• Nenhum resultado encontrado

enriquecimento de nosso diálogo nessa roda de saberes. A orquestra7 já está arrumada, a roda vai começar! Em suas reflexões Flusser (2010) evidencia a transformação do pensar ocidental, no sentido de que, a partir da invenção da escrita, a cosmovisão ocidental constituiu-se em um movimento de pensar de forma linear. Com a escrita, observa o filósofo, o homem ocidental passou a organizar e orientar seus pensamentos em linhas, possibilitando a relação, essencial, de transmissão do conhecimento entre o sujeito (o homem) e o objeto (o mundo).

Ao escrever, os pensamentos devem ser alinhados. Uma vez que, não escritos e em si mesmos abandonados, movem-se em círculos. Esse circular dos pensamentos, em que cada um pode se voltar para o anterior, chama-se, em contextos específicos, de “pensamento mítico”: os sinais gráficos são aspas oriundas do pensamento mítico transformado em um pensar alinhado linearmente. Denomina-se esse pensamento correto, por motivos que serão posteriormente discutidos, de “pensamento lógico” (FLUSSER, 2010, p.20) Proponho refletirmos, partindo do ponto de vista de quem escreve. Estou a escrever e, durante essa escrita, em dado momento, paro e reflito: é nesse momento que questiono se o que escrevo está coerente com meus objetivos e se fazem sentido lógico, de acordo com os pensamentos que quero transmitir ao outro. Nesse movimento de reflexão, observo a ordem das palavras, os acentos, a pontuação e o sentido das frases. O gesto de escrever orienta e alinha os nossos “pensamentos nos trilhos corretos”, e, assim, podemos dizer, de acordo com Flusser, que a escrita nos ensinou a pensar corretamente, porque com seus sinais gráficos (alfabeto) alinhados em sequência de linhas ela produz a ordem dos pensamentos sobre os quais refletimos. E ele então elucida: a partir da escrita os pensamentos do homem ocidental passou por uma transição: de pensamento circular (mítico) transformou-se em pensamento “alinhado linearmente” (linear).

Via esses movimentos do pensar, sobre os quais estamos a refletir, podemos nos aproximar das outras questões. Pois Flusser indica uma gênese do “pensamento circular”. Como sinalizou em sua descrição, os pensamentos se movimentavam de forma circular, solta e desordenada, à qual ele se refere como o pensamento mítico. E acrescenta: os sinais gráficos foram originados do “pensamento mítico”. Deduz-se, assim, que em nossos antepassados e em outras culturas (não ocidentais) os pensamentos se movimentavam de forma circular e eram transmitidos através de sinais (provavelmente por meio de desenhos e sons). E que com a escrita os sinais usados anteriormente na forma de pensar circular foram transformados e assimilados pelo pensamento linear. De acordo com Flusser (2010, p. 46): “O alfabeto foi inventado para substituir o falar mítico pelo falar lógico, e com isso substituir o pensar mítico pelo lógico”. Cabe, portanto, entender que o falar ocidental transformou- se em falar lógico devido ao fato de os pensamentos terem sido organizados em ordem linear através da escrita.

Resumo

Algumas reflexões sobre a contextualização do pensamento circular na filosofia de Vilém Flusser, subvertendo a construção do pensamento linear na cultura ocidental, apresentam, paralelamente, diálogo entre as ideias do filósofo e a filosofia de cosmovisão africana, no que ela trata do modelo circular da natureza. Nesse contexto desenvolve- se abordagem sobre o processo de experimentação artística em arte e tecnologia nas linguagens de videoperformance e instalação, observando como tais linguagens constituem os movimentos do corpo na capoeira Angola como prática circular de matriz africana no Brasil. A partir dos desdobramentos estéticos resultantes dessa pesquisa teórico-prática, denota-se o pensamento circular como fenômeno transformador no processo sociocultural.

Palavras-chave: arte e tecnologia, pensamento circular,

cosmovisão africana, capoeira angola

Introdução

Este artigo aborda processo de investigação em poéticas interdisciplinares que compreende a realização de trabalhos práticos em processos criativos (experimentações artísticas); pesquisa de referências dos trabalhos de artistas; e estudos referenciais teóricos (de filósofos, cientistas, biólogos, antropólogos, sociólogos e outros...). Trata-se da descrição de uma pesquisa em movimento nas artes visuais, que transita, na “roda” do conhecimento realizando cruzamentos e conexões interdisciplinares. O desenvolvimento dessa escrita “linear” dá-se em um jogo de metáforas, mais especificamente, o jogo da “Capoeira Angola”.2 Ocupando as funções de artista-pesquisador e angoleiro3 proponho discutir as relações entre arte, vida e capoeira Angola, na roda das conversações do mundo. Reflito também sobre a transformação do movimento linear do pensamento a partir das cosmovisões4 ocidental, africana5 e africana no Brasil. Essa discussão se desdobra em experimentações artísticas, realizadas no processo de investigação do qual este texto é parte imprescindível. Os trabalhos constituídos nesse percurso têm como elementos para essa produção visual conceitos e práticas voltados para o pensamento, o movimento e o corpo.

