indecisão e medo que exalam pelos poros, seus olhos prescutam fundo, lembrando faces da nossa humanidade. Nos encontramos imersos nestas instáveis e minerais profundidades, não além do mundo, mas bem aqui, tentando dar consistência concreta as ideações conceituais, intuições imagéticas ou faiscamentos do nosso desejo. Esta discussão textual vincula-se a um projeto continuo de imersão artística desenvolvido principalmente em Pyrgos, Grécia tendo como provocação a fascinação de milênios de luminosidade mineral da topografia vulcânica, da imaterialidade das pedras flamejantes do céu, de uma mineralidade estelar no solo. Das longas frequentações na criação das imagens fotopoéticas intui algo nestas pedras que me atravessam tal um brilho de um olhar amoroso. Uma qualquer coisa sem lugar, uma sensação fora de tempo, testemunho algo que o pensamento ainda não compreende, mas intui saber. Um conhecimento em que os conceitos e as imagens se fundem sem dominância de partes ou das instâncias de nossa humanidade, apenas a oscilação instável entre os fluxos no devir. Intui poeticamente, nesta quase sonoridade mineral, que o viver em situação criadora, significa prescutar num tempo sem dimensão.

Nesta busca, criar tem o sentido de derivar sem tempo em estâncias sem geografia, crer no in-crivel desenho das sinuosidades do ainda sem nome, nos ares de nuvens ligeiras. Só nos resta fabular conceitualmente, como criadores ou testemunhas, na direção de um plano instável, desfixado onde todas as variáveis contém a possibilidade de sua des-ordem, ou trans-fuga, escapar por reentrâncias num vislumbre de algo sempre sem resposta.

Palavras-chave: pensamento-artista, Bachelard, Deleuze,

fotopoética, imaginal poético.

Este texto vem permeado pelas vivências e imagens de uma imersão artística realizada em abril/maio de 2015, Santorini, Grécia. Além de falar sobre esta experiência teremos o pretexto para introduzirmos algumas ideações sobre estratégias e processos criadores. Ressaltando especialmente a presença de um imaginal criador nos trajetos da praxis artística. e a prerrogativa e primordialidade do pensamento-artista na construção da reflexão artistico- conceitual da arte. Um pensamento de natureza multiradial, mediador de inúmeras e imprevísiveis variáveis que se expressa pela construção de textos em prosa poética ou fabular acerca das suas vivências e repercussões criadoras, diante das questões poéticas mediadas pelo seus trabalhos, idiossincrasias profissionais, e o que podemos inferir na repercussão da obra. Trata-se da valoração dessas ideações profissionais e poéticas no trato e reflexão das virtualidades germinais que participam na instauração do trabalho de arte.

Mediar os devaneios poéticos na esfera do imaginal, incorpora uma extra-lucidez a estas potências constituidoras de mundo. O artista nessas incorpóreas realidades desenha uma fábula, novas fábulas, mundos outros que vão se revisitando num atlas infindável. Lugares, sussurros, objetos ou palavras, balbuciam obscuridades iluminadoras de longínqua alma humana. Cada nuança de luz presentifica desdobras milenares que desejam se dar a ver.

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Sonhamos com a luz nesse infinito céu buscando alcançar a flor da pele de algo que nos incendia. A atmosfera vulcânica acende nossos incêndios íntimos, nossa capacidade de se inflamar na direção de uma transmutação criadora. Tal um pássaro de fogo voamos nos céus de nossos seres, somos um animal sempre à espreita na direção imprevisível de um além do limite. Reacendemos continuamente esta Fenix, presente no animalismo da nossa imaginação, conferimos a este animal valor de potência na superação e transmutação da matéria. Nos tornamos a consciência operante e poetisadora deste ente, um estado fênico que Bachelard11 vincula à ontogenia do ato poético na consciência humana. Um animal que se constitui como elã imagético\impulsão imaginal do ato- ruptura, in extremis, do voar-enflamar- iluminar presentes nas imprevisíveis complexidades da criação artística. Podemos sonhar, gracias a Deleuze12, que fazer aparecer o trabalho de arte tangencia esta iluminação de um território entre nossa humanidade e inumanidade. Repercutindo intimamente esta impulsão, indo além da representação alegórica, somos colocados fora das polaridades e adentramos o core do simultâneo e do impermanente. Figuras, formas ou conceitos não constituem fixitudes na estância criadora da Imaginação.

