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1.5 A APLICAÇÃO DO DIREITO E AS PRESUNÇÕES

1.5.1 A Presunção e a Prova

Na linguagem corrente, a palavra presunção possui dois significados bastante

distintos. De um lado, fala-se em presunção no sentido de pretensão, orgulho ou vaidade, daí

derivando o termo presunçoso, pretensioso. Não há aí equivalente de significação na linguagem

jurídica. Noutro sentido, porém, o termo presunção apresenta-se, para Sérgio Carlos Covello,

como conjectura (suspeita), “que se apresenta como uma das diferentes atividades mentais do

homem, uma atividade de valoração que relaciona a presunção com a prova, enquanto também

esta supõe uma atividade valorativa de comparação e confronto”.

300

É este o significado trazido

para a linguagem jurídica e que interessa para o presente estudo.

301

Cândido Rangel Dinamarco conceitua presunção como “um processo racional do

intelecto, pelo qual do conhecimento de um fato infere-se com razoável probabilidade a

existência de outro ou o estado de uma pessoa ou coisa”.

302

No dizer de Gabriel Rezende Filho,

“é um processo lógico pelo qual de certas circunstâncias comumente ligadas a um fato conhecido

chegamos, por dedução, à conclusão da existência de um fato desconhecido”.

303

Acerca da evolução da idéia de presunção como recurso técnico para a resolução de

problemas de difícil deslinde na Ciência Jurídica, Covello aponta a sua utilização desde a

300

A presunção em matéria civil. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 16. Escreve ainda o autor que “a presunção, como processo lógico que supõe provado um fato desconhecido antes de efetivamente demonstrado, surgiu da necessidade de o magistrado resolver casos práticos à vista da dificuldade ou inexistência de provas diretas em determinadas circunstâncias. Nesse sentido, a presunção não tem história, pois surgiram paralelamente à função jurisdicional, que implica sempre uma atividade valorativa, o que quer dizer que as primeiras manifestações do instituto já se encontram nos primórdios da vida jurídica dos povos. Todavia, para que a idéia de presunção, como recurso técnico de que se valem magistrado e o legislador na resolução de problemas de difícil deslinde, se cristalizasse na ciência do direito, teve de passar por estágios, numa crescente evolução, que convém estudar, a inda que sucintamente, como ponto de partida para a compreensão do tema”. Idem, p. 05.

301

Acerca do conceito filológico de presunção, diz Covello: “a palavra presunção (do latim praesumptio), bem como o verbo correspondente presumir (praesumere), traduz a idéia de antecipação, hipótese, concepção primeira e noção nata (cf. Ernesto Faria, Dicionário latino-português, 3. ed., MEC, 1962). Em seu Novo dicionário da língua portuguesa, edição de 1853, Eduardo de Faria define presunção como ‘juízo conjectural fundado em indícios’, e presumir como o ato de supor, suspeitar, ter opinião. No antigo direito romano, ambas as palavras foram usadas com significados diversos. Praesumptio foi empregada com o valor de

privilégio, usurpação, arrogância e opinião, enquanto praesumere conotava tomar primeiro, usurpar, usar, arrogar-se, crer etc.

(cf. Virgilio Andriolli, Novissimo Digesto Italiano). No direito justinianeu, a palavra presunção revestiu-se de conotação nova, passando a designar o que hoje chamamos de presunção jurídica”. Presunção jurídica, p. 409.

302 Instituições de direito processual civil, p. 113. 303

antiguidade, citando o Direito Hebraico (Bíblia Sagrada

304

), o Direito Hindu (Código de

Manu

305

) e o Direito Persa (a prova do arroz

306

). Mas é no Direito Romano, mais precisamente

na fase de Justiniano, que a presunção assume as características que hoje são conhecidas.