Esses escritos desenvolvem-se sobre as inquietações que afloraram nessa pesquisa e assim se formularam: O que são o pensamento linear e o pensamento circular? Como se apresentam esses conceitos de movimentos do pensamento na visão de Vilém Flusser? Como se desenvolve o pensamento circular na prática da capoeira Angola? Seguindo sequencialmente essas questões, damos início ao nosso jogo e convido como parceiro para abrir a roda6 Vilém Flusser com suas ideias filosóficas, ou melhor, com o movimento de seu pensamento, a fim de nos ajudar a entender, o conceito de “pensamento linear” ocidental. É evidente que no desenrolar desse jogo reflexivo outros teóricos se pronunciarão, sendo bem-vindos ao

1 Marco Aurélio Alcântara Damaceno – artista visual, doutorando em poéticas interdisciplinares pelo Programa de Artes Visuais da

Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor do Curso de Artes Visuais da Universidade Federal da Paraíba. Contato: marco99.damaceno@gmail.com

pensar e o agir voltam-se para o passado, sua origem, para construir e afirmar seu presente.

Ou seja, no movimento circular da cultura de cosmovisão africana; um elemento explica o outro, e este explica o primeiro. Esse movimento circular do pensamento se desenvolveu porque essas culturas sedimentam a visão de mundo a partir de sua teogonia e cosmogonia, ou seja, a religiosidade que se estabelece, a partir da sua relação sacra com o mundo. Nesse sentido, compreendem-se seus costumes, suas estruturas hierárquicas, seus conceitos filosóficos e estéticos, sua língua, sua música, sua literatura oral e mitológica. Vale ressaltar que na constituição da cosmovisão africana o pensar e o agir moveram-se não só a partir da oralidade, mas também de três elementos artísticos indissociáveis: cantar-tocar-batucar 10 ‒ práticas performativas (ou performances culturais) do corpo em movimento, que reproduzem e ressignificam suas mitologias e costumes.

Sobre essa relação dos elementos cantar-tocar-batucar, como produtores e reprodutores do conhecimento, através, das performances culturais do corpo em movimento, na tradição oral de matriz africana, o professor Zeca Ligiéro (2011, p.22) desenvolveu o conceito de motrizes culturais para estudar e definir o conjunto das dinâmicas que é regido por esses elementos. Segundo o autor esse conceito define-se assim:

O adjetivo motriz do latim motrice de motore, que faz mover; também substantivo, classificado como força ou coisa que produz movimento. Portanto, quando procuro definir motrizes africanas, estou me referindo não somente a uma força que provoca ação como também a uma qualidade implícita do que se move e de quem se move, neste caso, estou adjetivando-a. Portanto, em alguns casos, ela é o próprio substantivo e, em outros, aquilo que caracteriza uma ação individual ou coletiva e que a distingue das demais. Em sua pesquisa Ligiéro emprega o conceito de “motrizes culturais” para definir um conjunto de dinâmicas culturais utilizado na diáspora africana para recuperar comportamentos ancestrais africanos (2011). Esse conjunto ele denomina práticas performativas e se refere à combinação de “elementos como a dança, o canto, a música, o figurino, o espaço, entre outros, agrupados em celebrações religiosas em distintas manifestações do mundo Afro-Brasileiro”. Ele afirma que essas dinâmicas são próprias das práticas performativas (performances) culturais afro-brasileiras e desenvolve sua análise focalizando três manifestações: candomblé, umbanda e capoeira. Dentre os elementos que constituem o conjunto dessas práticas performativas ele destaca o cantar-tocar-batucar como elemento básico da performance cultural africana e determinantes das forças motrizes. Esses elementos são destacados devido a sua presença e indissociabilidade das práticas performativas nas manifestações citadas.

Aqui focalizamos a capoeira Angola como prática performativa (e performance) envolvida por esses três elementos, que constituem seu corpo e que fazem parte das dinâmicas motrizes. De pleno acordo com as palavras de Ligiéro (2011): as dinâmicas das motrizes se processam no corpo do performer como um todo. Nesse sentido o corpo é seu texto. Nessa cultura o meu corpo constitui-se em texto que se escreve (e escreve) através de seus movimentos circulares para transmitir e viver uma literatura da oralidade. E foi a partir do meu corpo imerso no universo dessa prática Entende-se também, que, com essa transformação, o

“pensamento lógico” substituiu o “pensamento mítico”. Neste sentido, Flusser direciona o movimento do seu pensamento quando afirma: “Somente quando se escrevem linhas é que se pode pensar logicamente, calcular, criticar, produzir conhecimento científico, filosofar – e, de maneira análoga, agir” (2010, p. 22).