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Na praia de areias escuras, as pessoas (não apenas os enamorados), escrevem com pedras brancas, descanso a camera, coleto algumas branquinhas perdidas e não tenho o que escrever, vou pegando apenas as pequenas e cada vez as menores. Quase dois quilos depois, caminho lançando as pedras criando uma linha registrando o meu trajeto errante. Nas minhas mãos as sensações dessa brancura mineral e luminosa. Neste repouso da minha atitude criadora com a camera, nesta mudança de plataforma, entro no longo movimento das pedras em sua mineralidade luminal. Reencontro estes instantes de luzes antigas que atravessam meu cristalino.

Inútil contar as pedras nas ruelas, janelas, portas fachadas, telhados e cúpulas das casas e igrejas. São tantas que em torno delas encontramos cantos onde buscamos refugio. O vento sopra por elas e cria seus cantos redondos. Nas minhas derivas constantes e diante desta presença massiva delirava as vezes incontáveis olhares. Lúcido de novo não podia esquecer que elas voaram expelidas aos céus pelo vulcão em chamas. Restava algum resíduo estelar nessa mineralidade levada ao paroxismo do fogo, um brilho intimo ali dormitava. Intrigava-me estas pedras incrustadas na parte externa das cúpulas de algumas construções, talvez tenham algum sentido decorativo mas eu as sentia como fantasias de, pedras que voaram muito alto e se tornam astros celestes, estrelas milenares caídas do céus. Saio das ruelas e vivo no mesmo instante um tempo íntimo e infinito. No caminho das pedras nascem flores azuis.

Exponho (e reflito) nas minhas derivas fotopoéticas em Santorini a ação de um pensamento artista consonante a um logos poético. Uma narrativa que tenta dar conta das evasões devaneantes na paisagem, uma espécie de confabulação poética indireta operada pela minha consciência criadora. Para mim a experiência de viver em imersão artística implicou numa atitude concentrada- espontanea diante da constelação das inúmeras indecisões, surpresas, receios e as vozes surdas da intuição. A solidão...criadora na intensidade da imersão favorece o nascer das coisas. Constato a presença de objetivos claramente imprecisos, aceito a aventura imprudente nesses atravessamentos racionalizadores e imaginais, apenas tenho a esperança de viver na iluminação extra.. ordinária do poético que persigo. Em algum lugar muito longe um poeta filósofo5 sussurra no meu ouvido de que na criação humana “a imprudência é um método”. Agradeço feliz e sigo adiante. Estar ativo e ativante no fluxo da criação, significa conjungar simultâneamente o agir, sonhar pensar, implica em deixar a cabeça fora do lugar.

Escapamos das polaridades deixando flutuar o pensamento artista e o mistério da criação como o poeta místico e filósofo sufi Ibn Arabi6 falando sobre dar conta da entrada pelo imaginal no suprasensível, no aporte do conhecimento e reflexões pela iluminação imaginante “entre o sim e o não o espírito emana da matéria e as cabeças desprendem dos seus corpos”

Na evasão devaneante, o olhar toca num vazio pleno, pleno de coisas, desenha nas sinuosidades do ar, busca decifrar enigmas de algo que ainda não vê. Pelo imaginal temos acesso as virtualidades irrealizantes presentes no aqui e agora. Somos levados ao recorrente costume de acreditar nos olhos, ver apenas as emanações visíveis. Não confundamos a realidade física, sensível, como a única e plena realidade, Corbin7, comentando o pensamento místico Sufi, nos ensina que o suprasensível não é uma figura espectral e sim uma dimensão, accessível pela imaginação, da irrealidade do real.

Recolocando a cabeça de volta, no interior da complexidade e fragmentação dos fenômenos envolvidos, nos devires da criação artística, insisto no exercício de uma lógica poético-imaginal, num cogito múltiplo exercido e descrito por Bachelard8. O que significa viver e criar pela abstração experimental de uma consciência imaginante operando os potenciais de metamorfose, negação e descontinuidade imaginais. Especialmente na sua mediação dos elos, ideações e permeabilidades entre as instâncias sensível e inteligivel.

