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1.4 A APLICAÇÃO DO DIREITO E AS PROVAS

1.4.4 Percepção Direta e Percepção Indireta

Cumpre ter sempre presente que a atividade de aplicação do Direito pressupõe um

exercício de percepção pelo aplicador, seja quanto aos fatos envolvidos no conflito a decidir

(percepção por meio de atividade probatória), seja quanto à norma jurídica que deve incidir no

caso concreto (percepção por meio de atividade interpretativa). Ao aplicador cabe, deste modo,

enfrentar questões de fato (quaestio facti) e questões de direito (quaestio iuris), mas o estudo da

prova apenas diz respeito à solução daquelas.

228 Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1974. t 4, p. 209-210. Destaca Pontes de Miranda que “há prova de fatos no mundo fático e prova de fatos no mundo jurídico (= de suportes fáticos + entrada no mundo jurídico). Os fat os compreendem os fatos que entram na composição de suportes fáticos e os fatos mesmos das regras jurídicas que incidem sobre aqueles. Em princípio, portanto, a regra jurídica teria de ser provada, como fato que é. A afirmação de existir tal regra jur ídica (= ter de incidir) teria de entrar no tema probatório. a) A necessidade de ser conhecida de todos (e, pois, do juiz) a lei levou a s e sobrepor ao princípio de necessária alegação e prova dos fatos o da desnecessidade da prova da lei (princípio da notoriedade

absoluta da regra jurídica), que se traduziu no enunciado Iura novit curia. b) A esse princípio abre-se a exceção para as regras

jurídicas de que trata o art.337. c) Do princípio da notoriedade absoluta da regra jurídica também é conseqüência o “Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”. Idem.

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Salienta Carnelutti tratar-se de “um mecanismo processual que pode ser parecido com o verdadeiro mecanismo probatório; porém a semelhança é mais aparente que real pelo que se refere ao mecanismo lógico (o processo mediante o qual o juiz infere do documento ou do testemunho o conhecimento da norma consuetudinária ou da norma estrangeira, é diferente daquele mediante o qual obtém da mesma fonte o conhecimento de uma situação de fato) e, geralmente, não se estende ao mecanismo jurídico do conhecimento ou, em outras palavras, às regras jurídicas que obrigam as formas e resultados de dito processo lógico dentro de determinados esquemas (o juiz, ao servir-se do documento ou do testemunho para fixar a existência da norma consuetudinária ou da norma estrangeira, não fica vinculado às regras a que, em compensação, está subordinado quando utiliza aqueles outros para fixar a existência de uma situação de fato”. Op. cit., p. 32-33.

No tocante ao modo como se dá essa percepção, alguns doutrinadores se valem de

uma classificação, atribuída a Nicola Malatesta,

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que distingue entre provas diretas e indiretas.

A prova direta seria aquela em que a percepção pelo aplicador dá-se em relação ao próprio fato

que se busca provar, enquanto na prova indireta o aplicador percebe um fato diverso (indício),

mas, empregando um raciocínio dedutivo e por meio de presunção, consegue chegar à conclusão

sobre o fato principal.

231

Citando exemplos de provas diretas, Dellepiane menciona a inspeção

judicial, confissão, a prova testemunhal e a prova documental. Em relação às provas indiretas,

refere-se aos indícios.

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Todavia, não se concorda aqui com tal classificação, ao menos da maneira como

posta por seu idealizador, eis que, ao invés de buscar assim distinguir os meios de prova,

preferível seria ater-se aos mecanismos pelos quais ocorre a percepção direta e a percepção

indireta. Com efeito, o aplicador do Direito apenas pode ter percepção direta dos fatos quando os

presencia, valendo-se dos seus próprios sentidos por meio de contato imediato com o objeto de

conhecimento. Tudo o mais que colaborar para a sua percepção será mecanismo indireto de

demonstrar-lhe a realidade do fato, mera aproximação através de um outro fato intermédio. Ora,

se o aplicador não teve acesso ao fato em si mesmo, mas a outro fato exterior ao fenômeno

objeto de prova, não se poderia falar em prova direta, pois tudo não passará de conjectura sobre a

ocorrência ou não do fato. Mesmo o testemunho de alguém que tenha presenciado o fato, ou

mesmo uma fotografia do seu objeto, como já dito anteriormente, não tem o condão de assegurar

a percepção direta pelo aplicador. Sob este aspecto, as provas são sempre indiretas, variando tão-

somente a força de convencimento no que concerne à percepção pelo aplicador e,

consequentemente, o seu grau de certeza sobre a verdade do fato.

Comunga desse entendimento Fabiana Del Padre Tomé, quando assevera que a prova

“jamais alcança o fato que se pretende provar, sendo apenas uma representação parcial, um

230

“A prova pode referir-se, como a objeto imediato, ao delito, mesmo em um dos mínimos elementos ou consistir no próprio elemento delituoso, sendo chamada, agora, de prova direta. Pode, ao contrário, a prova, como ao objeto imediato, referir-se a uma coisa diversa do delito, da qual, por um esforço da razão se passa ao delito, referindo-se, assim, a este mediatamente ou pode consistir diretamente nessa coisa diversa, sendo chamada, agora, de prova indireta”. A lógica das provas em matéria criminal. São Paulo: Conan Editora, 1995. v I, p. 155.