Segundo o filósofo, foi a partir da escrita que o homem ocidental passou a pensar, falar e também a produzir conhecimento. Ou seja, a cosmovisão ocidental é movida pelo pensamento lógico. Mas, como se desenvolveu o movimento do pensamento, para a produção do conhecimento que constitui a cosmovisão africana? Como ocorreu o movimento dessa “filosofia” nas culturas de cosmovisão africana no Brasil? É sobre essa forma de pensamento que nos deteremos nas linhas que seguem e que nos guiarão como “música”, na direção de respostas a essas perguntas.

O berimbau gunga8 chamou, outro jogo vai começar!

O jogo dos movimentos do pensar, nessa roda de trocas de ideias com Flusser, ainda não acabou. E na sequência vai acontecer em forma de “compra”,9 na qual cada participante contribui com seus pensamentos, de forma alternada. De acordo com a roda da vida e a roda da “Capoeira Angola”, o jogo nunca acaba: ele é um fluxo de movimentos contínuos, em que cada pensamento conduz a outro pensamento. E, envolvidos nesse “fluxo”, damos continuidade a nossa roda de pensamentos em movimento.

Por propor essa roda de trocas de ideias e por situar-me no lugar de iniciado na cultura de cosmovisão africana no Brasil, como participante da manutenção dessa tradição, assumo o pertencimento dessa cultura. Sendo assim, assevero que a produção do conhecimento na cosmovisão africana constituiu-se através da oralidade. Foi por este meio, contrário ao da escrita, que se moveu o pensar na cosmovisão africana. De acordo com José Beniste (2004), esse movimento se deu através da religiosidade formada por um corpo de elementos das tradições orais: a mitologia de seus deuses, a liturgia, os cânticos, a linguagem e os provérbios. O autor evidencia essa asserção, orientando o movimento de seu pensamento nessa direção, quando diz: Como não havia nenhuma forma de documento escrito no passado, tudo que foi preservado sobre suas divindades chegou até nós por palavras faladas, que passaram de geração a geração, constituindo-se o que se costumou chamar de TRADIÇÃO ORAL. E isso remonta ao continente africano. Essas tradições são os nossos únicos meios de se saber qualquer coisa de sua teogonia e cosmogonia, o que eles pensam e no que acreditam acerca das relações entre o CÉU e a TERRA (p. 19).

Com a tradição oral, se processou a transmissão e produção do conhecimento nas culturas de cosmovisão africana. Nessas culturas a visão de mundo desenvolveu-se a partir da relação do homem com o ambiente (a natureza). E esse conhecimento, foi constituído, por suas teogonias e cosmogonias. O pensamento da cosmovisão africana constituiu-se a partir do movimento do pensar e agir regidos pela ancestralidade, que remete a seus antepassados, sua origem, aos primórdios de um tempo mítico imemorial, perdido no tempo cronológico. Pela tradição oral se deu a manutenção desse conhecimento ancestral. Portanto, o pensamento nas culturas de cosmovisão africana move- se através da oralidade em uma ordem circular, em que o

Referências

2 Prática performativa de origem da cosmovisão africana instaurada

pela cosmovisão africana no Brasil.

3 Iniciado e praticante da capoeira Angola. 4 Visão de mundo segundo Ferreira, 2010, p. 599.

5 Referente à visão de mundo dos diversos grupos étnicos ou nações

da África Ocidental, Equatorial e Oriental.

6 Lócus em que ocorrem os jogos, em forma de perguntas e repostas

entre movimentos dos jogadores.

7 Também dita ritmo, é a ordem dos instrumentos na roda de capoeira

Angola, cuja música dá início aos jogos.

8 É o berimbau que com seu som grave rege a orquestra na roda de

capoeira Angola; normalmente é tocado pelos mestres e tem também a função de chamar os capoeiristas para o início de um jogo.

9 Jogo que se processa na roda de capoeira alternando parceiros. 10 No caso dos elementos performativos destacamos o conjunto de

técnicas aplicadas simultaneamente com o cantar-dançar-batucar – expressão usada por Fu-Kiau para indicar o denominador comum das performances africanas negras. Filósofo do Congo, os estudos de Bunseki K. Kia Fu-Kiau têm sido de fundamental importância para o conhecimento dos simbolismos das culturas banto. Ao considerar a junção das artes corporais às musicais e sobretudo ao uso do canto como algo simultâneo e percebido como uma unidade dentro da performance africana, Fu-Kiau destaca um dispositivo que, sem dúvida, continua sendo característico das performances da diáspora africana nas Américas – “não é possível existir performance negra na África sem esse poderoso trio”, e o mesmo é aplicável em relação às performances afro-brasileiras. Fu-Kiau, apud Ligiéro, 2011, p. 22.