307

Na Idade Média – explica ainda Covello – a utilização da presunção na legislação

pode ser detectada nos seus três principais ordenamentos: o Direito Canônico

308

, o Código

Visigótico

309

e a Lei das Sete Partidas

310

. Seguiu-se a recepção da idéia de presunção nas

304

Covello refere-se à passagem do Livro 1 Reis, 3, 16, 28, que “relata o célebre julgamento de Salomão a respeito de uma criança cuja maternidade duas mulheres disputavam” (...) “Diante da inexistência de provas concretas, o sábio rei pediu que lhe trouxessem uma espada e ordenou que se dividisse a criança em duas partes, a fim de dar cada metade a cada qual das mulheres litigantes”. ‘Então, a mulher, cujo filho era vivo, falou ao rei (porque o amor materno se aguçou por seu filho), e disse: ‘Ah! Senhor meu, dai-lhe o menino vivo, e por modo nenhum o mateis’. Porém a outra dizia: ‘Nem meu nem teu; seja dividido’. Em vista do comportamento das mulheres, Salomão ordenou que a criança fosse dada à primeira mulher... Por aí se vê que o rei atingiu o fato desconhecido mediante presunção: presumiu, pela ternura de uma das mulheres, ternura que sói existir na maiori a das vezes no coração materno, que a primeira mulher devia ser a verdadeira mãe da criança, objeto da demanda. Com base num fato conhecido (o amor materno), Salomão chegou à verdade provável a respeito da maternidade da criança, e, com base nessa probabilidade, formou sua convicção e deu a sentença”. A presunção em matéria civil, p. 06.

305

Que, segundo informa Teresa Ancona Lopez de Magalhães, “figura como o mais antigo dentre os corpos legislativos da Antigüidade, sendo bastante minucioso quanto aos modos de julgamento e meios de prova, consagra várias presunções, como, por exemplo, a presunção de mentira dos litigantes, a de suborno das testemunhas, a de aquiescência à pergunta do adversário etc.”. Apud Covello, idem.

306

A prova do arroz consistia “em fazer engolir rapidamente certa quantidade desse cereal imediatamente depois de terminada uma declaração. Segundo eles, as pessoas que declaravam em falso ficavam impossibilitadas de engolir o arroz e, em conseqüência, eram invalidadas as suas declarações. ‘Apesar de sua aparente ingenuidade – diz Mira Y Lopez – esta prova tem um fundamento científico, ou seja, que todo estado emocional intenso inibe a secreção salivar, sem a qual é evidentemente impossível engolir-se um punhado de arroz seco. Facilmente se depreende, no entanto, que as diferenças pessoais de emotividade são suficientemente intensas para secar a garganta de um inocente ingênuo e não alterar em troca a de um delinqüente ou astuto declarante’. Observa-se, desde logo, que a prova do arroz tinha como fundamento uma presunção, pois o indivíduo podia perfeitamente estar dizendo mentira e engolir o cereal, ou estar dizendo a verdade e não o conseguir engolir, em vista do seu estado emocional. De ordinário, no entanto, quem diz a verdade não se atemoriza, não tem a sua secreção salivar alterada, e p or isso consegue engolir o arroz sem dificuldade”. Ib idem, p. 07.

307

“O vocábulo praesumptio, que nos textos clássicos conotava a idéia de juízo puramente subjetivo, passou a significar, a partir de Justiniano, Triboniano e seus colaboradores, o que hoje chamamos de presunção legal, ou seja, uma hipótese que pode ser destruída por prova contrária: Praesumptum esse debet nisi contrarium approbetur. Dá-se, na verdade, uma substituição do juiz pela lei. (...) O Corpus Juris Civilis, segundo reportam seus comentadores, especialmente aqueles que se dedicaram ao assunto em foco, consagra várias presunções. No Digesto, há mesmo um capítulo em que a presunção é inserida entre os meios de prova: ‘De probationibus et praesumptionibus’ (Liv.22, Tít.III). Nota-se que no direito romano a presunção foi tanto meio de prova como regra legal de prova. Compreende-se bem a criação da presunção legal entre os romanos. Estes, técnicos que eram em matéria de direito, buscavam unicamente a solução justa e adequada para o problema jurídico apresentado. Se a solução não surgia com clareza desejada, os romanos se abstinham de propô-la de maneira definitiva, e estabeleciam apenas uma solução provisória, sujeita à condição de que se não demonstrasse o contrário”. Ib idem, p. 08-09.