231

Como leciona Américo Canabarro, “prova direta é aquela que se constitui como fonte de convicção do juiz, por conter afirmação que incide sobre os elementos do fato que compõe o thema probandum. Prova indireta, também chamada circunstancial, é a que se constitui pelas afirmações sobre fatos não compreendidos no thema probandum, mas que por indução auxiliam a formar a convicção sobre os fatos. São, por exemplo, as presunções e os indícios”. Estrutura e dinâmica do processo

judiciário. Rio de Janeiro – São Paulo: Ed. Jurídica e Universitária, 1971, p. 126-127.

232

Op. cit., p. 49. Acrescenta que “la base de esta distinción está en que, entre las primeras y el hecho sobre que deponen o que demuestran, no se intercala hecho alguno diferente; mientras que, tratándose de la última, sí se intercala. Si llamamos p a una prueba directa cualquiera, h a um hecho indiciário, y H al hecho que se trata de reconstruir, tendremos que, en las llamadas pruebas directas, p lleva a H sin intermediário alguno; lo que no ocurre en el caso de la llamada prueba indirecta, la indiciaria, en la cual tenemos tres términos: p, esto es, una prueba directa que lleva a h, hecho indiciário, intermedio, el que, a su vez y mediante una inferência, conduce a H, hecho principal, hecho cuya existencia se trata de establecer”. Idem.

indício daquele”.

233

Carnelutti, apesar de aludir à classificação das provas diretas e indiretas,

reconhece que “não há diferença alguma, senão ao supremo grau, entre o resultado da prova

direta e o da indireta: aqui e ali o resultado não é outro que a percepção do juiz, mais ou menos

intensa”

234

, acrescentando ainda que a diferença entre a prova direta e a prova indireta é apenas

uma diferença de estrutura, “que consiste em que o processo probatório indireto é complexo,

enquanto que o processo direto é simples: consta de vários elementos e não de um único; porém

a base é sempre a percepção de um fato por parte do juiz”.

235

Daí defender a unidade substancial

dos dois procedimentos, asseverando que a percepção não pode ser excluída do campo da prova,

sob pena de se estar destruindo o próprio conceito de prova indireta, “que não pode existir sem

percepção do fato intermédio, do qual o juiz deduz o fato a ser comprovado”.

236

Conclui, por

fim, que “sempre que o juiz não perceba por si mesmo o fato a provar adquire seu conhecimento

mais mediante uma dedução, ou seja mediante um silogismo; a estrutura da prova é, pois,

idêntica, tanto se argumenta com um depoimento quanto com um indício.”

237

Também Sérgio Carlos Covello assevera não haver diferença substancial entre prova

e presunção, existindo “apenas diferença de nexo lógico”

238

. Destaca, com isso, “duas razões que

justificam a existência da presunção no mundo jurídico: 1ª) a dificuldade de provar certos fatos

por via direta, e 2ª) a estabilidade e a economia na aplicação do direito”.

239

Ressalve-se desta

lição, contudo, que toda percepção probatória é indireta e, por conseguinte, sempre demanda

raciocínio dedutivo. A presunção surge como mecanismo facilitador deste raciocínio. Nada mais.

Em suma, na percepção direta o observador valora o próprio fato controverso, o que

somente é possível se o fenômeno ainda perdura no tempo. Na percepção indireta, mais comum

quando o fenômeno aconteceu no passado, o observador lança a sua valoração sobre outros fatos

a que tem acesso no presente (vestígios, depoimentos, descrições em laudos técnicos etc.) e dos

quais retira o material de convencimento necessário à reconstrução ideal do fato controverso.

233

A prova no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2005, p. 314. 234 Op. cit., p. 86. 235 Idem. 236 Ib idem, p. 87-88. 237 Ib idem, p. 124. 238

In: R. Limongi França (Coord.). Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977. v 60, p. 47. 239

Idem, p. 53. Sobre a razão de ser da presunção, assinala o autor: “podemos dizer que a presunção desempenha basicamente duas funções principais: uma no plano legislativo, e outra, no plano judiciário. No plano judiciário, a presunção se apresenta como meio de prova. O legislador, compreendendo que em inúmeros casos a prova é de difícil produção, permite ao juiz que se utilize de sua experiência pessoal para atingir o fato desconhecido. No plano legislativo, a presunção é utilizada para a elaboração de uma regra jurídica de conteúdo probatório com vistas a facilitar a atividade do magistrado e da parte em cujo favor ela mi lita. Nessa função, a presunção é regra atributiva de direito e assegura o funcionamento das regras jurídicas, constituindo, de certa forma, um acessório da regra de fundo, à qual presta mais eficácia, ao facilitar a prova de fatos que determinam as condições de aplicação ou de incidência do preceito legal. Vale dizer que a presunção responde à necessidade de melhor adaptar a norma à realidade fática, permitindo, assim, a maior eficácia do direito, por atender a um imperativo de justiça. Note-se que estamos examinando a presunção em sentido técnico. O legislador pode utilizar esse mecanismo sem criar uma presunção pr opriamente dita, mas para lograr um conceito, elaborando uma regra jurídica que nada tem que ver com a prova. Nesse caso, a probabilidad e é utilizada para criar o direito com base na ordem natural dos acontecimentos. Mas aqui a presunção é um dos motivos d a regra de direito, não a própria regra”. Ib idem.