Exercitamos com as instâncias criadoras de nossa consciência, em diferentes modulações, a compreensão de que um pensamento artista para Deleuze9 cogita-cria em afectos e perceptos ou com as “imagens poéticas” (concepts imagées) na abordagem de Bachelard10. Ambas ressaltam a vinculação determinante do pensamento artista\poeta na constituição da praxis criadora e da criação artística. Neste sobrevoar do olhar fabulador, dissolvem-se os dados de uma memória pessoal apagam-se as luzes da representação primeira. Parecemos encontrar as primordiais faiscações antecipando as coisas, nesta dimensão imemorial onde estas alcançam nome.

Notas

1 Professor Titular, Doutor , Universidade Federal do Rio de Janeiro, carlosmurad@gmail.com

2 Professor Associado, Doutor , Universidade Federal do Rio de Janeiro,

celsoguima@gmail.com

3 Professor Adjunto, Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro, leoventapane@gmail.com

4 Gaston Bachelard in O Ar e os Sonhos, São Paulo, Martins Fontes, 1990. 5 Gaston Bachelard in L’Engagement rationaliste, Paris, PUF,1972.

6 cit. por William Chittick, The Sufi Path of Knowledge. New York , Ed.Suny, 1989, pág. XXIII.

7 Henri Corbin in L’homme de lumiére dans le soufisme iranien, Saint- Vincent-sur-Jabron, Ed. Présence, 1984.

8 Gaston Bachelard in A Poética do Devaneio, São Paulo, Martins Fontes, 1990.

9 Gilles Deleuze in O que é Filosofia, São Paulo, Ed. 34, 1992 10 Gaston Bachelard in A Poética do Espaço, São Paulo, Martins Fontes, 1989

11 Gaston Bachelard in Fragments d’une poétique du Feu, Paris, PUF, 1988.

12 Deleuze, Gilles (ed. Boutang) L ́Abécédaire de Giles Deleuze. DVD, Paris, Ed. Montaparnasse, 2004.

Uma nuvem se move no céu e lentamente se aproxima de uma outra que se move ainda mais lentamente. As duas não se misturam, se sobrepassam, o céu tocado em mim se dilui de menos em menos azul. Ao longe fico mais perto, acalmo me vendo as nuvens passarem indiferentes ao céu ou a mim. Respiro longe sem me importar com esse pequeno drama cósmico. O céu azul permanece lá, simplesmente se azula porque é seu destino. Move meus olhos que não pensam ou sequer se fecham. Uma calma tão intensa que me submeto a esse movimento das nuvens, o olhar desfocado não vêem o que escrevo, as palavras devem ver melhor seu caminho. Olho ao longe e divago nas folhas difusas. Dormito e escrevo meio cego, sem ver bem o que escrevo na folha, as palavras escorrem na pagina, as nuvens parecem imóveis diante dessas palavras que correm na caneta.

A meia distância o rochedo denso aguarda na sua condição mineral, um avião ao longe alguns pássaros volteando no meio azul do céu. Minha mão tenta se levantar tentando entender esse acontecimento, onde um rochedo fala aos pássaros, volteando acima e mais acima o avião desliza, o rochedo já na sombra de um sol que ilumina a linha do mar e todoas os voantes desaparecem. Aspiro fundo esta atmosfera, de nuvens dissolvidas no final do dia dessa luz crepuscular. Isso tudo me dá uma paisagem. Encho cadernos vazios com nada, tento tocar o infinito longe dessa paisagem onde o amor alimenta fundo. A luz finda, silencia longe, os meus olhos buscam o que me continua escapando. Três pássaros retornam cortando esse final de céu que breve mergulhará na noite, me deparo entrando nessa doce infinitude, imensa solidão íntima conjugando um azular. Aguardo lá de Orion as Três Marias que irão chamar de novo meu olhar com seu canto estelar e doce. O vento começa a soprar as estrelas, fecham-se os olhos.