308

“No direito canônico, de influência marcadamente romana, o princípio de que nas coisas duvidosas devemos atender ao que é

mais provável e ao que ordinariamente sucede deu margem a que as presunções tivessem grande acolhida e seu estudo se

desenvolvesse de maneira exemplar. No processo canônico, da mesma forma que no processo romano, o juiz tinha liberdade para convencer-se a respeito dos fatos sub judice, podendo valer-se do expediente das presunções quando se visse frente a fatos complexos ou duvidosos. Quer dizer, o magistrado tanto podia recorrer a provas diretas como a provas indiretas. O Corpus Juris

Canonici, a exemplo do Corpus Juris Civilis, dedica um título especial às presunções: ‘De praesumptionibus’ e consagra, em seu

texto, várias normas de presunção”. Ib idem, p. 10. 309

“O Código Visigótico, que no dizer de Limongi França é o monumento de maior importância para o estudo das origens do direito galo-ibérico, visto que em Portugal constituiu lei até as Ordenações Afonsinas (1446) e na Espanha só foi revogado no século passado, não faz referência expressa às presunções. No entanto, consagra o preceito de que o juiz deve saber a verdade das testemunhas e dos documentos, e, na falta destes, pode usar o juramento, se for mister. O juramento, sem dúvida, baseia -se na presunção de sinceridade da parte e também no temor que esta dispensa à divindade invocada. Numa palavra: o juramento presume a verdade, pois se supõe que a veneração (ou ao menos o temor) pelo testemunho invocado não se harmoniza com a idéia de falsidade”. Ib idem, p. 11.

310

“A Lei das Sete Partidas, Código de leis redigido entre os anos de 1256 a 1263, Las Siete Partidas del Sabio Don Afonso IX oferecem grande interesse pela influência que exerceram sobre o direito português, especialmente sobre as Ordenações Afonsinas. O nome Siete Partidas deve-se à composição desse corpo legislativo, que compreende sete partes (...). Nesse Código, as presunções passam a merecer tratamento especial no domínio das provas, notando-se nitidamente a diferença entre a presunção legal (norma) e a presunção comum (elaboração mental do magistrado), o que constitui um grande progresso na disciplina da matéria”. Ib idem, p. 12.

legislações a partir do século XIX, a exemplo do Código de Napoleão (1804)

311

, do Código Civil

italiano de 1865

312

e a grande maioria das legislações modernas

313

. Orosimbo Nonato assinala

que o tema da divisão e efeito das presunções também foi extensamente tratado pelo processo

canônico

314

No mesmo sentido Aloísio Surgik, ao considerar que “foi na verdade o direito

canônico o campo mais fértil e propício onde, no terreno específico das provas, as presunções se

desenvolveram nas mais variadas modalidades”.

315

Acirrada controvérsia se alimentou acerca da natureza jurídica da presunção,

notadamente quanto ao seu enquadramento como meio de prova, o que veio ocorrendo em

muitas legislações. Foi assim que o instituto foi tratado no ordenamento jurídico brasileiro, no

Código Civil de 1916

316

, mantendo-se ainda esta concepção em nosso vigente Código Civil de

2002.

317

Todavia, a presunção não é um meio de prova, nem sequer uma fonte ou fato

probatório. É um simples método dedutivo de raciocínio lógico

318

, restrito, portanto, ao campo

das idéias.

319

Apenas se considerássemos o termo prova em um sentido bem amplo, que

abrangesse todos os métodos de percepção dos fatos controversos, aí sim se poderia inserir a

presunção nesta categoria.

320

Mas não é este sentido usual dado à expressão.

311

“Influenciado pelas idéias de Pothier, que em sua célebre obra Obligations dedicou todo um capítulo às presunções, o ordenamento francês não só acolhe várias presunções como oferece o conceito delas e estabelece uma classificação do instituto, além de fixar regras atinentes à admissibilidade das presunções comuns em juízo”. Ib idem, p. 13.

312

“É outro diploma que deve ser lembrado. Inclui as presunções entre os meios de prova (arts. 1350 a 1353), postura que continuou a ser adotada pelo legislador italiano de 1942 (Codice Civile, arts. 2727 a 2729)”. Ib idem.