11 Gesto pelo qual o capoeirista pede licença aos responsáveis pela

roda para realizar um novo jogo.

12 Responsáveis pela transmissão de conhecimento e orientação dos

iniciados nesse processo de aprendizagem.

13 Tipo de “toque” específico no vocabulário do capoeirista angoleiro.

BENISTE, José. Òrun Àyé: o encontro de dois mundos. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014.

FERREIRA, Dicionário Aurélio Buarque de Holanda. 5. ed. Curitiba: Positivo, 2010.

FLUSSER, Vilém. A escrita: há futuro para a escrita: 1. ed. São Paulo: Annablume, 2010.

_________. Natural:mente: vários acessos ao significado de natureza: 1. ed. São Paulo: Annablume, 2011.

SANTOS, Juana Elbein dos. Os nàgô e a morte: páde, àsèsè e o culto égun na Bahia: 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

LIGIÉRO, Zeca. O conceito de “motrizes culturais” aplicado às práticas performativas afro-brasileiras. Disponível em www. periodicoseletronicos.ufma.br › Capa › v. 8, n. 16 (2011). Acessado em: 27/09/2015

que passei a desenvolver essa investigação. Nesse sentido se faz importante o uso do conceito de motrizes culturais, para refletirmos juntos sobre o pensamento circular em movimento no corpo da capoeira Angola. Sendo assim, apresento a descrição do trabalho artístico produzido, a partir das experimentações e inquietações artísticas, que se realizaram até o momento nessa investigação dos processos criativos nas artes visuais. Vale ressaltar que os escritos que até agora se alinharam para orientar nossos movimentos dos pensamentos partiram da produção desse trabalho e agora a ele se direcionam. É sobre ele que oriento e discorro meus pensamentos, ao longo destas breves linhas, na direção de atingir os objetivos que foram propostos neste texto. Portanto vou ao “pé do berimbau”,11 peço licença aos mestres12 e orixás, e entro na roda de troca de ideias para desenvolver o jogo dos movimentos dos meus pensamentos para transparecer o construto desse trabalho.

ORÍ-LUMINAR: movimento do pensar

Farei aqui uma descrição do processo de produção desse trabalho na tentativa de evidenciar a cultura da capoeira Angola como prática performativa que exerce o pensamento circular e se move no contexto do conceito de motrizes culturais. Denoto, assim, essa prática como movimento de caráter artístico, visual e sonoro na arte contemporânea. A partir das reflexões geradas sobre o corpo em movimento e seus desdobramentos estéticos nas culturas de cosmovisão africana, que têm como modelo referencial o movimento circular da natureza, tomou forma a instalação e paisagem sonora: ORÍ-LUMINAR. Orí em ioruba significa cabeça; o ponto mais alto do corpo humano; espiritualmente no candomblé é cultuada como parte sagrada, principal órgão receptor e transmissor de energia: o axé. Luminar significa o que dá ou espalha luz. A junção dessas duas palavras configura essa experimentação artística de pesquisa em poéticas visuais, que tem como objetivo gerar um ambiente imersivo, no qual, o espectador se permita a experiência da percepção do movimento e pensamento circular. No chão de uma pequena sala pintada de preto, bem no centro, encontra-se um objeto (dispositivo de cabeça).

Na entrada da sala às escuras, preso na parede, um papel com instruções de manuseio do objeto, que está pontualmente iluminado por um pequeno foco de luz. A pessoa deve entrar na sala e colocar o objeto na cabeça. Nesse momento, apaga-se a luz central do teto e aciona-se a luz da lanterna disposta na extremidade do dispositivo; essa luz projeta um campo luminoso circular em torno do corpo da pessoa; ao mesmo tempo aciona o som de toques de berimbau (toque de capoeira Angola13) nos head phones. São também acionados sensores que ligam uma projeção ampliada de videoperformance, cujos movimentos sincronizam com o som dos toques e estabelecem uma relação interativa da pessoa com o que ela vê e escuta. Propõe-se que o participante, movendo-se no espaço escuro da sala, envolto pelo foco de luz circular, pelo som e pelo contato visual da imagem em movimento vivencie uma experiência estética do movimento do pensamento circular, em interação relacional com a luz, o som e a imagem, de forma transcultural, possibilitando-lhe uma ação entre performance e ritual. Assim, essa instalação de paisagem sonora tem como principal objetivo evidenciar e tornar visível sensorialmente o pensamento circular como elemento presente e transformador nas culturas de cosmovisão africana no Brasil.