313

“A grande maioria das legislações modernas consigna em seu texto as presunções como meio de prova, além de abrigar inúmeras normas de presunção: Código Civil espanhol (arts. 1250 a 1253), Código Civil português (arts. 349 a 351), Código Civil boliviano (arts. 934 a 938), Código Civil colombiano (art. 1768), Código Civil panamenho (arts. 1101 a 1104), para só citarmos alguns dos ordenamentos que tivemos a oportunidade de pesquisar”. Ib idem.

314

É o que constata o autor partindo da leitura dos cânones transcritos na versão espanhola da obra de Quintana Reynes: “Can. 1825 – Par.1º – La presunción es la conjectura probable de una cosa incierta; una es de derecho (iuris) establecida por la ley, y outra es (hominis) personal, que es deducida o conjeturada por el juez. Par. 2º – La presunción del derecho puede ser simplesmente tal (iuris) o también (iuris et de iure) calificada. Can.1826 – Contra la presunción simplesmente de derecho se admite prueba, asi direta como indireta; contra la presunción calificada (iuris et de iure) se admite tan solo prueba indireta, es decir, contra el hecho que sirve de fundamento a la presunción. Can.1827 – Quien tiene a su favor una presunción di derecho queda libre del cargo de probar, el cual recae sobre la parte contraria, y si esta no prueba, deberá darse la sentencia a favor de la parte en pro de la cual está la presunción. Can. 1828 – Las presunciones no establecidas por el derecho no serán deducidas por el juez sino di un hecho cierto diretamente coherente con el hecho controvertido”. Quintana Reynes, La prueba en el procedimiento canônico. Apud Orosimbo Nonato. Presunção e ficções de direito. Repertório enciclopédico do direito brasileiro. v. 39. Rio de Janeiro: Borsoi, p.133.

315

Presunção absoluta e relativa (teoria da prova). R. Limongi Franca (Coord.). Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977, v. 60, p.393.

316

“Art.136. Os atos jurídicos a que se não impõe forma especial, poderão provar-se mediante: I – confissão; II – atos processados em juízo; III – documentos públicos ou particulares; IV – testemunhas; V – presunção; VI – exames e vistorias; VII – arbitramento”.

317

“Art.212. Salvo o negócio a que se impõe forma especial, o fato jurídico pode ser provado mediante: I – confissão; II – documento; III – testemunha; IV – presunção; V – perícia”.

318

Segundo Planiol, “la presomption n’est que le raisonnement à l’aide duquel on démontre l’existence du fait inconnu et contesté à l’aide des traces materielles qu’il a laissées; c’est la mise ou valeur de la preuve, et la preuve véritable resid e uniquement dans les indices ou faits materiels dont ont se sert”. Apud Orosimbo Nonato, op. cit., p. 130-131.

319

Adverte Covello que a presunção “não é mero raciocínio, como pretende Planiol, e sim produto do raciocínio. Ela resulta do raciocínio, mas com este não se confunde. Conforme a etimologia, presumir é ter por acontecido alguma coisa antes de provada. Portanto, a presunção é uma conclusão antecipada”. Presunção jurídica, p. 411.

320

Nesse prisma, Covello considera que a presunção “não deixa de ser prova em sentido amplo, uma vez que sob o aspecto jurídico e moral, constitui meio legítimo de produzir convencimento que, como já dissemos, é a finalidade da prova”. Idem, p. 414. É esta também a posição de Carnelluti, quando escreve que “a palavra prova tem, pois, um duplo significado: prova em

Segundo José Carlos Barbosa Moreira, “o processo mental que, a partir da afirmação

do fato x, permite ao juiz concluir pela afirmação também do fato y, não se afigura assimilável à

atividade de instrução”.

321

Trata-se, nas palavras de Fredie Didier Jr., “de atividade do juiz, ao

examinar as provas, ou do legislador, ao criar regras jurídicas a ser aplicadas (presunções legais)

sempre ou quase sempre, conforme o caso”.

322

Em suma, a prova é o elemento fático que integra o processo de aplicação do Direito,

consubstanciado no fato intermédio que se coloca entre o fato controverso e o aplicador; a

presunção, ao contrário, é elemento psíquico do aplicador ao examinar o quadro probatório,

fundado na lei ou na experiência comum.